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Arquitetura de centros culturais

O arquiteto Pedro Mendes da Rocha discute a evolução do conceito de museu/centro cultural

Publicado em 02/12/2014

Atualizado às 18:44 de 24/02/2021

O arquiteto Pedro Mendes da Rocha discute a evolução do conceito de museu/centro cultural, o papel da arquitetura quanto aos centros culturais ao redor do mundo, sua relação, segundo ele, necessária com o espaço urbano e a reciclagem de edifícios de interesse histórico para outros fins.

Pedro Mendes da Rocha (São Paulo, 1962) graduou-se em arquitetura e urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP) em 1987, tendo trabalhado com os arquitetos Paulo Mendes da Rocha, Arnaldo Martino e Felippe Crescenti, além de várias equipes de profissionais associados. Lecionou na Universidade Anhembi Morumbi, na Fundação Armando Alvares Penteado (Faap), no Instituto Europeo de Design (IED) e no Serviço Nacional do Comércio (Senac). É vice-presidente do Departamento São Paulo do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB/SP) (gestão 2014/2016) e, desde 2008, é associado à arte3 | pedro mendes da rocha arquitetos associados, tendo desenvolvido diversos projetos nas áreas de arquitetura, urbanismo e expografia ao longo desses 27 anos de trajetória profissional.

Abaixo, a entrevista concedida à equipe do Observatório.

Observatório: Como evoluiu o conceito de museu/centro cultural e qual o papel desempenhado por esses equipamentos nas cidades contemporâneas?

O conceito de museu evoluiu basicamente da ideia de um cofre onde se guardavam tesouros culturais e artísticos para algo muito mais dinâmico e que interage de forma muito mais aberta com a cidade. Muito inspirado pelo Centro Cultural Georges Pompidou [na região de Beaubourg, em Paris], a gente teve um marco divisor que foi o Centro Cultural São Paulo (CCSP). Inicialmente, o CCSP seria um anexo da Biblioteca Mário de Andrade. Com a direção do então secretário de Cultura Mario Chamie, o projeto arquitetônico ampliou o que seria um local para consulta de livros, nos moldes mais tradicionais, para um espaço em que convivem teatro, música, fotografia, pintura, instalações, debates, espetáculos de performers. Os museus começaram com a ideia de guarda e evoluíram para a de exposição de obras de arte, de acervos que não necessariamente estão guardados no edifício, de artes visuais, de escultura, nos moldes mais tradicionais. Com os centros culturais incorporam essa série de atividades, inclusive no aspecto da convivência, do encontro das pessoas, de um lazer.

Mário de Andrade tem um texto que é citado por Carlos Augusto Calil [cineasta, crítico e ensaísta, professor do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da Escola de Comunicações e Artes da USP, foi diretor do CCSP e secretário municipal de Cultura de São Paulo] que diz que o centro cultural é o lugar onde você pode exercitar o far niente, ou seja, encontrar com os amigos, jogar xadrez. Então, o museu evolui para essa ideia de centro cultural e, principalmente, integrado como uma extensão da rua.

Observatório: Como a arquitetura pode colaborar na atração de público para os espaços culturais? Quais exemplos de centros culturais no Brasil e no mundo atraem pessoas para além de sua programação?

A gente tem muitos exemplos bastante significativos. O CCSP, sem dúvida, é uma contribuição feliz e única da arquitetura brasileira e paulista para essa atração de público. A arquitetura pode contribuir com a qualidade do projeto, o que não necessariamente quer dizer rebuscamento ou exacerbação formal, mas é trazer (e nesse aspecto o CCSP é um bom exemplo) uma integração com a cidade, a ampliação do conceito de espaço público. Significa oferecer amparo às atividades – como sombra, bancos, um café, um banheiro. Deve ser um teatro, um espaço que dê lugar a manifestações artísticas que cada vez mais não se podem classificar, que cada vez mais rompem com os dogmas, os suportes. De repente, uma performance, um desfile, uma atividade musical, de dança, podem até acontecer nos espaços menos previstos – e a arquitetura tem de buscar amparar, dar condições para que essas possibilidades cada vez mais aconteçam.

