Cultura Brasileira

Cartaz do espetáculo "Saci Pererê", de 1973 | acervo Giramundo

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UM BAÚ DE FUNDO FUNDO

Adolfo, Cecília e fantasma. "Um Baú de Fundo Fundo", de 1976 | técnica: vara / acervo Giramundo

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UM BAÚ DE FUNDO FUNDO

Sereia. "Um Baú de Fundo Fundo", de 1976 | técnica: fio / acervo Giramundo

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UM BAÚ DE FUNDO FUNDO

Prefeito e Libório. "Um Baú de Fundo Fundo", de 1976. | técnica: vara / acervo Giramundo

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NOVOS INTEGRANTES DO GIRAMUNDO

Nesse momento, já se haviam integrado ao grupo Felício Alves da Silva, técnico de palco e iluminador, Arildo Barros, ator e produtor de elenco, e mais dois artistas, professores da Escola de Belas Artes, Sandra Bianchi e Júlio Espíndola. Em seguida, o Giramundo vai agregando outros componentes – chegam à companhia Weracy Trindade Veloso e Selma Soares Veloso. Depois, integram-se à “confraria familiar” Beatriz e Adriana, filhas de Álvaro e Tereza, e, mais tarde, os netos Paulo Henrique e Mário, todos com atribuições específicas.   À medida que os espetáculos se tornam mais complexos, outros artistas e técnicos, em períodos mais ou menos longos, dariam contribuição ao Giramundo na execução e na manipulação dos bonecos, na confecção de cenários, figurinos e adereços, na cenotécnica, na música e na sonorização, na iluminação e na divulgação e produção. 

Para a gravação de texto e música cada espetáculo exigia a atuação de compositores, atores, cantores e instrumentistas.

 

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Cartaz do espetáculo "Cobra Norato", 1979 | acervo Giramundo

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Pajé e os doentes. "Cobra Norato", 1979. | técnica: balcão / acervo Giramundo

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COBRA NORATO: DELÍRIO ANTROFÁGICO

A observação de Michalski não deixou de ser objeto de consideração pelo Giramundo. As duas produções anteriores – Saci Pererê e o Baú de Fundo Fundo – tinham sido boas experiências na abordagem de temas genuinamente brasileiros. Mas já era tempo de um trabalho mais ambicioso e consistente nessa direção. Onde, porém, encontrar um texto adequado? Na busca de ideias para a nova produção, Madu sugeriu o poema Cobra Norato, de Raul Bopp, um ícone de nossa literatura do primeiro momento do Modernismo.  

Álvaro Apocalypse conta que “um raio atravessou os céus do Giramundo”. Todos conheciam o poema antropofágico de Raul Bopp, o qual, junto com Macunaíma, de Mário de Andrade, obra exemplar da fase heroica do Modernismo, era alimentado em legítimas raízes brasileiras e contribuiu para a fixação de nossa identidade cultural. “No mesmo instante” – continua Apocalypse – “fomos para Belo Horizonte procurar o livro. Corremos as livrarias da cidade até que o encontramos.  Naquele mesmo dia começamos a destrinchar o poema com a perspectiva de encená-lo”. Constataram que o poema dormia no inconsciente de cada um, tal a familiaridade que havia anos tinham com ele.

O entusiasmo se redobrava à medida que, apoiados por bibliografia, analisavam o poema à luz da literatura, da antropologia, dos mitos e de alternativas técnicas. A escolha das imagens fundamentais corria paralela à montagem do roteiro, ficando acertado que o poema não sofreria nenhuma alteração.

 Cobra Norato foi escrito em 1921, retocado em 1927, com a transferência do autor do Rio para São Paulo, incentivado por Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade. Datilografado, o poema circulou pelos meios literários ligados ao movimento antropofágico e, finalmente, em 1931, foi editado. Sua concepção é anterior ao Macunaíma de Mário de Andrade e com ele forma uma espécie de emblema do Modernismo, que parte do regional, absorve diferentes culturas e produz uma síntese do nacional e do universal.  Desde então, Cobra Norato ficou conhecido como “o mais brasileiro de todos os poemas”.

