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Cidade Vodu | MITsp 2016

José Fernando dirigiu a peça Cidade Vodu, apresentada na última edição da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp) na Vila...

Publicado em 10/05/2016

Atualizado às 10:24 de 03/08/2018

José Fernando dirigiu a peça Cidade Vodu, apresentada na última edição da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp) na Vila Itororó. Na entrevista, fala sobre as inquietações que motivaram o Teatro de Narradores a abordar as questões raciais e outras questões ligadas à imigração de haitianos em São Paulo.

(Foto: Mayra Azzi)

Quais foram as inquietações do Teatro de Narradores que levaram à criação/produção da peça Cidade Vodu?

Cidade Vodu resulta de um encontro. Como muitos grupos de teatro em São Paulo, no início de 2014, corríamos o risco de perder nossa sede, que fica no bairro da Bela Vista. No nosso caso, a situação decorria de um confronto com proprietários, mas isso, nós sabemos, era só mais um capítulo na luta pelos usos e apropriações de espaços na cidade. A própria escolha de pagar aluguel para viabilizar um espaço público faz parte de um processo contraditório e depõe da ausência de políticas efetivas de viabilização do trabalho artístico na cidade. E não digo isso desconsiderando o avanço que foi, por exemplo, o Programa de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo – ponto alto e sempre em risco de uma luta ainda em andamento. O fato é que, num período de negociações difíceis em torno de uma reforma estrutural no prédio, para continuar trabalhando, decidimos realizar uma residência artística na SP Escola de Teatro, em sua já extinta sede do Brás. Nosso interesse pelo bairro compreendia a tentativa de saber mais sobre as relações entre imigrações recentes e a vida num bairro popular: formas de trabalho, de moradia, de convívio. Isso dava continuidade ao nosso interesse em formas migratórias, trabalho e organização dos trabalhadores – questões que apareciam em trabalhos anteriores, como os espetáculos Cidade Desmanche e Cidade Fim Cidade Coro Cidade Reverso.

Foi nesse movimento – de ida da Bela Vista para o Brás – que, atravessando o bairro do Glicério, nos deparamos com a chegada de uma leva de haitianos despejados pelo governo do Acre na cidade de São Paulo. Foi impactante; fez com que parássemos ali e tentássemos ver mais, ouvir mais, saber mais. Em pouco tempo estávamos convencidos de que tínhamos ali um campo de interação e investigação. O contato com as pessoas e suas histórias foi nos mobilizando. Era ainda um contato intermitente, pois não tínhamos um fim, e qualquer coisa que fizéssemos, naquele contexto, era de uma irrelevância sem tamanho. As pessoas, em situação de refúgio, precisavam mais do que contar suas histórias, precisavam de trabalho, comida, moradia.

Em meio a uma espécie de caos, deparávamo-nos com haitianos, congoleses, senegaleses, sírios; gente refugiada por questões econômicas, políticas. Mas, naquele momento, a presença haitiana ali era incontornável. Nesse processo, fomos entendendo mais sobre o sentido dessa migração, o teor próprio da diáspora haitiana, sua história desde a revolução, o significado dessa revolução em confronto com os ideais do iluminismo e da modernidade na Europa, o papel do Brasil naquele país e as implicações da presença negra haitiana entre nós. Terminamos o ano de 2014 próximos de algumas dessas pessoas e convencidos de que falar um pouco sobre isso implicaria também falar um pouco sobre nós.

Você poderia comentar como foi o processo de construção desta peça – tanto em relação à seleção dos atores brasileiros e haitianos quanto em relação aos temas para construir a narrativa? Quais os desafios travados devidos às diferenças culturais e linguísticas?

Na medida em que estabelecemos contato, esboçamos também uma pequena rede de relações. O nosso, digamos, impulso etnológico converteu-se numa espécie de vínculo. Fazemos teatro e, de repente, algumas pessoas se interessavam por isso: jovens, em sua maioria com formação universitária, tomados pela urgência de falar sobre sua condição. Fomos conhecendo alguns músicos, um cineasta, pessoas que desejavam atuar. Logo entendemos que se tratava de fazer uma peça que pudesse falar, ao mesmo tempo, da diáspora haitiana – condicionada em grande parte pelo longo processo de interdição de uma revolução negra ainda vivida no presente –, da forma assombrosa como o Brasil interveio naquele país, fazendo o serviço sujo no cotidiano da violência, e, ainda, do modo como a cordialidade brasileira abriga e obriga essa presença negra entre nós.

