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"Lindo Sonho Delirante": "crowdfunding" e música brasileira | Entrevista com Bento Araújo

O Observatório conversou com o colecionador de discos e escritor Bento Araújo, autor de Lindo Sonho Delirante: 100 Discos Psicodélicos do Brasil (1968-1975)

Publicado em 18/07/2018

Atualizado às 11:47 de 03/08/2018

O Observatório conversou com o colecionador de discos e escritor Bento Araújo, autor de Lindo Sonho Delirante: 100 Discos Psicodélicos do Brasil (1968-1975), publicado em 2016 e vendido em mais de 40 países.

Jornalista e pesquisador, Bento optou pela independência em seus projetos editoriais. Começou tocando em bandas e trabalhando em lojas de discos e, em 2003, criou o poeira Zine, publicação impressa e independente que apresentou um considerável contingente de informação sobre artistas de todo o planeta que nunca haviam contado com a atenção da grande mídia. A repercussão do poeira Zine, com 69 edições publicadas em 13 anos de atividade, abriu caminho para a criação de um podcast semanal, o poeiraCast.

Como palestrante, mediador e curador, Bento participa de eventos musicais em todo o país e, como repórter, já cobriu festivais, shows e eventos musicais na Europa, nos Estados Unidos e em vários países da América Latina. Com textos e ensaios publicados nos principais jornais do Brasil e nas revistas especializadas Bizz, Rolling Stone, Rock Brigade e Roadie Crew, já apresentou o programa Heavy Lero, com Gastão Moreira e Edgard Piccoli.

Para seus projetos, como o poeira Zine e, mais recentemente, os dois volumes de Lindo Sonho Delirante, você chegou a entrar em contato com alguma editora em algum momento? Ou sempre priorizou a independência?

Eu poderia até dizer que sempre quis ser independente, mas não é bem assim. Em alguns momentos, passou pela minha cabeça procurar editoras e, nessa trajetória do poeira Zine, até considerei fazer parceria com bancas, mas percebi que não era esse o caminho para mim, para meu público e para o estilo de publicação que eu queria fazer, que possuía um nicho específico de mercado. Constatei que, se eu tivesse ido para as bancas, talvez o poeira Zine não teria durado um ano, por causa da necessidade de uma grande tiragem e do modelo de devolução. Por isso, pensei em produzir uma tiragem menor e vender aos interessados no assunto, fazendo a coisa crescer a partir disso, seguindo o esquema de assinaturas. Com isso o poeira Zine se manteve por 13 anos.

Quando parti para o projeto do livro, pensei que, com a comunidade que eu havia montado, conseguiria produzir sem ter de recorrer a editoras. Foi quando surgiu o crowdfunding no Brasil. Estudei sobre financiamento coletivo, conheci a equipe do Catarse e lancei a campanha do primeiro livro em 2016, totalmente independente. Acho que ser independente é uma opção e tem relação com uma liberdade maior para publicação, além de um contato mais próximo com o público. Mas, sim, passou pela minha cabeça procurar editoras nesse meio-tempo. Até fui atrás de algumas, mas as propostas não eram interessantes e, muitas vezes, eram até ofensivas aos autores com o que ofereciam. Continuei independente.   

No texto de seu projeto para o livro, você inicia dizendo que acredita “na compatibilidade das ideias e na união das pessoas em prol de um ideal”. Nesse sentido, você entende o formato de financiamento coletivo como uma forma de unir pessoas? E o sucesso dos seus dois projetos representaria isso que você chama de compatibilidade das ideias?

Acho que sim, e este é o mote do financiamento coletivo. Você ter uma ideia com que algumas pessoas vão se identificar e sentir que precisam fazer parte daquilo. Mas é necessário também ter uma comunidade e montar uma rede de conexões – que foi o que eu fiz com o poeira Zine. Lógico, há um misto de pessoas que não me conheciam e tiveram contato com o projeto a partir da campanha.

Mas esse é o mote de fazer acontecer uma publicação independente, um livro que não existe. Sem contar o fato de a publicação também ser em inglês. Isso tudo ajuda no sucesso da campanha.

Para os livros, você incluiu a possibilidade de sugestões de músicos e discos a ser resenhados. Como você recebe essas sugestões e o que tem de coletivo em suas obras para além do crowdfunding?

Esse modelo de sugestão para os livros foi algo muito interessante. Na época do poeira Zine, eu não era tão aberto à interatividade. Até que um dia fui convidado a dar uma palestra sobre como gerir e montar uma comunidade por meio da música. Foi quando a equipe que estava organizando o evento me deu um toque de que, quando eu abrisse para o meu público me ajudar, a fim de ter uma interatividade maior, eu poderia lançar vários projetos com a certeza de que dariam certo. E não teve outra.

Quando fiz o crowdfunding do primeiro volume, uma das recompensas era a de ter reuniões de pauta comigo e me ajudar a escolher os discos que iriam entrar no livro. Essa foi a recompensa que mais saiu e que fez o livro acontecer. É muito legal esse esquema, porque eu acabo tendo uma visão de fora, tenho a ajuda de várias pessoas que entendem do assunto e possuem coleções de discos. Inclusive, me ajudaram com reproduções de capas de discos que eu não tinha. Essa foi uma barreira que superei e que hoje dá muito certo.

Você chegou a fazer algum estudo para optar pelo crowdfunding? Chegou a pensar em outras possibilidades de financiamento?