Para obtenção dos direitos de montagem do espetáculo, Álvaro, Terezinha e Madu fizeram uma visita ao autor que, entusiasmado com o projeto, em longa conversa, deu-lhes informações preciosas sobre a concepção e o processo de elaboração do poema e ofereceu ao grupo documentação adicional, fotos e estudos sobre o mito de Cobra Honorato e sobre a cultura amazonense.   E finalmente se dispôs a transferir ao Giramundo todos os direitos definitivos de uso do poema para montagem teatral.

Para fazer a caracterização dos personagens, Álvaro Apocalypse buscou elementos visuais extremamente sensíveis e sedutores: a cerâmica do Vale do Jequitinhonha de Minas Gerais, a do nordeste brasileiro e a dos índios Carajás, integrando ainda a fonte africana e europeia, na caracterização do personagem negro e branco.  A partir daí, a imaginação corria solta, em delírio, fazendo nascer as formas de uma mitologia fantástica – plantas, animais, espíritos ancestrais, deuses, elementos naturais, as formas mais estranhas que dariam corpo e movimento ao belo texto de Raul Bopp.

Tecnicamente, o espetáculo confirma a maturidade do Giramundo. Observa Apocalypse:

Nesta montagem, o Giramundo utiliza-se do poema de Raul Bopp em sua forma integral. As intenções são várias: primeiramente, produzir um espetáculo de teatro de bonecos essencialmente brasileiro. Daí a escolha: Cobra Norato, o mais brasileiro de todos os poemas até aqui escritos. Homenagear o autor Raul Bopp pelo grande legado à poesia autenticamente brasileira. Segundo, o exercício da linguagem do teatro de bonecos num sentido exploratório; exercitar o potencial do boneco numa área não rotineira.  Um desafio: buscar dramaticidade num texto literário sem intenções teatrais, não recorrendo à adaptação ou roteiro reescrito. Percebemos que no poema tudo tem vida: as árvores, os rios, os animais. Todos têm alma. E animar é o ofício do marionetista.

E as metamorfoses dos personagens, a riqueza visual e sonora da floresta, tudo contribui para os voos da imaginação, da liberdade criativa.   Finalmente, ao explorar todo o espaço cênico, valorizado pela cuidadosa e inventiva iluminação, o Giramundo explora, também com liberdade e largueza de imaginação, as variadas técnicas de marionete, experimentando, inclusive, a combinação de diferentes recursos em um mesmo boneco, criando soluções novas de acordo com suas exigências em cena. Nesse momento, Álvaro Apocalypse incorporava novos materiais e novas técnicas de construção, visando à obtenção de maior leveza e movimentos mais vivos, facilitando e agilizando a manipulação.

 A questão da música tornou-se fundamental, não como ilustração para sublinhar o roteiro. A concepção do espetáculo exigia uma música substantiva, como elemento que interagisse entranhadamente com o texto e a forma visual. Por sugestão de José Adolfo Moura une-se ao grupo o maestro e compositor baiano Lindembergue Cardoso, um dos maiores criadores da música brasileira contemporânea. Entusiasmado com o projeto, compõe fantástica trilha sonora para a saga de Cobra Norato, a qual mereceu indicação para o Prêmio Molière.  Álvaro conseguiu dar ao texto uma abordagem teatral e dramática sem omitir uma única vírgula.

Madu conta que o entendimento entre o compositor e o Giramundo foi imediato, quase mágico, e o trabalho conjunto tornou-se uma aventura prazerosa, claramente visível no resultado obtido. O compositor, posteriormente, voltaria a fazer outros magníficos trabalhos para o Giramundo, e essa aliança só se desfez com sua morte, em 1989.

 Cobra Norato estreia em 1979 e cumpre temporadas em Belo Horizonte, Rio e São Paulo, percorrendo várias outras cidades brasileiras e diversos países da Europa e da América. Recebe os mais importantes prêmios do teatro brasileiro. Até hoje o espetáculo vem sendo apresentado em teatros e praças e, numa ousada performance, em palco montado sobre águas.