Nosso espaço de ensaio se converteu num laboratório plurilinguístico e cultural. Deslizávamos entre o português, o francês e o crioulo haitiano. A língua tornou-se o elemento decisivo na organização do material.

De outra parte, brasileiros e haitianos estavam juntos, em cena, e isso impunha a necessidade de instaurar uma prática comum de jogo, que potencializasse as qualidades dos jogadores a partir de suas diferenças.

O resultado é uma peça crioula: falada em crioulo, português e francês. Narramos a trajetória de um jovem haitiano, sua história no seu país até sua chegada ao Brasil, por um lado; e, por outro, aspectos da sua chegada aqui – além de um pouco de nossa presença lá. Tudo isso é constituído a partir de uma estrutura fabular, em que os depoimentos originais foram reelaborados poeticamente, muitas vezes deslocados para que a fábula se fizesse.

O que entendemos nesse processo é que, na lida com essas trajetórias, o que estava em jogo não era exatamente a distinção entre o que fosse documental ou ficcional, mas a nossa capacidade de, juntos, imaginar algo. O que importava era esse momento em que narrar significa dar sentido a uma trajetória. Isso se tornou ainda mais urgente para nós na medida em que compreendíamos o modo como a história atravessa a vida do indivíduo no Haiti; contar a sua história individual é já contar a história do país. De maneira vertiginosa, às vezes alucinante, mito, história, testemunho e autoinvenção se atravessam na conformação de uma outra História.

(Foto: Mayra Azzi)

Você percebeu a presença dos imigrantes no público da peça? Teve alguma formação ou oficina para esse público?

Tivemos seis apresentações durante a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, quando ainda tentávamos instaurar o espetáculo na sua complexidade, em meio a muitas dificuldades técnicas na relação com o espaço, na quantidade de público etc. Durante o festival, para além do contato com alguns espectadores convidados, conversamos com um público de especialistas, curadores, estudantes, assíduos do teatro e pessoas interessadas em novidades. Entraremos em temporada a partir do dia 24 de março e creio que será a partir daí que nossa interação com grupos de imigrantes e uma gama maior de espectadores se dará. Sobretudo porque se trata de uma temporada gratuita.

Não acredito que seja necessária uma oficina para formar público para esse espetáculo. O que se faz necessário são condições para que as pessoas produzam, assistam e discutam mais teatro. Nestes 18 anos de trajetória do Teatro de Narradores, certo público tem se formado na mesma medida em que nossa cena se tem configurado, transformado, amadurecido. Não há público sem cena, e a cena se forma ao mesmo tempo que vive seus confrontos.

Como arte pública, o teatro tem o tamanho da vida pública entre nós.

Com base na experiência que você teve na construção da Cidade Vodu, quais são os principais desafios para a criação de uma política cultural inclusiva e que pense a questão dos imigrantes?

Antes de tudo, seria importante pensar o sentido de políticas para cultura num país como o nosso. Valeria a pena discutir, por exemplo, como se tornou possível existir uma organização como o Itaú Cultural. Ademais, arte e cultura, enquanto produtos, não salvam ninguém. Assim, no que toca a condição do imigrante no Brasil, importa saber até que ponto o Brasil quer o imigrante e quais as condições de sua presença entre nós. Com isso, o mito de nossa cordialidade e da convivência feliz entre todos – há muito desfeito – não pode ser substituído pela cultura da tolerância – porta de entrada para os fascismos, velhos e novos. Portanto, o que quer dizer uma política cultural inclusiva? O que significa, aqui, essa ideia de inclusão? Incluir onde? Por quê? Trata-se de dar condição de produção? O que realmente se pensa acerca das relações entre produção e consumo? No caso dos haitianos, mais do que uma cultura diferente, há o fato de que são negros, de que querem condições de trabalho, de sociabilidade e já entenderam que palavras como inclusão ou integração não interessam, pois em crioulo elas se traduzem como submissão. Sendo eles negros, falando uma língua em que nèg quer dizer humano, negro e haitiano, não cansam de se interrogar sobre o lugar do negro no Brasil. O problema do negro não é haitiano, africano ou brasileiro, é um problema mundial. No atual ciclo migratório é bem possível que negro e imigrante se confundam.

(Foto: Mayra Azzi)

Que caminho você acredita que pode reverter esse quadro e promover as condições demandadas pelos imigrantes haitianos?

