o processo criativo

A Mente e o Coração do Corpo

Por Iara Biderman

No princípio é a música. E o quadril. Assim começam o processo de criação e os movimentos de origem inconfundível. Eles vêm do Corpo, a companhia que tomou como nome a estrutura física humana para – nestes 40 anos – criar uma linguagem única de dançar estruturas corporais, musicais, visuais, motoras, emocionais, brasileiras e universais.

“Minha ideia é fazer com que música e dança se tornem uma coisa só. Às vezes eu consigo”, diz Rodrigo Pederneiras, há 35 anos o nome e o sobrenome das coreografias do Grupo Corpo. Segundo Paulo Pederneiras, diretor artístico da companhia mineira, esse foi o foco do trabalho de Rodrigo desde que ele se tornou o coreógrafo residente do coletivo em 1981. “Primeiro convidamos o músico. Damos a ele liberdade total e não sugerimos referência alguma, a não ser a duração da trilha sonora, cerca de 40 minutos. Preferimos ser influenciados a influenciar. É a partir da música que começamos a criar. Não temos uma ideia a priori”, conta Paulo.

A primeira fase do Grupo Corpo – entre 1975 e 1980 – foi marcada por coreografias narrativas ainda muito fundamentadas no balé clássico. A autonomia de criação da companhia veio justamente quando Rodrigo passou a comandar definitivamente o corpo de bailarinos. Nesse período, apesar de ele ouvir ainda muita música clássica, o que se reflete na trilha sonora dos espetáculos – depois de Último Trem (1980), durante praticamente uma década o grupo se valeu de composições de grandes músicos, como Heitor Villa-Lobos, Robert Schumann e Frédéric Chopin –, suas pesquisas já avançavam em direção às criações de compositores brasileiros que combinavam referências populares e eruditas para formar uma música brasileira contemporânea.

“Eu ouvia falar em dança brasileira em relação aos temas, às músicas, mas não à forma de dançar. A década de 1980 foi um grande aprendizado nesse sentido”, comenta o coreógrafo. Essa provocação fez com que a companhia iniciasse a construção de um vocabulário próprio – no que diz respeito à textura, à cor e ao cheiro do Brasil –, muito embora, como Rodrigo enfatiza, as questões que mais tarde formariam realmente a identidade do Corpo já estivessem presentes desde a primeira montagem.

Inês Bogéa, atual diretora da São Paulo Companhia de Dança e ex-bailarina da companhia mineira, exemplifica: “A trilha sonora original de um compositor brasileiro de ponta; a união dos vários elementos, todos em busca de uma unidade para a obra; a dramaturgia calcada na música; o arrojo e a determinação de dialogar com o seu tempo de forma direta e sem concessão; tudo isso já estava em Maria Maria [1976], por exemplo”. Inês dançou no grupo durante 12 anos – de 1989 a 2001, ano em que organizou o livro Oito ou Nove Ensaios sobre o Grupo Corpo (Cosac Naify).

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Paulo Pederneiras

Paulo Pederneiras é diretor geral e artístico do Grupo Corpo. Também é o responsável pela luz dos espetáculos e desde o espetáculo Bach (1996) participa da criação dos cenários.

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Bach (1996) | José Luiz Pederneiras

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A criação da coreografia

No vídeo: Rodrigo Pederneiras (coreógrafo do Grupo Corpo), Cassi Abranches (coreógrafa) e Paulo Pederneiras (diretor artístico do Grupo Corpo)

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Linha do Equador

Há, no Grupo Corpo, um jeito muito particular de os bailarinos se movimentarem, o qual, como afirma Paulo, “não se parece com o jeito de nenhuma outra companhia”. “Em cima de cada nota o Rodrigo cria um movimento. É como se os bailarinos fossem instrumentos”, completa Cassi Abranches, ex-bailarina do grupo e para quem Rodrigo pretende passar o bastão.

Ela assinou o espetáculo Suíte Branca, que, ao lado de Dança Sinfônica, comandado por Rodrigo, comemora os 40 anos do grupo. A partir de uma observação atenta dos espetáculos é possível perceber que a completa harmonia entre dança e música levou a uma forma pouco usual de contar os tempos e os contratempos. “É uma contagem difícil. O que os outros fariam em dois movimentos, o Rodrigo faz em quatro – a agilidade do bailarino tem de ser outra. E ainda tem de ter a ginga. No momento em que tudo se coordena a coisa sai”, diz Cassi.

A ginga, que pode parecer um movimento óbvio, na verdade no Corpo é resultado de um processo elaborado. Segundo Rodrigo, foi fundamental para seu processo criativo perceber que o brasileiro tem um jeito sensual particular. “Comecei a pensar como seria trabalhar com o movimento partindo da bacia. Todo o corpo responde a partir disso”, conta o coreógrafo, que ao mesmo tempo faz a ressalva de que esse “toque sensual” pode ser um risco. “Quando você fala que tudo começa na bacia, pensam que é rebolado. É mil vezes mais que isso. Bacia é a linha do Equador do corpo. Quando ela mexe, o resto do corpo responde.”