É também necessário pensar na importância da paisagem. Um exemplo é o Museu de Niterói, de Oscar Niemeyer, um edifício que em si já é um acontecimento cultural e que tem uma relação muito feliz com a paisagem: a vista privilegiadíssima da Baía da Guanabara. Isso permite que se atraia público através de uma ideia fundamental para a arquitetura, a da criação de um lugar. Então, independentemente da programação que exista lá, quando as pessoas vão ao Rio de Janeiro, muitas delas jamais iriam a Niterói não fosse a existência daquele lugar privilegiado de encontro, de estar, de mirar a paisagem, de encontrar pessoas.

Na Europa, a gente tem experiências inúmeras, mas é interessante citar o Georges Pompidou, um precursor na ideia de reunir essas atividades todas; a Tate Modern, que é um espaço que busca trazer a cidade para dentro – o centro cultural é pensado quase como uma estação de transporte, como se fosse uma estação de metrô, um aeroporto, e as pessoas estão lá fruindo aquele espaço; e o Guggenheim Bilbao, um acontecimento naquela cidade que estava em certa decadência econômica e que a partir da sua construção foi inserida no mapa cultural europeu, tornou-se um destino cultural.

Observatório: Muitos dos novos museus/centros culturais no Brasil e no mundo possuem projetos de arquitetos internacionalmente reconhecidos, que viram “obras-espetáculos”. Qual sua opinião sobre esses projetos e a relação que estabelecem com o contexto histórico-social do local e os habitantes da cidade?

Não é, digamos, uma regra. Há experiências felizes. Nós temos, por exemplo, a Casa de Ópera de Oslo, do escritório Snøhetta, realizada no que era uma região portuária degradada, abandonada, poluída. Dentro de um grande plano municipal de despoluição e de atração da população para aquela área, o projeto de arquitetura criou um edifício mirante. O porto criava, pela sua configuração arquitetônica, certo distanciamento das pessoas com a água. O novo projeto, para quem não conhece, é um prisma inclinado que mergulha dentro da água, quase como uma praia artificial, que gera um espaço de contemplação, de visitação. Existem fotografias muito interessantes das pessoas descansando, namorando, tomando lanche, conversando no fim de tarde, olhando a cidade, as crianças, tirando o sapato e experimentando molhar o pé na água. Assim, a Casa recompõe para a cidade a relação do cidadão com a água. Cria um lugar onde as pessoas vão como ao mirante Dona Marta, no Rio de Janeiro, como vão à praça San Marco, em Veneza. A arquitetura, se de boa qualidade, e essa é uma questão sutil de avaliação, pode criar espaços integrados com a comunidade, e que tenha um uso, uma visitação, um apelo. Mas, por outro lado, pode criar espaços bastante herméticos e sofisticados.

A ideia de trazer para a arquitetura desses edifícios o atributo, digamos, o status, da sua ocupação se tornar um fato cultural, é uma responsabilidade muito grande dos arquitetos. Existem situações em que há resultados felizes e em que há um resultado hermético, de não contato com a cidade, de não diálogo, de não integração, de ruptura, de bloqueio. São sutilezas da discussão da arquitetura.  E é a matéria da arquitetura lidar sobre como criar essa integração.

O CCSP, por exemplo, criou essa integração: são sete entradas em diferentes níveis, uma entrada exclusiva pelo metrô, a calçada que avança por dentro do centro, convidando as pessoas para adentrarem – são recursos para que o local não pareça um palácio onde apenas os letrados, os estudiosos e os conhecedores da arte vão entrar, mas um espaço privilegiado, uma extensão dos espaços públicos. São questões que estão no cerne das discussões do que é uma boa arquitetura, do que é uma boa intervenção urbana. Uma discussão longa, mas acho que alguns exemplos são felizes. Esse da Ópera de Oslo é muito interessante porque é uma casa de espetáculos que também tem shows populares, entre outras coisas. Poderia ser algo extremamente erudito e hermético, mas torna-se um lugar de receber as pessoas.

Observatório: A reciclagem de edifícios de interesse histórico para fins culturais é uma experiência que vem sendo realizada no Brasil nos últimos anos, numa atitude de conservação do patrimônio histórico por meio de novos usos que viabilizem a conservação e sustentabilidade dos antigos edifícios. Você realizou projetos nesse sentido, com a transformação do antigo prédio da Secretaria de Estado da Educação de Minas Gerais no Museu das Minas e do Metal, em Belo Horizonte; a expografia do prédio da antiga cadeia de Tiradentes, que abrigará o Museu de Sant’Ana, cujo projeto de reciclagem e readequação teve autoria de Gustavo Pena, importante arquiteto mineiro. Qual sua opinião sobre esse processo e o limite entre a preservação do patrimônio histórico e sua reciclagem para novos usos? Deveria haver maior recurso para manutenção integral de edificações históricas em seu estado original, sem que houvesse necessidade de reciclagem para novos usos ou essa dinâmica é saudável para as cidades contemporâneas?

