Nós dois

Em 1952, durante uma época em que vivia um autoexílio da Mangueira e da música, Cartola reencontrou uma velha conhecida de infância. Euzébia Silva do Nascimento, a Dona Zica, acabou virando seu grande amor. Ela o levou de volta à Mangueira e exerceu papel fundamental em outros aspectos de sua vida e de sua carreira. Os dois viveram juntos até a morte do artista, em 1980.

E a união de Dona Zica e Cartola deu certo não só no campo afetivo. Entre 1963 e 1965, o casal tocou um restaurante que fez sucesso ao misturar dois ingredientes fundamentais: ótima comida e excelente música ao vivo. Com Zica à frente da cozinha e Cartola no comando da programação musical, o Zicartola ficava no centro da capital fluminense e virou – no início da ditadura militar – um ponto de encontro de sambistas, jovens universitários, intelectuais e outros grupos.

Os metros e metros da fila que se formava na Rua da Carioca eram inversamente proporcionais ao reduzido espaço da casa, mas isso não era problema, e centenas de pessoas se apertavam no salão para comer bem e ouvir o trabalho de mestres – como Carlos Cachaça, Elton Medeiros, Hermínio Bello de Carvalho, Nelson Cavaquinho, Nelson Sargento e Zé Kéti – e de novatos do samba. Ou novatos que se tornariam mestres: foi no palco do Zicartola, por exemplo, que o jovem Paulinho da Viola recebeu seu primeiro cachê.

Cartola e Dona Zica no salão do Zicartola | foto: José Antonio/acervo Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, Brasil

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Zicartola: memórias de uma casa de samba

Por Maurício Barros de Castro

A placa foi colocada pela prefeitura do Rio de Janeiro num prédio da Rua da Carioca, no número 53. Algumas palavras estão mais apagadas devido à ação do tempo, mas é possível ler os seguintes dizeres: “O casal Cartola e Zica, do samba carioca, manteve no sobrado o Zicartola, restaurante que sediou o encontro cultural entre as zonas norte e sul da cidade, de 1963 a 1965, quando Paulinho da Viola recebeu os primeiros cachês de sua carreira”.

O texto da placa resume a trajetória de um dos mais importantes espaços culturais da história do Rio de Janeiro. O que motivou a criação da casa de samba foi a proposta feita a Dona Zica pelo jovem empresário Eugênio Agostini, que se ofereceu para entrar como sócio da mulher de Cartola na empreitada de abrir uma pensão de comida caseira.

A ideia surgiu numa das rodas de samba que Cartola organizava na então sede da Associação das Escolas de Samba, na Rua dos Andradas, também na região central da cidade. O sambista da Mangueira era zelador do sobrado antigo, e Dona Zica vendia “quentinhas” para os motoristas e os cobradores de ônibus da Praça Mauá.

Eugênio Agostini era primo de Nuno Veloso, jovem da zona sul que havia se tornado parceiro de Cartola e que fora “adotado” pelo casal mangueirense. Foi assim, por meio do primo, que Agostini virou um dos frequentadores mais animados das rodas de samba que aconteciam na Rua dos Andradas, onde Cartola reunia os amigos sambistas e Dona Zica preparava saborosos quitutes.

No entanto, a construção estava com os dias contados e seria demolida em breve. Diante disso, era preciso encontrar outro lugar para que Cartola e Zica pudessem se manter no centro da cidade. O sobrado da Rua da Carioca era perfeito para os planos de Agostini. Em pouco tempo, o Zicartola, nome que homenageava a união de Zica e Cartola, se tornou um enorme sucesso, atraindo frequentadores que lotavam a casa e formavam filas até a Praça Tiradentes.

O público principal do estabelecimento era formado por jovens universitários. A maioria deles vinha da zona sul da cidade e buscava o local para ouvir sambistas antigos que estavam esquecidos do público e viviam em sérias dificuldades.

Zicartola além do Zicartola

A curta trajetória do Zicartola não impediu a casa de samba de influenciar a criação de alguns dos principais eventos culturais que ocorreram naquele período. O ambiente formado por sambistas, comida caseira, intelectuais, artistas e estudantes universitários foi propício para a formulação de quatro acontecimentos fundamentais da história cultural do Rio de Janeiro e também do Brasil.