O Giramundo teve a felicidade de apresentar o espetáculo com a presença do autor, no Teatro Glauce Rocha, no Rio, dentro do Projeto Mambembão. A emoção confessada levou o escritor a comentar que o grupo havia entendido o poema “mais do que eu próprio”.  Raul Bopp morreria meses depois.

O impacto de Cobra Norato, tanto no Brasil como no exterior, pode ser medido pelas numerosas apresentações e pela calorosa acolhida por parte do público e da crítica, confirmada pelas premiações mais importantes do teatro brasileiro: o Moliére, o Mambembão e o Grande Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte – em várias categorias, como melhor espetáculo, direção, música e iluminação, além de figurar nas listas dos melhores, em vários órgãos da imprensa.   

 A medida desse impacto foi bem demonstrada pelo crítico Flávio Marinho, em artigo publicado em O Globo, do Rio de Janeiro.

(…) Cobra Norato resulta, assim, um desafio para qualquer espectador que nutra algum tipo de preconceito contra teatro de bonecos. Dificilmente alguém conseguirá ficar alheio à surra de encanto e plasticidade do espetáculo.  Tudo em ação permanentemente forte e viva, que transcorre numa narrativa tão fascinantemente mágica que me faltam palavras para descrever com fidelidade as poderosas e por vezes fantasmagóricas imagens de um espetáculo, cujo visual é capaz de cortar o fôlego do espectador mais desavisado.

O crítico Yan Michalski, do Jornal do Brasil, terá recebido com prazer a resposta do Giramundo à sua observação quanto à produção de um espetáculo brasileiro:  

(…) A variedade de ideias temáticas, a invariável sensibilidade plástica, a excelente feitura e simpática expressão dos bonecos, o virtuosismo na sua manipulação e a eficientíssima contribuição da trilha musical refletem claramente a seriedade do trabalho realizado.

Ratificando sua opinião, o crítico, integrante do júri do Troféu Mambembe, indicou o espetáculo para as premiações, em nada menos do que sete categorias.  

O “Prêmio Especial” outorgado a Álvaro Apocalypse, por Cobra Norato, foi assim justificado em artigo no Jornal do Brasil, de 25/04/80:

(…) Em uma semana de apresentação, no verão de 1979, o público carioca assistiu a um espetáculo, pelo Giramundo, na qual a obra de Raul Bopp não só conseguiu a sua perfeita transcrição para o teatro como encontrou a linguagem dos bonecos uma expressão poética que redimensiona essa técnica no Brasil. Álvaro Apocalypse, diretor de Cobra Norato e do Giramundo, conta com o belo mito serpentário da Amazônia, reunindo uma excepcional equipe de manipuladores, iluminadores, músicos   e confeccionistas das dezenas de bonecos em cena, num espetáculo em que o espectador fica fascinado com a vida dessas figuras de pano. Os mitos das lendas amazônicas se desdobram em movimentos delicados –   os bonecos são manipulados com muita destreza, além do que ajudados por uma iluminação de nível internacional. Mas a ação é sempre vigorosa.  Cobras que se transformam em rapazes, ou a Boiuna engravidando índias, e ainda crianças se transformando em cobra, tudo mostrado numa narrativa mágica. O poema de Raul Bopp, escrito em 1921, é obra definitiva, e o espetáculo de bonecos do Giramundo é um marco da história do teatro brasileiro contemporâneo.

Para Mariângela Alves Lima, do Estado de São Paulo,  

Cobra Norato é uma afirmação de fé na natureza do homem brasileiro (…). O que o trabalho oferece como afirmação é uma espécie de canto amoroso, uma exaltação e uma afirmação de fé na natureza e no homem deste país. Todo esforço da representação se concentra em revelar e transmitir essa beleza fortíssima. Os signos visuais e sonoros do espetáculo são, portanto, deliberadamente sedutores. Foram construídos para encantar com a mesma intensidade da realidade a que se referem.  

