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Direitos, cultura e natureza | Entrevista com Jaison Pongiluppi

A ideia de pensar em viver em uma ilha na cidade de São Paulo (sim, temos ilha!) pode parecer um tanto improvável, mas nos faz refletir sobre questões mais amplas

Publicado em 17/05/2018

Atualizado às 12:46 de 28/12/2018

A ideia de pensar em viver em uma ilha na cidade de São Paulo (sim, temos ilha!) pode parecer um tanto improvável, mas nos faz refletir sobre questões mais amplas, que não estão só no âmbito da preservação e conservação da natureza como um direito dos humanos de usufruir dos bens naturais existentes em nosso planeta. É uma provocação bem mais profunda sobre como nós, os humanos, estamos agindo em relação aos direitos da natureza.

Desde que, em 2009, a Assembleia Geral das Nações Unidas proclamou o dia 22 de abril como o Dia Internacional da Mãe Terra e que os estados membros reconheceram que a Terra e os seus ecossistemas compõem “nosso lar”, vários eventos internacionais vêm acontecendo para dialogar com as diversas esferas sobre o tema. Dia 3 de junho de 2018, por exemplo, acontece em São Paulo (SP) o 2º Fórum Internacional pelos Direitos da Mãe Terra, sucedendo o realizado na Cidade do México em 2016.

Entendendo que preservar os recursos naturais também é defender direitos, reconhecer ecossistemas e proporcionar um ambiente equilibrado, convidamos Jaison Pongiluppi para falar sobre “como as margens fornecem subsídios para a sobrevivência das vidas que estão no centro da cidade”. Permacultor, educador e articulador cultural, Pongiluppi trabalha no coletivo Imargem, na Escola Estadual Professor Adrião Bernardes e na Casa Ecoativa. Organiza a programação de eventos e festivais como Virada Sustentável, Estéticas das Periferias e Sarau de Cordas. Na agroecologia, como consultor da Associação Biodinâmica, criou a Comunidade que Sustenta a Agricultura (CSA) da Zona Sul. Atua também no Fórum de Cultura do Grajaú e na Rede Permaperifa.

A entrevista abaixo, em certa medida, foi um prenúncio de uma visita cultural da equipe de Inovação e Observatório do Itaú Cultural ao Ateliê da Margem e à Casa Ecoativa, ambos localizados na região do Grajaú, em São Paulo (SP), em março de 2018.

Observatório: Como surgiu o Imargem e quais são seus principais desafios como grupo artístico localizado às margens da represa Billings, no Grajaú, região sul da cidade de São Paulo?
 

Jaison Pongiluppi: O Imargem é muito mais que a junção das palavras “imagem” e “margem”. É uma iniciativa multidisciplinar criada em 2006 na região das margens da represa Billings, no Grajaú. O Imargem é um coletivo formado por educadores, artistas, ativistas, comunicadores, educadores ambientais e psicólogos, além de um grupo considerável de pessoas da região.

Nós propomos um olhar cuidadoso para a paisagem povoada da periferia. A ideia é fomentar, pensar, agir, imaginar a cidade diante de suas potencialidades e problemáticas, da margem à centralidade, de modo que possamos ampliar os olhares e aguçar as sensibilidades de todos os participantes em relação ao espaço urbano. Entendemos o espaço como paisagem povoada. O território nos é tão importante que nos faz debruçar sobre uma pesquisa que é uma utopia em construção, de se unir enquanto um movimento de produção de conceitos, metodologias, conteúdos e propostas de políticas públicas. A ideia é contribuir para a superação da visão hegemonicamente negativa sobre periferias e favelas.

As nossas ações são organizadas levando em consideração a área de produção ambiental, a desassistência por parte do poder público e também a interlocução com os moradores, com quem faz esse território.

Queremos apresentar uma arte acessível e politizada, ressignificando lixo, espaço e fronteiras. Esse é um viés do Imargem, que hoje tem mais de dez anos de existência, é reconhecido com o Prêmio Brasil Criativo 2016 e tem ampla atuação na cidade e também em outros espaços.

Como funciona o Imargem em relação ao modelo de gestão, às parcerias e à sustentabilidade das atividades realizadas?


