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Jorge Bassani | Série ‘Coletivos culturais’

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP), Jorge Bassani fez parte dos coletivos de...

Publicado em 06/04/2016

Atualizado às 10:22 de 03/08/2018

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP), Jorge Bassani fez parte dos coletivos de cultura Manga Rosa e Alienarte, que atuavam na cidade de São Paulo nos anos 1970 e 1980. Além de compartilhar sua experiência e comentar as atividades de coletivos contemporâneos, o professor fala sobre a relação existente entre arte e cidade a partir de uma perspectiva urbanista.

Jorge Bassani é doutor em arquitetura e urbanismo, coordenador do grupo de estudos Mapografias Urbanas (GeMAP) e vinculado à rede internacional de pesquisa Rede de Problemáticas Urbanas Contemporâneas (RED-PUC). Pesquisa métodos, temas e ações relacionadas à cidade contemporânea.

Você participou de alguns coletivos na cidade de São Paulo ao longo dos anos 1980 e 1990, coletivos esses que desempenharam um importante papel na vida cultural da cidade. Como você avalia esse período?

Eu participei de dois coletivos (na época, os chamávamos “grupos”), o Alienarte e o Manga Rosa, na passagem dos anos 1970 para os 1980. Fizemos parte de uma cena paulistana não muito numerosa, mas bastante barulhenta. Na década de 1990 confirmam-se o grafite e o picho como presenças quase absolutas nas artes urbanas outdoor em São Paulo – já não são mais os mesmos grupos, nem os mesmos princípios, ou conceitos talvez, de intervenção na lógica urbana.

O mais interessante, a meu ver, para avaliar os artistas que levaram suas questões e respostas, sua produção, para as ruas no final dos anos 1970 não é tanto o “papel que tiveram para a vida cultural da cidade” e, sim, que registro eles fazem daquele período. Em outras palavras, é olhá-los como fenômenos de uma situação urbana – logo, política – específica e especial.

E o que torna este período especialmente específico, já que sabemos que todos são? Em escala internacional: os manifestos e as manifestações sobre a obsolescência do moderno, a verbologia “pós-moderna”, o colapso das cidades – que impuseram o modelo de requalificação e ressignificação nos grandes projetos urbanos a partir dos 1980; o movimento punk; o avançar da crise do petróleo; sinais das crises (e conflitos) religiosos e ideológicos... Acho que não precisa dizer mais.

Em escala nacional: evidentemente, o pano de fundo é a ditadura capengando e o processo de abertura política (a Lei de Anistia é de 1979, a eleição direta para presidente ocorre em 1989), mas tão significativo quanto isso é a situação urbana de São Paulo nesse momento. A decadência do Centro torna-se real e irreversível, presenciamos ao vivo as teorias de gente como Flavio Villaça sobre o “exclusivismo de nossas elites” e o mover-se do centro para outras áreas, com o abandono de estruturas físicas e simbólicas essenciais à lógica da cidade. Na década de 1970 está consolidada a política das vias expressas, isolando os bairros históricos e abrindo território para o “crescimento periférico ilimitado”. Finalmente a sociedade paulistana se reconhece como metropolitana, agora é uma situação material.

A cena cultural da cidade reflete esse panorama político urbano. Especialmente este último termo, urbano, nunca mais será visto como um atributo territorial: de lá pra sempre (até agora) passa a ser uma condição de existência. A cultura da cidade abandona de vez (os anos 1950, com o concretismo, já tinham deflagrado essa condição, mas nos 1970 ela é de senso geral da população, não um entendimento da vanguarda) seu passado agrário com a leveza do caipira e romântico que sempre caracterizou São Paulo. Estar na cidade em si já é uma ação cultural. A música “Diversões Eletrônicas” do Arrigo, Lira Paulistana nos porões da Praça Benedito Calixto, Festival do Fim do Mundo no Sesc Pompeia. Tudo e todos querem estar e ser urbanos.

Os coletivos de 1970 para 1980 fazem parte disso tudo. Contudo puxando a brasa, nós, diferentemente de músicos, poetas ou cineastas, mexíamos com a forma física da cidade, o que chamávamos de “intervenção urbana”. De certa forma estávamos, tal qual os situacionistas, empenhados “em construir cidades”. Ou pelo menos alterá-las ao nível da percepção. De tal forma que os espaços da cidade eram de fato nossa matéria-prima e nossa mídia. Bobagem frisar, mas é um dado: muito antes do teatro, da música e mesmo dos grafiteiros se apresentarem como artistas na ruas da cidade.

