Dai-me luz, dai-me amor

Compartilhe

O céu de Glauco

Em 1997, Glauco fundou o Céu de Maria – igreja do santo-daime localizada em Osasco, região metropolitana de São Paulo. O cartunista então se tornou um importante líder espiritual da religião, que efetuou uma mudança de hábitos significativa em sua vida.

Glauco levou para o daime praticamente todos os seus familiares, além de amigos e curiosos ligados à vida cultural de São Paulo, popularizando a crença em um novo nicho.

Compartilhe

Cerimônia no Céu de Maria, à época em que Glauco dirigia o local

Compartilhe

Seção de vídeo

Céu de Maria

Este documentário conta um pouco da história da igreja Céu de Maria, fundada pelo cartunista Glauco Vilas Boas em Osasco (SP). Há imagens do local e depoimento de amigos e familiares do artista.

Gravado em maio e junho de 2016, em Osasco (SP) e Belo Horizonte (MG).

Compartilhe

Citado por Glauco em uma de suas tiras, o psicólogo Leonardo Libânio Christo foi quem apresentou o santo-daime para o cartunista

Compartilhe

O santo-daime

Em 1912, Raimundo Irineu Serra (1892-1971), descendente de africanos, deixou seu Maranhão de origem para trabalhar e reencontrar parentes na floresta amazônica. Lá descobriu a ayahuasca – bebida conhecida dos povos autóctones da região há milhares de anos e associada a manifestações do espírito, à clarividência, à melhoria da saúde.

Ao começar a beber o chá, Irineu mirou uma mulher, Clara, de quem recebeu a sentença de se isolar na mata, comendo mandioca e tomando mais chá, para esperar revelações. Mirar, para os daimistas, descreve o que ocorre quando a ayahuasca altera os sentidos, a viagem.

Na mata, Irineu voltou a mirar Clara, desta vez como Nossa Senhora, a Rainha da Floresta, e foi apresentado a uma nova religião: o santo-daime. O nome é corruptela do verbo dar no modo imperativo das exortações de fé – dai-me luz, dai-me amor. Designa religião e bebida, que estão amalgamadas como unha e carne, noite e lua.

Seguidor de mestre Irineu, Sebastião Mota de Melo (1920-1990) fundou, em 1974, na atual Vila Céu do Mapiá (Pauini/AM), o Centro Eclético da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra (Cefluris). A vila está localizada na Floresta Nacional do Purus, área de proteção ambiental na fronteira do Amazonas com o Acre. Conhecido como padrinho Sebastião, ele deu início ao processo de oficialização da religião.

Seu filho, Alfredo Gregório de Melo, virou padrinho Alfredo e o sucedeu como líder da igreja, que em 1998 passou a se chamar Igreja do Culto Eclético da Fluente Luz Universal (Iceflu) e segue expandindo o seu alcance. Atualmente são mais de cem locais de prática do santo-daime no Brasil e em outros países.

Em geral, trata-se de comunidades com uma igreja e casas de fiéis e clérigos, em pontos afastados dos centros urbanos, onde são cultivadas as plantas usadas no chá.

Mestiça e única

O santo-daime é uma religião mestiça – reza o terço, acende velas para espíritos da floresta e bate atabaque. Mescla referências do cristianismo e das tradições indígenas e afro-brasileiras. A doutrina prega o amor, a verdade e a justiça. Na liturgia, além da ingestão do chá, há música – preservada em hinários, interpretada por instrumentos (entre os quais o maracá é o mais importante), com canto puxado pelas vozes femininas – e bailado. Há ainda o uso de vestes e adereços específicos, a farda – calça, camisa e terno brancos com gravata e broche para os homens; camisa e saia brancas, uma espécie de avental verde com fitas coloridas e coroa para as mulheres. Nas cerimônias, uma energia emana da harmonia do grupo, reunido em roda com o altar ao centro, sempre homens apartados das mulheres. A infusão é feita com dois ingredientes – folha rainha (Psicotrya viridis) e cipó-jagube (Banesteriopsis caapi) – e recomenda-se, dias antes de tomá-la, evitar carnes, álcool e sexo. Entre as reações, pode ocorrer um processo de limpeza do corpo e do espírito, com vômitos e diarreias, e o aumento da percepção da atividade onírica e dos sentidos. No caso de iniciantes, pode ser que se beba o chá e não se sinta nada. O daime tem suas vontades, dizem, e cada caminhada é única.

Compartilhe

Glauco (à direita) com Alfredo Gregório de Melo, atual líder religioso do santo-daime. Conhecido como padrinho Alfredo, é filho do líder anterior, Sebastião Mota de Melo (1920-1990), o padrinho Sebastião. Ambos foram mentores do cartunista

Compartilhe

Glauco e seu filho Raoni (com o violão) em cerimônia no Céu de Maria

Compartilhe

Chaveirinho e Chaveirão

Glauco tocava acordeom nos rituais que comandava e deixou dois hinários: Chaveirinho, com 42 hinos, e Chaveirão, com 11. Os títulos fazem referência a São Pedro, guardião da chave do céu. Recebidos durante as mirações, os hinos têm letras e estruturas melódicas simples e são cantados repetidas vezes, como mantras.

Os 53 hinos – mesmo número de anos que Glauco tinha quando morreu – de Chaveirinho e Chaveirão louvam a cannabis. Chamada de Santa Maria, seu uso foi sugerido em uma miração do padrinho Sebastião. Glauco, antes mesmo do daime, era afeiçoado à planta, sendo lembrado pelos amigos em diversas situações em que a fumou em espaços públicos e privados à revelia de proibição.

O hino “Uma Bela História”, por exemplo, diz: “Com o galho verde em sua mão / O anjo veio e fez a profecia / Agora vamos ter união / E mais respeito à Santa Maria”. Por seu consumo ser proibido, a maconha não é usada nos rituais do Céu de Maria.

Para Glauco, ervas sagradas carregavam poderes do homem e do espírito. Quando se bebe o chá ou se fuma a cannabis, não está em jogo a diversão banal. Trata-se de atos sagrados, de cura e transcendência, que são invocados.

Na mitologia grega, Glauco é nome de dois personagens cuja história é marcada pela presença das ervas: um mortal que se transforma em deus marinho após ingerir uma erva mágica; e um filho do rei Minos que se afoga em um pote de mel, mas é ressuscitado por meio do uso de ervas no seu corpo morto.

Compartilhe

Manuscrito de um dos hinos recebidos por Glauco

Compartilhe

Compartilhe

Glauco morreu na madrugada do dia 12 de março de 2010 – ele e seu filho Raoni foram assassinados durante um trabalho do santo-daime. A brutalidade de sua morte, no entanto, não se sobrepõe à leveza de seus traços e de sua personalidade.