Em primeiro lugar, a interpretação oral do poema é muito mais do que suporte para a cena. Há um ritmo e uma invenção de combinações sonoras com um poder tão grande de sugestão que as imagens descritas oralmente preenchem o espaço do espetáculo com uma força autônoma.

Dentro dessa paisagem, criada pela interpretação e pela música de Lindembergue Cardoso, inserem-se personagens tridimensionais, inspirados na estatuária popular. Os bonecos convidam a uma viagem através de uma paisagem caracterizada pelo gigantismo.   É um convite, sem dúvida insinuante, que segue os movimentos coleantes da cobra-homem. O mistério lodoso dos mangues amazônicos é atenuado pela representação faceira dos personagens. A sugestão antropomórfica que predomina torna possível acreditar que a selva é antes de mais nada uma entidade que manifesta e abriga a vida. Aos poucos, o espetáculo vai iluminando as quase infinitas possibilidades de beleza dessa massa vital, separando um detalhe e integrando-o depois na totalidade evocada pela narração.  

Conta Madu:

Mais do que o sucesso internacional de crítica e público, a manifestação de Raul Bopp foi a que mais nos emocionou. Durante a preparação do espetáculo havíamos mantido contatos com o poeta, e na apresentação de Cobra Norato, no Rio, conseguimos que ele fosse ver – talvez tenha sido a última vez que ele saiu de casa.  Muito idoso, ele assistiu ao espetáculo com muita emoção e, ao final, nos declarou: “Vocês entenderam o poema melhor do que eu!”

 

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Cena final. "Cobra Norato", 1979. | técnica: balcão / acervo Giramundo

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Aula de geometria. "Cobra Norato", 1979. | técnica: balcão / acervo Giramundo

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Árvore. "Cobra Norato", 1979. | técnica: balcão / acervo Giramundo

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Cartaz de "Cobra Norato", 1979 / acervo Giramundo

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A CRÍTICA DELIRANTE DE QORPO SANTO

Deixando um pouco de lado a tradição, o Giramundo inicia uma aventura pela estética surrealista e, em 1983, corajosamente, monta o espetáculo As Relações Naturais, texto do escritor gaúcho Qorpo Santo (José Joaquim Campos de Leão, nascido em 1829), com música de Lindembergue Cardoso. Teatro para plateia adulta, traduz a “loucura“ do autor com uma vivacidade surpreendente, acentuando seu caráter grotesco e crítico, ousadia que traz maior notoriedade ao grupo, e também muita polêmica.  

Considerado precursor do teatro do absurdo, só a partir da década de 1960 esse autor passou a ter sua obra considerada na medida de suas qualidades. O enfrentamento do estranho texto de Oorpo Santo indica a clara disposição do Giramundo de realizar uma nova experiência, avançando a pesquisa da linguagem cênico/visual do teatro de bonecos e o estudo das possibilidades do boneco como instrumento expressivo.  

Álvaro Apocalypse justifica a escolha da obra como “uma contribuição para resgatar do esquecimento a que sempre tem estado relegado este autor que, em outra cultura, seria orgulhosamente exibido como raridade, como revolucionário e como inovador“, e também porque a obra de Qorpo Santo, “como uma esfinge um apouco amalucada, diverte, faz pensar e exige ser decifrada”.  Além disso, “sua particularidade nos acena com possibilidades nunca oferecidas por um texto convencional”.

Encenada em 1983, ano do centenário da morte de Qorpo Santo, As Relações Naturais constituiu a melhor homenagem que se poderia fazer ao autor.   A liberdade proporcionada pelo texto ao encenador foi perfeitamente entendida pelo Giramundo, que respondeu à sinalização de Qorpo Santo com um espetáculo que leva às últimas consequências a sua divertida – mas profundamente amarga – loucura.  

O texto é um jogo, um quase vale-tudo estrutural, um desafio, ao qual Álvaro Apocalypse respondeu com sua exuberante imaginação criativa, colocando em cena a própria figura de Qorpo Santo, como que obrigando-o a assistir e participar daquele jogo teatral.