Eu até cheguei a pensar na possibilidade de edital. Chegamos a fazer reunião com pessoas que entendiam disso e de patrocínios. Mas era uma questão tão burocrática que acabei não optando por esse caminho. Meu negócio é escrever livros e revistas, falar com a galera, fazer pacotes, enviar pelo correio. Sou um escritor-editor com essa pegada. Então, quando pintou o crowdfunding, eu me identifiquei e vi que era isso mesmo que queria fazer. Nem pedir dinheiro emprestado nem escrever editais.

O grande sucesso dos livros pode ter a ver com essa procura que títulos da música brasileira têm no exterior? Você acha, por exemplo, que o retorno ao vinil ajudou ainda mais no êxito do livro?

Sim, tem relação com o fato de selos no exterior estarem relançando discos brasileiros. Percebi também que muitos DJs estão procurando o livro, buscando músicas que não são tão conhecidas para "samplear". Além disso, reparei que há uma procura dos jovens que estão descobrindo música psicodélica, têm banda e começaram ouvindo discos dos pais, mergulhando nessa onda toda a partir do tropicalismo. E o livro acaba entrando neste contexto todo: dos DJs, dos selos e da cultura do vinil.

Em relação à moda do vinil, há dois lados. Para quem coleciona discos, é horrível, é a pior época para comprar. Como colecionador, vou mais nos que estão baratos e que não são muito conhecidos ainda. Até mesmo pensando na pesquisa para os livros. Para a venda dos livros, é bom. Essa garotada que gasta a mesada com discos, que quer o Lindo Sonho Delirante junto da coleção, que vai ouvir no YouTube e no Spotify e montar uma playlist com os cem melhores discos... Acho que tudo é válido para ouvir música hoje em dia.

Como você percebe a documentação da música popular brasileira? Como foi a busca de fontes para a sua pesquisa?  

O que me ajudou bastante foram duas coisas. A primeira foi a estrada de 13 anos do poeira Zine, porque nesse período conheci muita gente importante, como músicos e colecionadores de discos. Acho que toda essa estrada me deu uma força, criando uma rede de pessoas que me davam dicas e toques. Claro que há alguns discos que são tão pouco conhecidos que nem mesmo nessa rede eu consigo achar.

No primeiro volume, por exemplo, houve um compacto que eu fiquei sabendo que apenas três colecionadores tinham no mundo. Eu sabia da história do disco [o compacto da Oriana Maria], sabia quem tinha gravado, mas não tinha como ouvir. Um amigo meu e colecionador, Cristiano Grimaldi, ficou sabendo da minha busca e me ajudou.

No Brasil, encontro muitas portas fechadas, porque muitos colecionadores não têm interesse em divulgar. Mas fora do país é diferente, normalmente o pessoal ajuda. No primeiro volume também, eu precisava da capa do disco do Alceu Valença com o Geraldo Azevedo, e um colecionador russo me mandou a imagem escaneada. Ela foi publicada no livro.

Como você pensou o recorte temático?

O primeiro volume acaba em 1975, com o disco Paêbirú, que muitos, inclusive eu, consideram o mais emblemático da cena da música psicodélica brasileira. Como eu queria fazer um livro que viesse até hoje, que chegasse à volta da música psicodélica nos anos 2000, minha ideia é lançar um terceiro volume com essas bandas, juntando o Júpiter Maçã, Mopho e Plato Divorak, até chegar ao Bike e Anjo Gabriel.

Desse objetivo surgiu outra questão para o segundo volume: existia rock psicodélico no Brasil? Na minha visão, sim, mas em outro sentido. Podemos citar, por exemplo, músicos como o Flaviola, a Cátia de França, Hugo Filho e Jarbas Mariz. Se a gente for ver mesmo, os artistas que chegaram ao mainstream têm influência de música psicodélica, como o Fagner, o Belchior e o Zé Ramalho.

Por isso pensei em ir além da psicodelia, incluindo os discos audaciosos, os de fusion, folk ou progressivo, que, de alguma forma, eram diferentes do que estava rolando no cenário musical daquela época – muito voltado para a MPB – e, ao meu ver, eram discos ousados, transgressores e inventivos. Eu queria juntar todos esses álbuns no segundo volume, começando em 1976 e parando no fim da ditadura civil-militar, em 1985. E aí foi desde Flaviola até Jocy de Oliveira.

No fim, acabou ficando um panorama bem abrangente, tanto é que no subtítulo nem tem mais o termo psicodélicos, mas, sim, audaciosos. Segui o mesmo teor do primeiro volume, que é o de mesclar os medalhões com os obscuros, pouco conhecidos, como bandas que lançaram apenas um disco. Acho importante ter esse balanço.

Para além da música, o cenário da ditadura militar brasileira chegou a entrar no livro?

O contexto da ditadura entra e é uma parte bastante interessante do livro. Além das cem resenhas, há uma introdução na qual eu comento bastante isso. Mesmo em cada resenha. Existiram discos que foram censurados e recolhidos, discos que passaram pela censura. O próprio disco do Fábio que emprestou o nome ao livro, Lindo Sonho Delirante, no ano do AI-5, em 1968, passou com uma capa com um “LSD” em letras garrafais.

Inclusive, é interessante pensar historicamente nas obras porque, no cenário que eu apresentei, elas não se autointitulavam psicodélicas. É uma cena que só é possível de enxergar em retrocesso, vista de trás para a frente, e esse foi também um mote do livro, de montar um quebra-cabeça. Esses discos têm uma relação entre eles, de emergir em uma mesma época, em um contexto que acaba amarrando a cena toda.

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