Força da imaginação

Ivone, um gravadorzinho humano

Uma das coisas mais impressionantes em Dona Ivone Lara é a sua capacidade de criar melodias. Mais do que criar, na infância ela impressionava também porque conseguia decorar as melodias compostas pelo tio Dionísio, irmão da mãe. O pedido era feito pelo próprio tio a Ivone e às demais crianças que frequentavam seu o quintal festeiro em Inhaúma, zona norte do Rio de Janeiro. Vários gravadores humanos, que decoravam canções e saíam correndo para brincar.

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O começo da carreira

Adelzon Alves é jornalista, radialista e produtor musical. Apresenta o programa O Amigo da Madrugada desde 1966, à meia-noite, tendo estreado na Rádio Globo e estando atualmente na Rádio Nacional do Rio de Janeiro. Um grande marco da sua carreira foi o trabalho como produtor de Clara Nunes, mas Adelzon também lançou outros grandes nomes, como Dona Ivone Lara, João Nogueira e Roberto Ribeiro.

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imagem: acervo da família

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Melodias de dentro

Dona Ivone Lara demonstra em toda a sua obra a característica de criar desenhos musicais singulares, que criaram a sua marca no cenário da música popular

Dona Ivone Lara é cantora e compositora de talento raro; respeitada em ambos os quesitos. Mas uma característica salta aos olhos, e aos ouvidos, quando o assunto é a sua música: as melodias. Em entrevista ao jornal O Globo*, Beth Carvalho sentenciou: “Se tivesse estudado música, seria maestrina, arranjadora. Em seus ‘lararás’ faz arranjos antológicos. Já pedi para meu maestro escrever um de seus improvisos para fazer igual numa gravação minha”.

O talento para a construção de melodias sempre a destacou em meio aos compositores e aos músicos com quem trabalhou. Na longa parceria com compositores, como Delcio Carvalho, ou com novos parceiros, como Bruno Castro, a marca registrada da personalidade da Dama do Samba sempre foi a sua capacidade de criar improvisações com novos desenhos musicais, sempre marcados pela beleza e pela singularidade.

Para o pesquisador e sambista Nei Lopes, é também essa característica que a coloca entre as mais importantes compositoras do samba. “Conheci musicalmente Dona Ivone Lara através do samba ‘Agradeço a Deus’ [parceria de Dona Ivone Lara com Mano Décio da Viola], que tem uma melodia riquíssima e uma letra singela, mas perfeitamente condizente. É uma canção pouco conhecida, mas para mim é uma das que mais justificam o destaque de Dona Ivone entre os maiores melodistas do samba em todos os tempos”, garante.

Entre os parceiros mais recentes de Dona Ivone está o músico Bruno Castro, cuja parceria teve início por sugestão do antigo parceiro fiel Delcio Carvalho, que sugeriu: “Ô, Dona Ivone, nós temos que fazer uma música com o Bruno”. Para o músico, uma honra que se desdobraria em inúmeras canções e um disco só com músicas fruto do trabalho conjunto: Nas Escritas da Vida, de 2010.

Para Bruno, a densidade das composições de Dona Ivone Lara não é apenas parte de um talento nato, mas bebe em três vertentes distintas da sua formação: o choro, o samba e a música erudita. “Ela começa a aprender música ainda criança, com as rodas de choro na casa de Dionísio Bento, o tio dela. Ela aprendeu a tocar cavaquinho ali, serviu de gravador humano para as composições do tio. Em segundo lugar, tem o lado da escola de samba, a Serrinha, que deu a ela a questão do batuque e do jongo. E a terceira aresta muito importante na formação dela é o vetor erudito, com as aulas no colégio que ela teve com Lucília Villa-Lobos, esposa do maestro Villa-Lobos. Isso gerou nela uma capacidade de improviso que é uma coisa especial, muito peculiar, dela, do Djavan, do João Bosco. Das mulheres eu só me lembro dela”, defende o parceiro.

No disco Bodas de Ouro, lançado por Dona Ivone Lara em 1987, Danilo Caymmi dividiu com a cantora um pot-pourri em que interpretaram “Candeeiro da Vovó”, parceria de Dona Ivone com Delcio Carvalho, e a “Oração da Mãe Menininha”, composição de Dorival Caymmi. Para Danilo, a sambista conseguiu deixar uma marca muito pessoal nos seus trabalhos, uma das leis na cartilha de Dorival Caymmi para o sucesso na música popular. “Ela é uma estilista, uma compositora diferenciada, muito pessoal. O mais importante do compositor é quando ele tem essa marca, quando ele alcança esse estilo. Meu pai dizia que uma boa melodia é o que faz com que a música tenha sucesso. Ela tem essa marca muito evidente, uma característica admirável”, garante o músico.