Para explorar os aspectos grotescos, caricatos, construiu marionetes à tringle e de fio, as quais, embora mais complexas para manipulação, possibilitam gestualização e movimentos mais ágeis, além de expressão corporal mais refinada.   A exploração da espacialidade, como suporte da expressão, não era novidade, mas, nesse espetáculo, respondia de maneira muito original à atmosfera sufocante criada pelo autor. Para sustentar esse clima, contribuíram tanto o cenário e a iluminação, como a música que Lindembergue Cardoso, nesse trabalho, voltou a criar magistralmente, reafirmando a produtiva aliança com o Giramundo, iniciada na peça Cobra Norato.  

Outro aspecto a ser destacado é o aprimoramento da produção do Giramundo,  enriquecida pela participação de técnicos e artistas na confecção dos bonecos e dos elementos cênicos (por artistas plásticos) e na gravação do texto e das músicas, (por atores e músicos, dentre os melhores de Minas).

Indicado para participar do Projeto Mambembão do Instituto Nacional de Artes Cênicas (Inacen), o espetáculo teve calorosa acolhida no Rio de Janeiro e em São Paulo, confirmando o sucesso em Belo Horizonte.  

Clóvis Garcia, do Estado de São Paulo, aplaude sua indicação:

O Grupo Giramundo, de Belo Horizonte, nosso conhecido pelo belíssimo Cobra Norato, nos trouxe novo espetáculo de bonecos, desta vez com marionetes manipuladas por fios, técnica difícil e pouco conhecida entre nós, com um texto que parecia pouco adequado, nada menos que As Relações Naturais, de Qorpo Santo, o surpreendente autor gaúcho do passado, precursor do surrealismo.   Álvaro Apocalypse, o diretor, e todos os integrantes do Giramundo conseguiram, entretanto, tal expressividade e definição psicológica, ao lado de grande beleza visual, que se acredita que Qorpo Santo escreveu seu texto pensando em bonecos. Um espetáculo que nos faz confiar na força criativa do teatro brasileiro.

Com espírito de vanguarda e gosto pela experimentação, Álvaro vai conceber outros espetáculos com caráter de inovação e ruptura com o que seria próprio do teatro de bonecos.  Nesse período, as produções eram iniciadas ou totalmente realizadas nas oficinas do Festival de Inverno, com a participação de alunos e bonequeiros de diversas partes do país e do exterior, e apresentadas como programa final do evento.

Mantendo sua produção em desenho e pintura, Álvaro vai fazendo a ligação instrumental e processual dessa atividade com a criação no Giramundo.  Sempre reativo às pressões de ordem política e às mudanças socioculturais que se vão processando no país e no mundo, irá acentuar de maneira muito visível sua descrença com tudo o que se encontra à sua volta. É assim que vai mirar com sarcasmo exacerbado o mundo do poder, da violência, seja pública ou privada. Surgem com mais vigor os personagens de políticos que vão ocupar a cena de seus espetáculos e de sua pintura.

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Cartaz do espetáculo "Relações Naturais", 1983. | acervo Giramundo

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Personagem Mildona. "Relações Naturais", 1983. | técnica: tringle / acervo Giramundo

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Personagem Júlia. "Relações Naturais", 1983. | técnica: tringle / acervo Giramundo

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Personagem Anjinha. "Relações Naturais", 1983. | técnica: tringle / acervo Giramundo

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Cartaz do espetáculo "Auto das Pastorinhas", 1984 / acervo Giramundo

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Pastoras. "Auto das Pastorinhas". | técnica: meio bastão / acervo Giramundo

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AUTO DAS PASTORINHAS E A TRADIÇÃO MINEIRA

Como se quisesse exorcizar os fantasmas despertados pelo espetáculo de Qorpo Santo, o Giramundo, em 1984, foi se purificar na poesia das fontes populares, dando lugar ao poético e à delicadeza. Deixa, assim, a esfera das sombras e busca o espaço iluminado do lirismo ingênuo do Auto das Pastorinhas – uma pesquisa que o musicólogo José Adolfo Moura realizou na região metropolitana de Belo Horizonte, sobre as manifestações folclóricas das festas do Ciclo de Natal.  

