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Cê | Série 'Coletivos culturais'

O Coletivo Cê existe desde 2009 e há cerca de quatro anos é sediado no antigo espaço da Associação de Moradores do Bairro da Chave, uma...

Publicado em 02/12/2014

Atualizado às 21:02 de 02/08/2018

Coletivo Cê existe desde 2009 e há cerca de quatro anos é sediado no antigo espaço da Associação de Moradores do Bairro da Chave, uma das primeiras vilas operárias de Votorantim, município do interior paulista (bairro situado na área central da cidade, de arquitetura peculiar devido à presença de casas geminadas, herança do início do desenvolvimento industrial que ainda é muito visível. Construído pela fábrica de tecidos da Votorantim, era habitado pelos operários). O coletivo é integrado por artistas de diversas áreas, cujo encontro se deu pelo desejo inicial de pesquisar as linguagens do teatro e da performance. Da experiência com a rua, o coletivo desenvolveu uma pesquisa da linguagem teatral em espaços não convencionais e sua relação com o patrimônio imaterial, marcada pela noção de atores-criadores.

Paralelamente aos espetáculos teatrais, o Coletivo Cê, que já recebeu o Prêmio CPT 2013 na categoria Trabalho Apresentado no Interior e Litoral Paulista pelo espetáculo Desmedida, ainda desenvolve ações junto à comunidade do Bairro da Chave, desde a revitalização do espaço que abriga a sede do Coletivo e o seu entorno até a realização de oficinas de teatro por meio do Projeto Simbiose.

Observatório: Falem um pouco sobre a proposta do Coletivo Cê e o modo como se organiza o processo criativo do grupo.

Desde o início, nossa pesquisa orbitou em torno da memória, do patrimônio imaterial e da pesquisa da linguagem teatral em relação com espaços não convencionais. Nossa criação se dá de forma horizontal, todos colaboram no desenvolvimento das cenas, sempre muito contaminadas pelas marcas mais profundas dos seus artistas-criadores. Todos opinam sobre execução, direção e dramaturgia e, apesar de existirem centralizadores para essas funções, eles mudam também de acordo com as necessidades do processo e do próprio coletivo.

Temos buscado cada vez mais provocar uma fluidez nas barreiras comumente existentes entre as funções. Acreditamos numa criação conjunta entre cena, atuação, cenário, figurino e sonoridade, de modo que os processos geralmente levantam muito material cênico. Estando num local como o do Bairro da Chave a quantidade de material dobra pela dimensão de contato humano que estabelecemos a partir do uso do espaço das ruas e mesmo do entorno da nossa sede.

Observamos atentamente o nosso contexto para captar essas pequenas riquezas cotidianas que só a convivência nos propicia, e assim levantamos mais preciosidades de patrimônio imaterial e imagético para nossa criação. Nosso entorno é terreno fértil para a criação.

Como se dá a gestão do coletivo e a manutenção financeira dos projetos e do espaço sede?

A gestão do coletivo se dá também de forma horizontal. Não há um chefe ou um diretor, todos gerimos o espaço de forma coordenada, geralmente decidida em reunião e contando com a opinião de todos os integrantes. Temos pessoas que se responsabilizam pela produção e pelo controle dos gastos do coletivo, mas tudo é feito de forma transparente. Acreditamos muito na força e na potência das ações que realizamos de forma coletiva, desde o momento da escrita dos projetos até a organização dos eventos e a criação dos espetáculos. Acredito que somos um agrupamento de artistas que compartilham uma urgência grande em criar uma forma de organização social que rompa as barreiras de hierarquia. A manutenção financeira é feita por meio dos nossos saraus bimestrais (nos quais conseguimos ter algum lucro e comprar itens básicos para manter o espaço) e por meio dos projetos de financiamento público como o Proac. Atualmente também temos o apoio da Secretaria de Cultura, Turismo e Lazer da Prefeitura de Votorantim para a realização das oficinas de teatro para crianças, adolescentes e adultos dentro do Projeto Simbiose.

Como o local onde fica a sede do grupo – o bairro da Chave, na cidade de Votorantim/SP – se relaciona com o trabalho do coletivo? Qual a importância das incursões pelas ruas do bairro da Chave, que são propostas ao público em alguns trabalhos? Vocês podem falar um pouco sobre os resultados dessas experiências?

Desde o início, o espaço foi determinante para a criação artística do coletivo, o espaço e a nossa relação com o entorno. Por isso também o Bairro da Chave se torna parte fundamental da criação, uma vez que é um bairro vivo, cheio de gente disposta e aberta a compartilhar histórias. Seu passado industrial faz com que as casas geminadas, com janelas e portas para a rua, criem outro tipo de relação entre os vizinhos. A dimensão de intimidade é imensa. Nossos vizinhos adentram o espaço com a mesma tranquilidade com que abrem a própria casa para nós, e isso funda uma relação muito próxima. Em nosso espetáculo Desmedida, que ficou dois anos em fluxo de criação nas ruas, pudemos desfrutar do carinho e cuidado dos moradores: seja assistindo às cenas, seja trazendo pipoca e chá para os atores no fim da tarde, servindo água, permitindo a nossa entrada em suas residências para que pudéssemos fazer cenas ou ouvir histórias [imagens dessa  e outras experiências podem ser encontradas no site do grupo]. Estar no interior de São Paulo é muito rico por se tratar de uma gente muito humilde, de muita fé, com muita sabedoria, que é partilhada conosco o tempo todo. Somos aprendizes.