Digo e friso “artistas na cidade” porque uma questão importante, pelo menos para o Manga Rosa, era não ser identificado como arte, mas antes como fato urbano, mundano e cotidiano. Usando um termo de Solà-Morales: como “coisas urbanas”. Quando falamos em artistas – artes plásticas e gráficas – atuando em grupos naquele período devemos abrir um grande leque: desde a imprensa alternativa originária do período de repressão que, no final dos 1970, altera sua matriz política para um perfil mais anárquico e apartidário (Sanguinovo, Cine-Olho, Jorna do Brabil) até a arte postal, – um coletivo mundial pré-web – ou arte xerox. Entretanto, tiveram mais exposição como grupos de intervenção urbana três deles: Grupo Manga Rosa, 3NÓS3 e Viajou Sem Passaporte.

De certa maneira, eles se configuram como precursores dos atuais coletivos, em que medida e condições ainda está por se verificar de forma mais sistemática. Em outro sentido, eles podem ser avaliados como muito diferentes dos atuais. Obviamente, as estratégias e ações são totalmente diferentes. Não pela proposta dos coletivos em si, mas porque tudo é diferente do ponto de vista de ação artística e política na cidade, em todos os sentidos – político, tecnológico, social.

Este é o dado mais interessante hoje a ser observado: como podemos entender essas “coisas urbanas” e seus atores coletivos em cada um de seus contextos.

Os coletivos dos 1970 se afastaram do engajamento político, mas tudo que fizeram foi político, no sentido mais fundamental de política. O ato de ir para as ruas, além da busca por audiências massivas e pela rebelião contra o mercado de arte sectário e embolorado, se dava porque o que interessava a estes grupos era ser público, estar no lócus da movimentação social, de onde vem e para onde vai qualquer coisa cultural no âmbito urbano. Soma-se a isso a clandestinidade e a insurgência necessárias para habitar este lócus ainda sob vigia dos militares. Não tínhamos redes sociais, nem mesmo internet – estava se começando a falar no assunto naqueles anos. A única mídia para atingir as audiências urbanas, como aprendemos com a geração concretista, era o espaço físico e público na cidade.

Considerando o mesmo panorama de acesso à informação – até as revistas impostadas eram inviáveis pelos preços –, nós éramos uma geração isolada pelos instrumentos da ditadura. Tivemos de sair à caça da herança recente que não chegou como devia até nós. Presencialmente fomos atrás da geração que estava saindo da toca ou regressando ao país, os tropicalistas, os concretistas, os professores cassados. Estes contatos, principalmente com a geração concretista, poetas e artistas plásticos, formaram nosso patrimônio e repertório cultural. Nós, do Manga Rosa, procuramos – e fomos recebidos de braços abertos por todos – muitos deles: os irmãos Campos, Pignatari, Nogueira Lima, Zé Celso, Julio Plaza, Jorge Mautner e mais um grande número de artistas e intelectuais das gerações anteriores tão ávidos de falar de seus trabalhos quanto nós de ouvi-los.

Sobre os coletivos contemporâneos, quais são, na sua opinião, as especificidades do modo como organizam suas produções e a gestão de seus trabalhos?

Eu não sei se tenho uma opinião sobre isso, tudo muda muito rapidamente nos dias de hoje. Coisas desejadas nos anos 1980 hoje são de extrema banalidade, internet, ruptura entre produtor e receptor de conteúdos informacionais, os movimentos sociais e por aí vai.

Os coletivos de hoje usam estratégias muito diversificadas e abrangentes. O importante é relevar como eles se adaptaram a estas novas possibilidades e conseguiram reagir a elas com tanta desenvoltura – não importa se para o bem ou para o mal. É uma questão de geração e do mundo que lhe é oferecido. Os coletivos recentes alcançaram grande repercussão, é assunto constante nas mídias todas, mas as reflexões a respeito deles são superadas com a mesma rapidez com que os coletivos (numerosíssimos) surgem. Viraram ‘moda”, talvez algumas análises só sejam possíveis quando a moda passar e, principalmente, conseguirmos enxergar as ações que permanecerão.

Contudo, uma coisa me chama atenção especialmente nos coletivos atuais: a compreensão de que o que fazem é eminentemente político. Coletivos, para citar um exemplo entre muitos, com o Contrafilé, militam a partir de uma plataforma muito distante da artística, entre seus membros a minoria é artista. São trabalhos muito mais radicais no sentido de “construir cidade” do que os que fazíamos.

Entre as interlocuções entres as duas gerações, essa me parece bem interessante, o caráter artístico. Embora em discurso almejássemos produzir “coisas urbanas”, em nosso íntimo e como fomos recebidos pela sociedade, especialmente a mídia, fazíamos arte, éramos artistas – incluindo sempre arquitetos e designers. Os atuais, não. Principalmente a partir da ocupação do edifício Prestes Maia no início dos 2000, uma nova perspectiva de ação, e de diálogo e parceria com os movimentos sociais, SE ABRIU. Naquele momento, os coletivos faziam arte – desqualificável como tal, mas intensa como participação num processo social. Entretanto deu abertura às ações que vemos hoje.