A ideia do espetáculo reacenderia a relação afetiva que os integrantes do Grupo mantinham com a criação popular, ao mesmo tempo em que oferecia a oportunidade de voltar a trabalhar com elementos da tradição religiosa de Minas, em seu aspecto mais lírico, cuja poesia se liga às vivências da infância de cada um. Na tradição popular das festas natalinas, o Auto das Pastorinhas é uma representação teatral realizada diante do presépio para comemorar o Natal.   Tem sua origem nos autos portugueses da Natividade e se divide em cenas ou jornadas que, além de danças e cantos, incluem declamações e louvações. A pesquisa de José Adolfo Moura pôde resgatar e recompor essas manifestações que fundaram tradição na região de Belo Horizonte, mas que entraram em decadência, ficando quase somente – e fragmentariamente – na memória dos mais velhos. Do material recolhido e reorganizado, nasceu o roteiro do espetáculo.  

Mais uma vez, o compositor Lindembergue Cardoso seria convocado para o trabalho musical. Fez os arranjos e a recriação de temas, preservando sua autenticidade e singela beleza. O compositor encarregou-se também da preparação e regência do conjunto de instrumentistas e coral, para a gravação da trilha do espetáculo. Como Madu assinala, esse espetáculo “é uma espécie de ação de graças do Giramundo, uma oração teatral”.   Álvaro observa as diferenças dos espetáculos que ia criando, sem obrigação de ser coerente, de seguir uma linha única:

O Giramundo é o seguinte: ele vai para o fogo e volta para a água, vai do palco para a pedra, então, logo depois de um espetáculo que tinha seu peso emocional nós voltamos a produzir um espetáculo de absoluta leveza, translúcido, transparente, aéreo, que é o Auto das Pastorinhas.  

A encenação, com um conjunto de 50 bonecos, utiliza alguns aspectos trabalhados em O Baú de Fundo Fundo e detalhes técnicos de outros espetáculos, mas em todo o Auto o lirismo, a ingenuidade e o humor estão presentes, reforçando o caráter singelo, bem mineiro, do texto.

No ano seguinte à estreia do espetáculo, a Rede Globo adquiriu seus direitos e produziu um vídeo, apresentado o Auto em quadros/vinhetas em sua grade de programação, durante todo o período natalino, criando movimentos de suave encantamento em sua programação habitual, revertendo, de maneira sensível, o espaço reservado à publicidade comercial.   

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Vovó. "Auto das Pastorinhas", 1983. | técnica: balcão / acervo Giramundo

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Cartaz do espetáculo "O Guarani", 1986. | acervo Giramundo

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O GUARANI: UM GRITO NO INTERIOR DA ÓPERA

Após a trégua natalina, representada simbolicamente pela produção do Auto das Pastorinhas, o grupo vai desenvolver um projeto ambicioso, a montagem de O Guarani, de Carlos Gomes, contando com a participação do compositor Raul do Valle, que fez uma redução da ópera e inserções de sua autoria no original, adaptando-o ao roteiro do espetáculo.

Sugerido por José Adolfo Moura, o espetáculo é uma releitura livre e criativa da ópera, na qual Álvaro Apocalypse carregou na mensagem política, direcionando sua crítica principalmente  à violência contra as nações indígenas. Foi produzido no Festival de Inverno da UFMG, na cidade de São João del-Rei, em 1986, ano do sesquicentenário de nascimento de Carlos Gomes. Mais um desafio para o Giramundo – sua segunda incursão no mundo da ópera –, ligado tradicionalmente ao teatro de marionetes e onde se tem nutrido largamente, como é exemplo a Ópera de Salzburg. O Guarani representava, também, mais uma oportunidade de abordar questões sociais e políticas, decorrentes da reflexão suscitada pela obra matriz   – o romance de José de Alencar –   e a ópera, como frutos do romantismo que tratava a questão indígena sob o ponto de vista do colonizador.