A companhia é conhecida por mesclar o popular e o erudito, o que realmente lhe confere movimentos muito característicos. No entanto, em uma conversa com Rodrigo, é   possível perceber que esse foi apenas o início: “Eu fui pegando as danças populares brasileiras e mesclando-as com a técnica clássica, e misturando o clássico com o contemporâneo. Depois, as técnicas foram sumindo e as formas foram se diluindo, dando lugar à dinâmica, em que penso mais na intenção do movimento do que na forma”, conta.

Segundo a ex-bailarina Bogéa, Rodrigo é capaz de traduzir visualmente a partitura musical com seu vocabulário, encadeando as frases de movimento de maneira que os impulsos, o ritmo e a dinâmica da música sejam percebidos no corpo de cada intérprete.

“Ele se vale da gravidade, mas desafia os limites pela possibilidade de articulação das diferentes dinâmicas em distintas partes do corpo.”

A também ex-bailarina Abranches chama a atenção para outra característica marcante da companhia: os deslocamentos e os desenhos que os bailarinos realizam no espaço. “Ninguém coreografa como o Rodrigo. Sob o comando dele, o palco está sempre pulsando, cheio, torna-se um grande jogo de xadrez”, comenta. Rodrigo emenda e explica que isso acontece porque ele   nunca vê uma cena separada da outra. “Nunca é apenas um caminhar ou correr. É uma linha contínua, frases coreográficas que se complementam e criam esse desenho espacial se fundindo umas nas outras”, explica o coreógrafo.

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Nazareth (1993) | José Luiz Pederneiras

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A Emoção

“Vejo muitos duos que são lindos, mas falta humanização. Tem de ter sexo, amor, ódio. É do que sinto falta na dança contemporânea. Tento humanizar. Algumas vezes acerto”, afirma Rodrigo. Para o público, esse acerto vem se repetindo e se multiplicando nestes 40 anos. Mas Rodrigo insiste que mexer com a emoção é raríssimo e efêmero, assim como a dança.

O que vai tocar as pessoas, segundo o coreógrafo, não é a beleza, no sentido da precisão. “O movimento pode ser feito de milhões de formas: brusco, cortado etc. Mas é a escolha da dinâmica correta para aquele tema musical ou para aquela ideia que vai fazer com que o público se emocione. E quando isso acontece é muito legal”, ressalta.

E acontece por uma combinação única de todos os elementos que compõem o espetáculo. “O que se vê na cena é resultado de uma decantação de ideias que perpassam todas as áreas do grupo, da produção à criação”, afirma Bogéa. Paulo é quem coordena esse arremate. “Minha função maior é conceituar a obra, dar um título e conseguir uma unidade entre todas as áreas: coreografia, música, figurino e cenário. E daí vem o espetáculo”, diz.

É desse processo que Paulo mais gosta. “Eu tenho quase o dever de entender por onde o processo criativo do Rodrigo está indo. Ele não tem uma ideia pressuposta, mas é claro que algum sentido a obra tem. Para mim, o mais custoso é conseguir ver nesse processo um conceito que reúna tudo para dar um direcionamento”, afirma o diretor artístico. A partir da multiplicidade de elementos, torna-se possível filtrar a estética própria do Corpo: “Minha maneira de trabalhar é enxugar, dar limpeza à parte visual, não atrapalhar com efeitos especiais”, diz Paulo. A experiência proporcionada pelo equilíbrio de todos esses elementos – música, dança, luz, cenário, figurino – “desafia a ideia do que é ser brasileiro, sem exotismo ou caricatura, transformando certas matérias brutas do Brasil em dança”, aponta Bogéa.

“Hoje nem penso nisso, em criar uma dança brasileira; ela já está incorporada inclusive no corpo dos bailarinos. A brasilidade e a universalidade estão na dança”, afirma Rodrigo. Ou, como disse o poeta e teórico modernista Mário de Andrade em uma carta ao compositor Camargo Guarnieri, em 1934, lembrada por Bogéa: “O papel do artista criador não é figurar uma nacionalidade, mas transfigurá-la”.

Iara Biederman é jornalista, autora do blog Deu Baile e colaboradora da Folha de S.Paulo. No mesmo jornal, foi repórter de cultura, com ênfase em dança e teatro. Formada em jornalismo pela PUC/SP, especializou-se em história da arte e análise crítica do jornalismo na Universidade George Washington, Estados Unidos, e na Universidade de Cardiff, Reino Unido.

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“Onqotô” (2015): Mortal Loucura

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A importância do patrocínio

No vídeo: Paulo Pederneiras (diretor artístico do Grupo Corpo) e Cláudia Ribeiro (diretora de programação).

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O Figurino

No vídeo: Freusa Zechmeister (figurinista do Grupo Corpo)