Para além da canção, as melodias de Dona Ivone Lara já adentraram no universo da música instrumental, quando ganharam interpretações do músico Leandro Braga no álbum Primeira Dama – a Música de Dona Ivone Lara (2002). Em entrevista a João Máximo para o jornal O Globo, por ocasião do lançamento do CD (edição de 5 de julho de 2002), o músico assegurava o talento da compositora e a qualidade do seu trabalho na criação musical. “Há, tanto nas melodias quanto nas sugestões harmônicas de suas composições, uma qualidade que não hesito em situar no nível de um Heitor Villa-Lobos, de um Tom Jobim”, diz Leandro, sem receio de parecer exagerado. “Sim, por trás daquele la-iá la-iá, daquele dois, cinco, um, realmente há uma harmonia embutida muito elaborada. Estou certo de que, não fosse mulher, negra, pobre e suburbana, Dona Ivone seria mais reconhecida.”

*Edição do jornal O Globo de 25 de julho de 2008, Segundo Caderno, página 1.

Itamar Dantas é jornalista e pesquisador de música brasileira. Já escreveu para as revistas Violão Pro, Sax & Metais e Música & Mercado,
e atualmente é pesquisador e redator do site Álbum Itaú Cultural.

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Melodista sofisticada

Leci Brandão é cantora e compositora e um dos nomes mais importantes do samba e da música popular brasileira, com 40 anos de carreira. Foi a primeira mulher a integrar a ala de compositores da Mangueira, no Rio de Janeiro, a sua cidade natal. Já gravou 20 discos e três compactos. Desde 2003, também é comentarista dos desfiles das escolas de samba do grupo especial de São Paulo, na transmissão da Rede Globo. Atualmente, é deputada estadual pelo PCdoB, em São Paulo.

Fabiana Cozza é cantora. O seu primeiro álbum, O Samba É Meu Dom, é de 2004, e ela tem cinco discos lançados, além de dois DVDs. Em 2012, foi a vencedora do Prêmio da Música Brasileira – Melhor Cantora de Samba. Já dividiu o palco com diversos artistas, como Dona Ivone Lara, Elza Soares, João Bosco, Ivan Lins e Luiz Melodia.

Zélia Duncan é cantora e compositora. Começou a cantar profissionalmente no início dos anos 1980 e a sua estreia em disco se deu em 1994, com um álbum que leva o seu nome e tem no repertório o sucesso “Catedral”.

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Escolhida

“Eu gostava mais de cantar. Quando o maestro Villa-Lobos dava aquelas festas cívicas, eu, que pertencia ao orfeão artístico, era sempre escolhida. Cantei muito. Me apresentei muito. Fiz muito show sem saber que aquilo era show.”

(Dona Ivone Lara em depoimento ao Itaú Cultural, janeiro de 2015)

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imagem: acervo da família

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Força da Imaginação

Dona Ivone Lara/Caetano Veloso

Força da imaginação, vai lá
Além dos pés e do chão, chega lá,
O que a mão ainda não toca
Coração um dia alcança
Força da imaginação, vai lá

Força da imaginação, vai lá
Além dos pés e do chão, chega lá,
Coração um dia alcança
Força da imaginação
Vai lá
Força da imaginação
Vai lá

Quando um poeta compõe mais um samba
Ele funda outra cidade
Lamentando a sua dor ele faz felicidade
Força da imaginação
Na forma da melodia
Não escurece a razão
Ilumina o dia a dia

Força da imaginação, vai lá
Além dos pés e do chão, chega lá,
O que a mão ainda não toca
Coração um dia alcança
Força da imaginação
Vai lá
Força da imaginação
Vai lá

Quando uma escola traz de lá do morro
O que no asfalto nem é sonho
Atravessa o coração um entusiasmo medonho
Força da imaginação
Se espalhando na avenida
Não pra animar a fraqueza
Mas pra dar mais vida à vida
(3x)

Força da imaginação, além dos pés e do chão
Chega lá, o que a mão ainda não toca
Coração um dia alcança
Força da imaginação
Vai lá
Força da imaginação
Vai lá

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Sonho dela

“[…] Dona Ivone revelou serenamente que muitas vezes sonha com música, canta dormindo e acorda lembrando de melodias inteiras… Achei isso tão revelador, tão poético, tão predestinado. É como se uma pessoa como ela tivesse o direito de ser a preferida de alguém lá em cima. Vai ver que Morfeu em pessoa cuida para que seu sono seja assim, embalado por melodias, harmonias, contracantos, que só Dona Ivone vai saber reproduzir quando acordar!”

(Zélia Duncan em Álbum de Retratos Dona Ivone Lara)