Os haitianos enfrentam problemas que reiteram e aprofundam aqueles enfrentados pelos negros brasileiros. Por outro lado, a experiência que define a diáspora haitiana – que tem sua própria história e especificidade desde a revolução – faz evidenciar o problema em seu sentido mundial. Não sou político, nem gestor, não trabalho com soluções. Apesar da formação, não sou filósofo profissional, então não preciso esperar um novo terremoto. Meu trabalho é o de imaginar coisas. E, para isso, no teatro, que está cada vez mais reduzido a um campo da cultura, resta evadir a metafísica dos encontros, das presenças e reconhecer, de uma vez por todas, que é preciso dar à cena a imagem pensada desse longo processo em que nos tornamos aquilo que somos. Algo que tem a ver com uma arqueologia do futuro.

No teatro, encontro pode se converter em aliança; presença pode produzir confrontos. Alianças e confrontos provisórios, precários. A potência dessas alianças e desses confrontos é sempre cifra das tensões sociais que nos determinam, e precisa ser verificada na voltagem estética de cada obra. Nesse sentido, o teatro não é mera revista do que foi, nem mera crônica do que está sendo, mas trabalho de interrogação sobre o que podemos e desejamos fazer. Sem ensaios, a cena não tem ido além de algum espontaneísmo e certo voluntarismo. Para uns, isso é um limite, uma condenação, e tentam superar essa condição esperneando performatividades de todo tipo – mas o teatro, mesmo quando estreia, é sempre um ensaio.

Podemos perceber que, muito tardiamente, as questões raciais estão recebendo luz e se está desconstruindo a imagem de que não existe racismo no Brasil. Como você percebe isso na produção artística teatral? E em outras expressões artísticas?

Sou professor de história do teatro brasileiro e sei que essa história, em sua versão oficial, é a da supressão do negro – da vida, da cena. Uma leitura a contrapelo permite ver os modos pelos quais essa supressão foi sendo alegorizada, cifrada – de modo que, toda vez que a cena tentou contrapor-se a esse processo, no interior dele, viveu confrontos e bloqueios. O que temos, nos últimos anos, inscrita sem dúvida num processo social que lhe excede, é a configuração de um teatro negro que, sem abrir mão da história de luta que o inspira, impõe, no entanto, um outro padrão de combate e de formulação poética. O Teatro de Narradores não se inscreve diretamente nessa história, e Cidade Vodu é antes resultado, digamos, de um impulso de realismo. Por outro lado, como dramaturgo e diretor, fiz a dramaturgia de três peças com Os Crespos, das quais dirigi duas. O grupo, formado por ex-alunos na Escola de Arte Dramática, foi, em parte, a minha escola de negritude. Isso quer dizer que o trabalho dos grupos não existe sem uma efetiva militância.

Com efeito, a sua pergunta revela parte dos impasses reais: não, as questões raciais não estão recebendo luz, mas o negro tem, em sua luta, produzido práticas e discursos que revelam a falácia de nossas formas de convívio.

(Foto: Mayra Azzi)

Todavia, o que implica um teatro negro, hoje, quando o capitalismo que inventou o seu negro nas práticas de exceção que o estruturam vai radicalizando a sua ordenação num estado de sítio permanente, de que a colônia foi o laboratório durante séculos, alastrando-se agora, como desenvolve o filósofo e cientista político Achille Mbembe, na imposição de um devir negro do mundo?

Como você percebe o impacto das políticas públicas culturais na produção artística no Brasil no que se refere à questão das negritudes, das religiões com matriz africana, dos imigrantes? Tem tido espaços para esses diálogos e discussões?

A resposta para essa pergunta é simples: não. Mas essa pergunta repõe uma lógica de inclusão de demandas. O problema do negro, no Brasil, não é um problema do negro. Trata-se de um impasse estrutural e estruturante da sociedade brasileira. Enquanto não se fizer evidente a consequência de uma sociedade escravocrata, não se compreenderá o que é, de fato, a sociedade brasileira. A escravidão não foi entre nós um mero arcaísmo, mas a marca a ferro da modernidade europeia; uma espécie de ultramodernismo, a verdadeira dialética do esclarecimento; uma tecnologia que sustentou o fundo falso da ideologia europeia da liberdade, igualdade e fraternidade. No caso dos haitianos, eles ousaram imaginar a radicalização da Revolução Francesa, mas os franceses disseram: “sim, direitos universais do homem, mas vocês são negros”. No nosso caso, (pau-)Brasil e negro foram, durante séculos, duas mercadorias que definiram o sentido de nossa colonização. Qual, então, o espírito dessa nação cuja culminância foi tornar o real moeda?

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