Hoje somos reconhecidos como empresa e associação, na sua representação jurídica. As parcerias são das mais variadas, poder público, editais, algumas secretarias (Meio Ambiente, Cultura e Educação). Os editais são municipais, estaduais e nacionais. Temos também algumas parcerias com empresas privadas, universidades, escolas etc. Há também um nicho empreendedor dentro deste grupo, o que faz com que tenhamos essa sustentabilidade nas atividades realizadas. As pessoas que trabalham neste grupo vivem deste trabalho já há alguns anos, conseguem ter remuneração e estar 100% do tempo voltadas para as nossas atividades.

Levando em conta o tamanho populacional do Grajaú, um dos maiores bairros de São Paulo, como são pensadas as atividades artísticas e as programações do espaço?

Realmente é um grande desafio, pois o distrito do Grajaú é um dos mais populosos dos 96 distritos que formam a cidade de São Paulo. Inclusive, nós nem temos a pretensão de atingir todo mundo. Fazemos os trabalhos em espaços públicos, tentando atingir a maior quantidade de pessoas – crianças, adolescentes, jovens, terceira idade –, e também atuamos em outros espaços da cidade.

Utilizamos várias ferramentas para dialogar com o público, como grafite, educação, cultura, eventos públicos, intervenções e saraus. Assim, atingimos vários públicos – comunidade escolar, universidades, nichos empresariais, terceiro setor, iniciativa privada, comerciantes locais, empreendimentos –, sempre criando uma rede de parceiros, grupos e coletivos. Hoje, o Grajaú tem uma cena muito efervescente na área cultural e educacional, é um espaço de luta e um território de muitos anos de vivências.

Nossas atividades são pensadas coletivamente por um grupo gestor, considerando os atores sociais do território, os equipamentos públicos, a conjuntura política atual e as demandas que, como moradores do território, vamos descobrindo. É onde o calo aperta, já que se trata de um território desassistido pelo poder público, mas que tem muitas programações públicas e gratuitas em centros culturais, nas praças, nas ruas, na represa Billings etc. Enfim, nós buscamos oferecer uma vivência acessível para todas as pessoas e para nós mesmos. Queremos fazer o nosso trabalho, acessar e trocar com as pessoas, ter feedback para a nossa própria manutenção e crescimento.

Você pode comentar sobre a Casa Ecoativa? Como funcionam a gestão do espaço e as atividades voltadas à sustentabilidade e preservação da natureza?

Nascida em 1996, a Ecoativa é um programa de gestão ambiental, um projeto da Associação de Moradores da própria Ilha do Bororé, localizada no extremo sul da cidade de São Paulo (SP), na Área de Proteção Ambiental (APA) Bororé-Colônia, fomentando muitos grupos a partir das ações das margens. Inclusive, o Imargem nasceu das atividades da Ecoativa, na ocupação da represa, no teatro, na capoeira. Por meio de um convênio entre a Empresa Metropolitana de Águas e Energia S.A. (Emae) e a Secretaria do Verde, foi criado o centro de educação ambiental, trazendo para a comunidade conceitos como permacultura, economia solidária, turismo de base comunitária e direito à cidade. Hoje, esses conceitos são muito falados, mas já eram trazidos pelos moradores e pelos movimentos artísticos daquela época. Para se ter um exemplo, nos anos 1990, nos palcos da Ecoativa, já contávamos com a presença de Salloma Salomão, de artistas de hip-hop... O Pacto Latino, um dos primeiros grupos do Criolo com o André – mais conhecido como Drezz, do Xemalami –, já se apresentava...

Fomos tendo essas vivências, formando grupos e pessoas atuantes no território. Em 2006, o espaço foi fechado, retornando em 2013 como uma ocupação. As pessoas precisavam desse espaço ativo novamente e, com a força que tínhamos com a Escola Adrião Bernardes, conseguimos reocupar o espaço da Ecoativa e propor atividades de sustentabilidade e preservação, junto a uma série de outras.