Aqui também não há regra. É preciso examinar a natureza dos edifícios, para que eles possam ser considerados patrimônio e passem a ser um patrimônio ressignificado, requalificado e um patrimônio do futuro. Existem edifícios, até por contradição, por exemplo, o Museu da Língua Portuguesa, que nós [Paulo Mendes da Rocha e Pedro Mendes da Rocha] fomos chamados a fazer. Foi instalado nas áreas dos escritórios operacionais das redes ferroviárias, que é um uso que continua a existir: há necessidade de escritórios de gerenciamento das redes ferroviárias. Por que não um prédio histórico ser adaptado, modernizado, para bem atender essas instalações? Por contradição, eu, que participei do projeto de adequação, até questionei porque não se pode modernizar esse edifício histórico, restaurá-lo, e manter ali um uso que continua existindo.

O que temos observado é que alguns usos passam a inexistir: é o caso do matadouro de São Paulo, que foi ocupado pela Cinemateca, a Casa das Retortas, onde a gente fez o projeto do Museu da História do Estado de São Paulo. Parou de existir aquele sistema quase “antessala do inferno”, que era queimar carvão para criar um gás para iluminar a cidade. As pessoas trabalhavam em condições subumanas, calor de altíssima temperatura, com risco de explosão quando havia contato com oxigênio, adoeciam, queimavam o pulmão e a pele. Era um modo de produzir energia extremamente antiquado e que foi, do ponto de vista energético, superado. A questão da sustentabilidade do patrimônio surge também como apropriação de um trabalho, de uma energia aplicada, de um conhecimento de materiais que já estão lá e que podem ser ressignificados, restaurados no que têm de essencial, recebendo porém o acréscimo, a modernização, com instalações contemporâneas para novos usos.

Tem-se focado muito na questão dos usos culturais. Agora, por exemplo, venho recebendo convites para participar de concorrências muito interessantes. Em São Luís, no Maranhão, por exemplo, onde uma antiga e enorme indústria de tecidos ia ser restaurada e adaptada para receber a câmara dos vereadores, que é um uso de caráter não cultural. Outra indústria de tecidos ia abrigar um colégio público para jovens, algo também muito interessante.

A ideia é dar realmente um novo caráter a esses edifícios, dar um novo significado, como o caso da usina de energia em Londres, que deu origem à Tate Modern, em que o uso antigo se encerrou. Permitir que esses edifícios possam continuar existindo não como fósseis, prédios mortos, como se fossem só uma carcaça. A ideia é que se possa agregar com sabedoria recursos contemporâneos, climatização, movimentação vertical, escada rolante, elevador e abrigar usos que, no caso da cultura, são sempre interessantes por causa dos grandes espaços vazios.

É um tema muito interessante e muito. Nós temos aqui o exemplo do Sesc Pompeia, um projeto brilhante da Lina Bo Bardi, com a programação das atividades e a gestão do edifício andando juntas, pois não adianta nada você transformar um edifício se não houver uma política de gestão. Esse é um exemplo muito feliz, é uma instalação belíssima de uma indústria de tambores de metal que não existe mais. É um documento de um momento da nossa cultura, da nossa cidade, do nosso ciclo econômico, de uma forma de construir aquela estrutura de concreto muito inteligente, muito elegante, e que merece permanecer como um elemento da nossa cultura. O edifício já é um acervo da cidade e da cultura; agregar outros usos com sabedoria, como a Lina fez com maestria, como é do feitio dela, é um ganho da maior importância para as cidades. Esses usos, inclusive, como já mencionamos nos exemplos de Niterói e do Museu da Língua Portuguesa, são irradiadores de ressignificação das regiões imediatamente vizinhas na cidade. É um fator importante até para a renovação da cidade. Há ainda o caso da Gare d’Orsay, em Paris, onde um ramal de trem foi desativado: uma belíssima estrutura deixou de ter função, porém é ressignificada com o museu d’Orsay,

Observatório: Em sua opinião, que papel a arquitetura assume (ou deveria assumir) atualmente nas cidades brasileiras?