No espetáculo Cunhãntã voltamos para dentro do espaço do coletivo, mas sem interromper o diálogo que se iniciou nesses últimos anos. Ainda contamos com o material vivo que nos é dado diariamente. Usamos depoimentos das ex-operárias da antiga fábrica de tecidos que ainda moram ali, queríamos esmiuçar a identidade dessas mulheres fortes. Também temos a presença constante das crianças no nosso espaço, que vem crescendo e acompanhando o nosso trabalho nos últimos anos. Algumas crianças também já participaram de cenas dos espetáculos e nos auxiliam na manutenção e na revitalização do espaço e na recepção do público sempre que promovemos algum evento em nossa sede.

O Coletivo Cê tem como parte de seu projeto a pesquisa sobre patrimônio imaterial. Falem sobre essa pesquisa e como se dá a sistematização da memória dos fazeres e saberes locais que são descobertos nessas pesquisas. Como ela interfere nos trabalhos do grupo e como se relaciona com a cultura da região?

Nosso processo se constrói em grande parte por meio de um mapeamento afetivo do nosso entorno. Juntamos depoimentos dos habitantes desse local àquilo que conseguimos colher individualmente. Dessa forma pretendemos nos apropriar do lugar onde estamos de maneira respeitosa e delicada. O mestre Manoel de Barros, grande apaixonado pelos cacarecos, esquecimentos e tudo aquilo que não parece ter grande valor, é um grande inspirador das nossas pesquisas. É essencial destacar também que nossos processos de criação artística são permeados pelas marcas dos seus artistas-criadores. Nos resultados cênicos essas marcas se trançam como fios em outras histórias, das nossas famílias, dos operários da fábrica de tecidos de Votorantim, de personagens da literatura, das pessoas que circundam a sede do coletivo no bairro e também daqueles que encontramos na circulação pelo interior do estado de São Paulo. Especificamente em Votorantim essa pesquisa que desenvolvemos sobre o patrimônio imaterial é muito significativa, pois os poucos registros históricos existentes sobre o bairro (e, consequentemente, sobre o município) foram construídos sob a perspectiva da empresa que leva o nome da cidade, um olhar apaixonado sobre a fábrica e seus fundadores. Isso nos intrigou e foi a força motriz para buscarmos outros olhares sobre o território em que estávamos inseridos. E a partir dessa pesquisa contínua vamos revelando outros olhares sobre a história da nossa região, permeada de cidades com um passado muito semelhante, marcadas pelo desenvolvimento industrial do início do século XX e pela forte presença do movimento operário. Todo esse material que colhemos na nossa vivência nesses locais tem constituído um arquivo rico em vídeos, fotografias, textos e áudios que retroalimentam a pesquisa.

Como essas pesquisas levantam informações preciosas para a história da cidade, há algum projeto de compartilhamento dos dados com a sociedade?

Tatiana Plens, assessora de imprensa e fotógrafa do projeto, diz: “É uma inquietação principalmente minha que sou assessora de imprensa e fotógrafa no coletivo. Por conta dessa urgência em trabalhar com as imagens e palavras que cercam a nossa pesquisa, no próximo ano iniciarei uma pesquisa no mestrado, pois também sinto que é preciso pensar nas formas de funcionamento dessas palavras e imagens na divulgação cultural. A ideia também passa por organizar vivências a partir desse material onde possam participar pessoas do coletivo, da comunidade e dos outros bairros da cidade. E com todo esse material esperamos também futuramente publicar um livro sobre a experiência que desenvolvemos na Chave.”.

Através do projeto Simbiose, o que o Coletivo propõe? Falem um pouco sobre a estrutura do projeto, sua importância para a formação de públicos e os resultados alcançados, até o momento.

O projeto Simbiose nasceu da parceria entre artistas membros do Rasgada Coletiva (coletivo cultural de Sorocaba) e do Coletivo Cê, e da vontade de propor novas experiências educacionais através da arte. “Simbiose” significa uma relação mutualmente vantajosa, na qual dois ou mais organismos diferentes são beneficiados por essa associação. A partir desse entendimento, fomentamos o teatro na cidade de Votorantim com um público de amplo perfil: crianças, adolescentes e adultos. Esse projeto propõe novas maneiras de pensar a educação e a experimentação da linguagem artística e, atualmente, é realizado com o apoio da Secretaria de Cultura e Lazer da Prefeitura de Votorantim. Nessa proposta, buscamos explorar as relações entre formador e aluno, propostas tradicionalmente em salas de aula ou teatros e, aqui, no espaço disponível em nossa sede. Procuramos nutrir o nosso trabalho de investigações acerca da linguagem teatral, do compartilhamento de experiências de vida dos indivíduos formandos e formadores e, principalmente, do entendimento de ambos como potências igualmente criadoras. A compreensão global do artista e do ser humano encampa o sistema pedagógico numa dinâmica que percebe o formador e o formando de modo horizontal. Confluem aptidões, autobiografias e visões de mundo em prol de uma formação contínua e natural. A arte assume, então, um papel importante no cotidiano desses encontros, trazendo um palpável enriquecimento pessoal e coletivo para aqueles que se envolvem, direta ou indiretamente. Assim, o processo de formação tem contribuído para que os envolvidos vislumbrem outras possibilidades para a vida por meio da arte e também busquem cada vez mais se alimentarem das produções artísticas realizadas pelo coletivo e por outros artistas da nossa região.

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