Há muitos anos, a Ecoativa vem se consolidando como um espaço de luta e resistência. Ela é um centro de educação ambiental, principal extensão da Escola Adrião Bernardes, que faz um trabalho incrível de base com as crianças do Ciclo 1. Temos uma série de tecnologias de permacultura, o que faz da Ecoativa um lugar ímpar na cidade, considerado referência na área. Temos horta, captação de águas das chuvas, saneamento ecológico, exposições, parquinho, circulação cultural. Mantemos uma programação periódica de atividades que são pensadas juntamente com a escola, isso porque fazemos parte de seu Plano Político Pedagógico, cujas demandas são feitas via professores, alunos, comunidade escolar.

Quanto à produção artística desenvolvida no bairro, como é pensada sua circulação? E a dos artistas?

Como Imargem, temos um leque muito grande, mas eu acho importante falarmos como Fórum de Cultura do Grajaú, que tem várias linguagens abordadas. Cada um tem a sua expertise e vamos fazendo isso de uma maneira horizontal, coletiva e descentralizada. Pensar na circulação e na produção é um desafio, pois o território é muito grande. Além do Grajaú, temos Parelheiros, onde atuamos bastante também. Além dos dois distritos, temos as atividades de intervenção em demais pontos da cidade de São Paulo, a convite dos parceiros.

Essa produção vai sendo pensada com os grupos, os coletivos, a comunidade, as escolas e os educadores. Possui uma linguagem diversificada e tentamos, levando em conta que cada um tem seu núcleo coletivo, nos organizar semanalmente para trabalhar as prioridades e o que está mais latente naquele momento.

Fazemos esta leitura da “paisagem” para intervir, para incidir politicamente no território, nas políticas públicas, na produção, nos conteúdos. A partir daí, disseminamos essas ações em eventos, feiras, mostras e em uma série de outras atividades para que todos tenham acesso. Há essa preocupação de ter um viés de política pública e de democratização de acesso dessas práticas para alcançar as pessoas e fazer uma construção, ou, muitas vezes, uma desconstrução de ideias.

Em entrevista ao Observatório, Thiago Vinicius , da Agência Popular Solano Trindade, comentou as mudanças na região do Campo Limpo e a efervescência da produção cultural após a articulação da economia solidária, das redes e das parcerias. No seu ponto de vista, como podemos pensar políticas culturais com base nessas dinâmicas presentes na periferia?

A economia solidária é um caminho lindo. Realmente, precisamos pautar economia criativa e economia solidária, principalmente para trabalhar em redes e em parcerias, sendo elas de âmbito privado, do poder público ou de outras possibilidades. Temos que pensar em políticas culturais, educacionais e a periferia é um território efervescente e estimulante para que isso aconteça. E acontece, mesmo sem muitos incentivos.

Temos que ter conversas entre secretarias. Inclusive, uma das propostas de política pública é que a Ecoativa seja abraçada pelo poder público, no âmbito da Secretaria do Verde e da Cultura, fazendo esse link. Tivemos uma experiência positiva entre três secretarias, o Redes e Ruas, na gestão do antigo prefeito Fernando Haddad. Há uma série de retrocessos acontecendo na atual gestão. Nunca foi fácil, mas parece que está ficando cada vez mais difícil termos um diálogo.

A questão do território para os coletivos é algo muito presente. Temos vários exemplos de coletivos localizados em regiões periféricas que, por meio da arte e da cultura, transformaram a realidade das comunidades onde estão inseridos. Você pode comentar como é a relação de vocês com o território em que estão atuando? E com o Estado?

Para nós é muito importante essa relação, pois é onde temos a nossa plataforma de intervenção. Estudamos muito e entendemos deste território, sabemos o que é o Grajaú, esta vivência, esta história, quem são estas pessoas.

Infelizmente, existe uma política de apagamento das memórias. Por isso, buscamos trazer a questão do registro, da memória, da juventude, do encantamento a partir das margens. Eu acredito que aí existe uma transformação: a Ecoativa e o próprio Imargem são frutos dessa transformação. Somos cria de espaços que há 30, 40 anos estão lutando, estamos dando sequência a um trabalho que é feito há muitos anos e pautamos a ideia de passar o bastão, dar continuidade. Daí a importância de trabalhar com crianças e adolescentes: vamos despertando, cooptando os jovens, adolescentes, crianças e adultos para criarmos juntos narrativas e contrapontos à realidade das comunidades.

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