Arquitetura tem um papel muito importante e a X Bienal de Arquitetura [realizada em 2013 com o tema Cidades: Modos de Fazer, Modos de Usar] contribuiu muito para trazer essa visão e essa forma de atuação para a discussão pública. A arquitetura transcende a ideia de intervenção em edifícios ou terrenos isolados. Tem de ser pensada numa dimensão de maior escala, na escala pública, na escala da cidade. A gente teve uma série de equívocos, de se pensar a cidade como uma colcha de retalhos subdividida e vendida em fragmentos, cada um pensando seu fragmento. Ela deve ser pensada como ocupação do território, onde as pessoas moram, onde elas trabalham, como se ocupam as várzeas dos rios, como se equaciona a questão do transporte público, que é estruturador da vida urbana. Nós estamos vivendo agora o modelo infeliz do automóvel privado, no qual se investiu durante anos, que determinou a ocupação dos territórios e os deslocamentos na cidade. Cada um dentro de um automóvel que ocupa cinco metros quadrados, uma ocupação privada de um espaço público – a rua –, e com isso não circula ambulância, não circula o caminhão do correio, não circula o caminhão que distribui gás, não circula o carro da polícia, o bombeiro, o carro da verdura e não circula a grande maioria da população que não tem seu automóvel (ainda bem, senão não haveria espaço no mundo, todas as avenidas deveriam ter oito pistas...).

Esse modelo rodoviarista está se mostrando esgotado, e é unânime. Desde Londres, Istambul, Atenas, São Paulo, Paris. É um modelo equivocado que precisa ser corrigido. A arquitetura tem de pensar rapidamente e em larga escala. Estamos vivendo um momento de crise hídrica que tem muita relação com a visão equivocada de desmatamento do território. Existem estudos que comprovam que o desmatamento da Amazônia impede a formação de rios aéreos que desceriam o território ao longo da Cordilheira dos Andes e viriam fazer as chuvas aqui em São Paulo.

A arquitetura tem de ajudar a pensar de forma multidisciplinar, evidentemente, sobre como ocupar o território de forma coletiva: não é mais somente picotar e cada um fazer o seu palacete, seu edifício sede de empresa, sua grande obra-prima, mas pensar que esse modelo de cidade não é o que nós queremos: com as fiações expostas, com esse grau de poluição, com a falta de espaço de lazer, falta de espaço para as crianças estudar próximas ao trabalho dos pais, da sua casa. É uma série de equívocos que precisam ser repensados. Acho que a gente está chegando em um momento em que já existe uma série de experiências felizes e exitosas, mas sempre em menor escala. São Paulo avançou muito com a revisão do plano diretor, pois é preciso repensar a cidade principalmente com a ideia de convivência integrada. Não tem cabimento a cidade excluir por uma divisão social, de renda, os mais abonados morarem nas regiões mais providas de recursos, de emprego, de ônibus, de escolas, e a grande maioria da população ser despachada para territórios distantes, onerando sistema de transportes.

Alguém um dia desses me contou que morou num prédio na Dinamarca, no centro da capital, onde viviam torneiro mecânico, encanador, professor universitário, escritor, professores de escola infantil, mecânico de automóveis etc. Essa discriminação pela renda já está condenada, e é preciso que o poder público crie mecanismos [para mudar esse cenário]. Estava vendo outro dia que em Nova York você pode construir mais nas zonas importantes da cidade, mais próximas dos serviços, do trabalho, dos centros comerciais onde há investimento desde que você preveja espaços os quais a prefeitura possa alugar com aluguéis subsidiados. O poder público precisa corrigir, não podemos ficar à disposição do mercado; quem tem mais comprando 3 mil metros e fazendo uma fazenda na cidade e quem tem menos tendo de morar,  como temos visto, no canteiro da praça.

Essas são situações com as quais a arquitetura precisa pensar junto. Evidentemente que o arquiteto, se chamado, tem de resolver um problema pontual de um edifício, como acabamos de falar, mas de modo coletivo devemos pensar o redesenho da cidade democrática, a cidade comprometida com o uso inteligente dos recursos naturais e seu não esgotamento, pensar em recursos de energias que sejam não finitos (como erroneamente se pensou que fosse, durante anos, o petróleo, que vai se extinguir, que é poluente). A arquitetura tem de mudar o foco. Esse é o grande desafio

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