Acessibilidade
Agenda

Fonte

A+A-
Alto ContrasteInverter CoresRedefinir
Agenda

Documentando a memória

por Victória Pimentel Há 20 anos, Leonor Souza Pinto morava na França e trabalhava em seu mestrado – uma análise da peça Roda Viva, de...

Publicado em 29/06/2016

Atualizado às 20:59 de 02/08/2018

por Victória Pimentel

Há 20 anos, Leonor Souza Pinto morava na França e trabalhava em seu mestrado – uma análise da peça Roda Viva, de Chico Buarque. Desde então, é movida por um desejo: vasculhar a censura estabelecida durante a ditadura militar. Seu principal enfoque: o cinema brasileiro. Lolô, como é conhecida entre os amigos, então realizou seu projeto de doutorado, no qual investigou os processos de censura de cerca de 20 filmes. A pesquisa foi o primeiro passo para a criação do que se tornaria o site Memória da Censura do Cinema Brasileiro. Hoje, o banco de dados completa dez anos no ar e lança sua terceira edição, contemplada pelo Rumos 2013-2014.

Leonor Souza Pinto deu continuidade à sua pesquisa 1996, quando morava na França e recomeçava o seu mestrado.

 

 

“Uma vez criado, o projeto se mostrou muito maior e mais importante do que minha ideia inicial. Ele cresceu e se tornou o que é hoje”, conta Leonor, lembrando que antes do site seu objetivo era escrever um livro sobre esse tema. Desta vez, em seu terceiro lançamento, os cerca de 6 mil documentos disponibilizados enfocam os primórdios do cinema brasileiro, com destaque para a produção de estúdios cinematográficos (Atlântida, Vera Cruz, Pam Filmes e Maristela) e o cinema independente.

Entre os filmes com processos documentados e hospedados no site, destacam-se O País de São Saruê (1971), de Vladimir Carvalho, e Iracema – uma Transa Amazônica (1975), de Jorge Bodansky e Orlando Senna. Os documentos atestam que, segundo Wilson de Queiroz Garcia, chefe substituto do Serviço de Censura de Diversões Públicas, o longa de Carvalho atentava “contra a dignidade e os interesses nacionais”.

O censor Manoel Felipe de Souza Leão Neto completa afirmando: “Filme documentário apresentando aspectos da miséria e do subdesenvolvimento do Nordeste brasileiro de maneira derrotista e pouco recomendável para divulgação nos cinematógrafos do País. O produtor deu ênfase aos problemas negativos e ao profundo sofrimento do camponês, evitando filmar cenas destacadas do progresso e das facilidades econômicas já encontradas na região. [...] O filme não atende aos interesses nacionais”. O País de São Saruê foi interditado no Brasil e proibido de participar de festivais internacionais, bem como de ser negociado no exterior.

No caso de Iracema, cujo processo de censura conta com quase cem páginas de documentos, a preocupação com as contestações ao governo se revelavam ainda mais evidentes. “[...] Pelo tratamento dado ao tema, deduz-se que a intenção do produtor do documentário foi mostrar os aspectos negativos porventura existentes no Brasil, procurando influenciar negativamente o espectador contra o regime vigente. Em face do exposto, sugerimos a não liberação deste filme”, divulga o documento assinado, em 1977, pelos censores Solange Vaz dos Santos, Marlene Rodrigues Celani, Maria José Bezerra de Lima, Odila Geralda Valadares e Izabel Maria Martins de Carvalho.

Discussão que não pode parar

Sempre árduo, o processo de pesquisa é muito detalhado. Após ser decidido o recorte do que será pesquisado, bem como quais cineastas e filmes farão parte da investigação, parte-se para a apuração prática. Em Brasília, onde estão localizados os acervos documentais da censura militar – de 1964 a 1988 –, em um processo longo e minucioso, cada arquivo é separado, copiado e identificado. Todos são digitalizados e tratados para que, enfim, estejam disponíveis no MemóriaCineBr.

Apesar da complexidade do processo, Leonor ressalta que o esforço vale a pena: “Cada vez que lançamos uma nova edição, vejo como é urgente lançar a próxima”. Ela destaca que, além de conservar os originais do acervo de censura – uma vez que os documentos podem ser acessados diretamente pelo site – e colaborar na preservação de dados sobre os próprios filmes, o site tem um compromisso muito grande com a memória. “O MemóriaCineBr é uma tocha ardente no universo nebuloso que o país vive hoje. É a lembrança de que memória é para ser respeitada, pensada. Lições precisam ser aprendidas – e são muitas. Nós trabalhamos para um Brasil que tem memória e trabalhamos para que ela nunca se apague.”

Entre estudantes secundaristas, universitários, professores, pesquisadores, cineastas e produtoras, os jovens são alguns dos usuários mais importantes. “Tenho especial carinho por eles”, conta Leonor. “Através do nosso trabalho, podem se apoderar de um pedaço da nossa história ainda muito mal contado nos livros escolares. A gratidão com que nos respondem é sempre um grande incentivo nos momentos difíceis do nosso trabalho.”

Ainda que tenha alcançado a meta de 20 mil documentos hospedados no site, a pesquisadora já pensa nas próximas edições. No futuro, pretende reunir material sobre os primórdios do cinema brasileiro, mais documentos sobre o cinema independente e ainda um novo recorte: cinema realizado por mulheres. Manter-se no ar, para Lolô, é fundamental, não apenas por manter viva a memória de mais de 20 anos atrás, mas também por continuar fomentando uma discussão sobre a censura – sobre como ela era um dos pilares de sustentação do regime militar e sobre suas implicações para a história do Brasil e a atualidade.

“O que hoje não existe mais é a censura prévia institucionalizada – o que pode ser mais difícil de certa forma, porque não temos contra quem ou o que nos manifestar”, diz ela. “No entanto, cada vez que a imprensa é pressionada ou processada, que informações são ocultadas ou manipuladas para servir a interesses particulares, estamos vivendo censura.”

Compartilhe