O primeiro deles foi o show Opinião, que estreou em dezembro de 1964, alguns meses depois do golpe civil-militar. Criado por Armando Santos, Paulo Pontes e Oduvaldo Vianna Filho, e dirigido por Augusto Boal, o musical reunia no palco Zé Kéti, o sambista do morro carioca, Nara Leão, a moça da zona sul, e João do Vale, o migrante nordestino, para montar um painel crítico da realidade social do Brasil.

Os autores e os artistas do Opinião eram frequentadores entusiastas do Zicartola. O nome do espetáculo vinha da música homônima de Zé Kéti. Os versos do samba – “podem me bater / podem me prender / que eu não mudo de opinião / daqui do morro eu não saio não” – cabiam como uma luva para protestar contra o regime autoritário que se instaurava no Brasil.

O segundo grande evento foi a criação do espetáculo Rosa de Ouro, dirigido por Hermínio Bello de Carvalho e que estreou em maio de 1965. A obra revelou para o grande público Clementina de Jesus, cantora de chulas e ladainhas da Festa da Glória que o poeta reencontrou no Zicartola.

O terceiro evento importante foi a criação do primeiro conjunto formado por compositores de escolas de samba, todos frequentadores assíduos do Zicartola – uma seleção de bambas que reunia Zé Kéti, Paulinho da Viola, Nelson Sargento, Anescarzinho, Jair do Cavaquinho e Elton Medeiros. O nome do grupo, A Voz do Morro, também foi inspirado numa canção de Zé Kéti.

O quarto acontecimento fundamental que o Zicartola influenciou, como diz a placa da Rua da Carioca, foi o surgimento de Paulinho da Viola, que recebeu no sobrado o seu primeiro cachê, pago por Cartola.

Mestres do samba e da comida, não das finanças

Ainda que fizesse enorme sucesso, em menos de dois anos o Zicartola teve de fechar suas portas. Os inúmeros problemas administrativos que a casa de samba trazia fizeram com que Eugênio Agostini abandonasse a sociedade que mantinha com Zica. Ela e Cartola continuaram à frente do sobrado, mas não conseguiram dar conta de sua administração.

Portanto, não foi a repressão da ditadura que ordenou seu fechamento, apesar de o endereço da Rua da Carioca ter se firmado como um espaço de resistência cultural ao golpe civil-militar, um local onde se reuniam opositores do regime, como Sergio Cabral, Ferreira Gullar, Vianinha, Fernando Pamplona e Teresa Aragão. O principal motivo do fim do Zicartola foi a dificuldade do casal em manter a administração da casa. Eram mestres do samba e da comida, não das finanças.

Mais de 50 anos depois a memória do Zicartola ainda se inscreve na trajetória política e cultural do Rio de Janeiro – e não se limita à placa da Rua da Carioca. Basta buscar suas reminiscências em textos, fotografias, canções, notícias de jornais, cardápios, convites e, principalmente, nas narrativas dos que viveram suas noites inesquecíveis.

Maurício Barros de Castro é doutor em história pela Universidade de São Paulo (USP) e professor-adjunto do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). É autor do livro Zicartola: Política e Samba na Casa de Cartola e Dona Zica.

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Um lugar de poesia e resistência

O cantor e compositor Monarco, o maestro e produtor Rildo Hora e a pesquisadora Nilcemar Nogueira, neta de Cartola e Dona Zica, falam sobre o restaurante e casa de shows Zicartola. Comandado pelo casal Zica e Cartola, o estabelecimento funcionou entre 1963 e 1965 na região central do Rio de Janeiro (RJ).

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Uma das mais belas composições de Cartola, o samba “Nós Dois” foi composto especialmente por ocasião de seu casamento com Dona Zica | manuscrito: acervo da família

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            Nos dois
                                 Cartola, e Nuno

Esta chegando o momento
De irmos p’ro altar
Nos dois
Mais antes da cerimonia
Devemos pensar
Depois
Terminou nossa aventura
Chega de tanta procura
Nenhum de nós deve ter
Mais alguma ilusão
Devemos trocar ideias
E mudar-mos de ideias
Nós dois
E se assim proceder-mos
Seremos felizes
Depois
Nada mais nos interessa
Sejamos indiferentes
Só nos dois, apenas dois
Eternamente

Fim

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Cartola e Dona Zica casaram-se em 1964; o convite de casamento foi ilustrado pelo artista Heitor dos Prazeres | acervo Museu do Samba. Rio de Janeiro, Brasil