Distingo como sendo não mais intervenção artística urbana, mas, sim, ação política urbana. E eu gosto muito dessa possibilidade.

O modelo de produção artística por meio de coletivos passou, desde sua origem, por altos e baixos. Você tem algum palpite sobre o motivo que leva, de tempos em tempos, essas práticas a uma efervescência? Você acredita que os modelos dos editais de fomento interferem de alguma forma no modo como os artistas se organizam para produzir?

Não acho que tenha passado por altos e baixos de forma diferente de qualquer outro tipo de produção cultural. Acho que temos momentos mais propícios para encaminhamentos específicos. Da mesma forma que a situação sociopolítica da virada dos 1970 para os 1980 foi favorável para aquele tipo de trabalho, os dias atuais também são especiais e indutores deste tipo de ação. O mundo passou e tem passado por um período obscuro politicamente e economicamente, no final dos 1920, quedas do muro e cortina, neoliberalismos e yuppies abandonaram os projetos coletivos, o Estado afastou-se mais ainda da base da pirâmide populacional, os coletivos também são uma resposta a esta situação, assim eles assumem a dimensão e a densidade de fenômeno cultural de grande importância.

Sobre os editais, não sei dizer. Alguns viabilizam a amplificação de trabalhos importantes, mas, claro, depende do edital e de suas metodologias de seleção. A maioria é sempre questionável, não acho viável qualificar trabalhos de coletivos como se fossem exclusivamente uma questão estética.

Como a arte pode reconfigurar o espaço urbano? Você poderia apontar alguma ação atual?

De inúmeras maneiras. Os gregos antigos já faziam isso, a cidade burguesa industrial também. Mas são ações do poder estabelecido. Talvez a pergunta seja em relação a reconfigurar o espaço urbano a partir dos desejos das massas, por assim dizer. O que mais reconfigura o espaço, qualquer espaço, é o uso. Portanto, a resposta é: usando!

Arte no espaço público é estática, é um ser estranho ali colocado. Ações que trazem, inclusive com a arte, as pessoas para o espaço público sempre é transformadora desses espaços.

Estrategicamente colocada a partir de um programa consciente de ações com este propósito, temos um grande número de exemplos: o já mencionado Contrafilé, o Jardim Miriam Arte Clube (Jamac), Estopô Balaio. Um monte deles. Sempre lembrando que o só propósito não garante efetividade. O que garante efetividade é o pertencimento e a adesão dos usuários urbanos.

A produção artística das periferias muitas vezes não consegue circular nos equipamentos localizados nos centros urbanos. Todavia, estão conseguindo visibilidade, seja pelas redes, seja pela internet ou por canais não institucionalizados. Do seu ponto de vista, como é possível aumentar a inclusão dessas produções nos “espaços institucionalizados”?

Talvez o mais importante na discussão sobre os coletivos seja a questão da territorialização. Não sei se interessa a alguém a institucionalização desses coletivos, seu papel transcendental é dar uma nova perspectiva à condição de periferia urbana, nova consciência de território e de pertencimento. E isso só é possível se a ação estiver territorializada. Não que a exposição e ampliação pelas mídias digitais prejudique isso, mas insisto na importância do fato físico espacial e social dessas ações no território.

As ocupações artísticas de edifícios e praças têm alcançado importância significativa para a vida cultural da cidade nos últimos anos. Como você, na condição de artista e pensador do espaço urbano, avalia ações como as que ocorreram em ocupações como Ouvidor 63, Casa Amarela, Largo da Batata, Minhocão etc.? Você tem algum palpite sobre o futuro dessas ações?

É impossível homogeneizar essas coisas e fazer uma avaliação única para a imensidade de ações como as citadas que acontecem em São Paulo nos últimos anos. Algumas coisas vão no embalo, sem ter a menor noção do significado embutido na pergunta. Outras são de grande potencial cultural e urbano, mas passam por processos de diluições até ficarem quase bobocas. Em 1980, o Manga Rosa criou o projeto Ao Ar Livre, que reuniu grande parte dos coletivos daquela época que trabalhavam em São Paulo ocupando uma placa de outdoor. O primeiro, o editorial do projeto, trazia um trecho do poeta tropicalista Torquato Neto que acabava assim: “Primeiro passo conquistar espaço / Tem espaço à beça / Ocupe / Se vire”.

Muito antes das ocupações virarem, mais que palavra de ordem, um slogan, o Manga Rosa havia colocado a ocupação como estratégia insurgente sobre a cidade. Continuo acreditando nisso.

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