Explica Álvaro Apocalypse:

A estratégia da criação foi a de se deixar levar pela monumental arquitetura da obra de Carlos Gomes e de anotar as divagações, imagens e visões que dali fluíram em profusão. Este recurso fez com que uma estrutura bem mais modesta se insinuasse no processo de criação e que se perdessem certas divagações que nos vieram à mente a propósito de fatos históricos embutidos na trama da ópera.  Os atos e as posturas que geraram estes fatos são ainda facilmente detectáveis na história recente do país e marcam profundamente, ainda hoje, a cultura brasileira. Não se cogitava de empunhar panfletos e libretos. Mas foi difícil, durante o processo, fazer calar o coração tendo diante dos olhos um choque cultural de tais proporções e tamanha duração.  

Assim, em vez de simplesmente encenar a ópera, ela é tomada como pretexto. A obra é reduzida ao seu essencial, tanto do ponto de vista musical (com uma inteligente intervenção do compositor Raul do Valle), como histórico. O espetáculo realiza-se em planos de espaço e tempo, montados de tal maneira que, na sucessão dos quadros da trama original, se imbrica o comentário crítico,  não só relativo à História, que ela reverencia, como também ao próprio ser da ópera, enquanto encenação, permitindo-se até mesmo brincadeiras de dolorosas realidades históricas ainda hoje presentes em nosso cotidiano.

Tecnicamente, O Guarani retoma a manipulação já utilizada em Cobra Norato (bonecos de balcão) e a simplicidade do boneco de luva de pequeno porte com seu espaço limitado e movimento linear. Permite, em movimentos preciosos, o uso do boneco de fio.   A manipulação é desvendada sob a luz, em cenas de interação boneco/manipulador, como no momento contundente em que um índio, despojado de suas vestes primitivas, recebe, em seguida, as vestes do colonizador. Também a inserção de diversos textos históricos e estatísticas, apresentados por   um personagem que faz a narração e comenta criticamente o espetáculo (um pouco à semelhança da figura de Qorpo Santo inserida como um alter ego do diretor, em As Relações Naturais), contribui para o adensamento da carga dramática.

Carga tão poderosa que a apresentação do espetáculo tem provocado as mais diversas reações da plateia. Em sua turnê (1991) por várias cidades do México e da Venezuela, o final do espetáculo era sempre marcado por discursos inflamados de pessoas que se mostravam tocadas pelas questões suscitadas.

 A crítica assim se referiu ao espetáculo:

O Guarani nos mostra dois lados interessantes de nossa concepção nacional: primeiro, o absurdo da proposta de se esquecer completamente nosso passado europeu; segundo, a inviabilidade de construção de uma cultura a partir do ocultamento do preconceito e do etnocentrismo. A brasilidade de O Guarani talvez esteja exatamente neste caminho: a simples constatação de que não somos mais índios nem portugueses.  

Marcelo Castilho Avelar – Estado de Minas

O Guarani apresenta principalmente uma severa crítica a toda forma de colonização e, através dos símbolos, traça um paralelo entre o índio de José de Alencar e todos os povos colonizados de hoje. Segundo Álvaro Apocalypse, essa identificação é muito forte, pois a colonização indígena é o maior drama histórico nestes termos. Nunca um povo tão grande foi submetido de maneira tão contundente.   Apesar de toda esta seriedade, O Guarani é levado à cena em tom irônico e tem mensagem de esperança, de continuidade, em termos de um constante renascer.

Luiz Augusto Hipert  –  Estado de Minas

O mundo da Imaginação gira mais rápido com o Giramundo, o teatro de bonecos fundado em 1970 por um grupo de artistas plásticos cansados da imobilidade de suas obras. Este grupo de artistas brasileiros  não se limitou a reproduzir as técnicas tradicionais de marionetes; com base na investigação e no estudo, o Giramundo tem servido como um baú no qual se guarda a memória de uma cultura popular ameaçada de extinção pelas novas técnicas de comunicação. Suas produções para crianças e adultos receberam o reconhecimento internacional por seus valores formais e a riqueza artística de seu conteúdo.  

Fernando Ita – Programa do XVI Festival Cervantino – México

 

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Cartaz do espetáculo "O Guarani", de 1986. / acervo Giramundo