Texto do curador

Pré-Ocupação de Um Visionário

Rogério está no ar, na tela e no papel. A Ocupação Rogério Sganzerla pinta numa esquina de ponta da Avenida Paulista, evoca os signos do caos, atravessa o perigo negro do abismo e joga luz nas trevas através do mistério da criação.

Não estava escrito em lugar nenhum qual o destino que aguardava aquele guri, que até os 5 anos não falava, aos 7 já lançava um livro de contos e aos 11 aprontava o primeiro roteiro de longa metragem.

Conta sua mãe, Dona Zenaide, que Rogério, lá em Santa Catarina, quando criança, adorava brincar de mágica e hipnotizar os amigos. O que ela não adivinhava, contudo, é que seu filho ganharia o mundo, tirando “o cinema do quarto de brinquedos” e revelando, em quatro filmes, verdades e mentiras da passagem do mago Welles pelo Brasil.

A cinefilia de Sganzerla aflorou aos 13 anos, no Colégio dos Irmãos Maristas em Florianópolis, onde o padre Andreotti, ao perceber que seu aluno não tinha pendor para atividades físicas, o estimuou a frequentar o cineclube, que exibia um atrevido repertório de John Ford e Rene Claire a Rossellini.

A escolha de Rogério pelo cinema se definiu em 1961, na mudança para São Paulo, após sobreviver a um trágico acidente de carro em Joaçaba. Decidiu se instalar numa pensão na Pauliceia aos 15 anos e virou rato da Cinemateca enquanto fazia direito no Mackenzie, curso que abandonou dois anos depois, ao ser convidado por Décio de Almeida para escrever no festejado Suplemento Literário do Estadão. Através da crítica, fez cinema com a máquina de escrever, não diferenciando o “escrever sobre cinema do escrever cinema”.

Depois fundou, com Maurice Capovilla, uma página de cinema no Jornal da Tarde, tornou-se, ainda, redator da revista Visão, da Folha da Tarde e do Última Hora. Nesse período conheceu Andrea Tonacci e realizou seu primeiro filme de ficção, curiosamente chamado Documentário, que conquistou o disputado Prêmio JB Mesbla. Entregue pela atriz Helena Ignez, sua futura esposa e parceira, o prêmio lhe rendeu uma viagem para Cannes, que ele aproveitou para a cobertura do festival. Na viagem de volta, escreveu no navio o roteiro de O Bandido da Luz Vermelha. O resto é mar.

A trajetória errática de Rogério desse ponto em diante todos conhecem: lançado em 1967, O Bandido provocou enorme impacto, arrebatou vários prêmios no Festival de Brasília, transformou-se em clássico outsider e, como não bastasse, virou fenômeno de público, autenticando a utopia de Oswald de Andrade – fabricar biscoito fino para o deleite das massas. Antes de tudo, o filme profetiza o AI-5 (“decretado o estado de sítio no país”, brada a locutora de rádio) e inova na incorporação do pop, do kitsch, de clichês, subgêneros e HQs.

E, quando todos pensavam que estacionaria na sombra do próprio mito, Rogério apostou, em 1969, todas as suas fichas no popular e sofisticado A Mulher de Todos, um ousado modelo de indústria de Sganzerla para o audiovisual brasileiro – conforme o sócio e amigo Júlio Bressane.

Um primor de roteiro, A Mulher de Todos escancara o talento de Helena Ignez, que revoluciona a arte de interpretar, explodindo os limites do enquadramento. Na sequência vem a radicalidade setentista da produtora Belair, que transpôs o deserto vigente no país e legou seis longas – marcantes viagens em apenas três meses de estrada. Da lavra de Sganzerla, três pérolas: Carnaval na Lama (desaparecido em mostra no Jeau de Paume, em Paris, em 1992), Copacabana, Mon Amour e Sem Essa, Aranha.

Enquanto filmavam com olhos livres e rompiam nós narrativos, o tempo se fechou e Rogério, Helena e Júlio se viram forçados a se exilar no Velho Mundo, onde concluíram parte dos filmes, que foram exibidos em Londres.

Na volta ao trópico, no vácuo da contracultura, adotando seu singular método pré-colombiano, Rogério lançou com Helena o Abismu, salto no escuro que em 30 anos ainda reverbera com frescor sob a fuselagem sonora de Hendrix e a performance transcendental de Zé Bonitinho.

O sonho acabou? No embalo dos esquisitos anos 1980, das aberturas políticas, da redemocratização e da globalização à vista, só um cidadão pode nos salvar: Welles. Ao lado, naturalmente, de três signos centrais do cinema de Sganzerla: Hendrix (desde Abismu), Oswald de Andrade (Perigo Negro) e Noel Rosa, inspirador de dois filmes: Noel por Noel (1980) e Isto É Noel (1990).

Desse modo, Rogério Sganzerla dedica-se de corpo e alma a compor uma tetralogia sobre a passagem entre nós do cineasta norte-americano Orson Welles, nos anos 1940, quando It’s All True é abortado por contrariar interesses de políticos brasileiros e norte-americanos de suspeita vizinhança.

Na primeira sessão do copião do Signo do Caos em São Paulo foi que me aproximei mais de Rogério, que conhecera desde 1980, nos tempos de universidade, em Curitiba, quando apresentou seu filme Brasil, debatido, com a presença dele, em nossa turma de jornalismo. De lá pra cá, breves encontros, mas para mim intensos papos lunáticos.

Que mistérios tem Rogério?

Enfant terrible, internacionalista, cineasta com suingue que saiu determinado da província para desburocratizar mentes e desafinar o coro dos contentes com um corte cínico-utópico na cena audiovisual contemporânea.

Para ser vista com olhos livres e sensibilidade atenta (parafraseando Oswald de Andrade), apresentamos pela primeira vez em nosso país parte significativa da vasta produção intelectual-criativa de Rogério Sganzerla, cuja memorabilia é revisitada e a vida-obra escancarada nos roteiros inéditos e nos caderninhos em que desde criança anunciava o crítico que se afirmaria na adolescência.

A Ocupação Rogério Sganzerla é composta de nichos-sequência que compõem a trajetória do artista, homem e pensador. Sem cronologia rígida, a montagem espelha a lógica cinematográfica, onde coabitam livremente tempos, ideias, formas, sons. Por se tratar de um artista transgressor, que permanentemente rompeu esquemas, decidimos sinalizar, ao invés de demarcar, resguardando assim a dimensão enigmática de seus escritos e registros fílmicos. Os espaços da exposição evitam o tom saudosista e valorizam aspectos pictóricos e gráficos recorrentes na obra do autor.

Uma projeção exibe em quatro telas pequenos filmes que buscam conexões na filmografia de Sganzerla, evidenciando seu estilo, características dos personagens e diálogos marcantes. Trata-se de um eixo central expositivo que proporciona ao visitante uma experiência sensorial que pretende antes despertar o interesse pela retrospectiva do diretor.

A exposição extrapola as fronteiras do espaço e se prolonga no plano virtual, criando uma rede de dezenas de relatos através deste site, que permitirá uma compreensão mais abrangente do universo existencial e inventivo de Rogério, amplificando o alcance de sua obra. Na fase de prospecção e pesquisa, cerca de 4 mil imagens foram digitalizadas do acervo familiar, de instituições e de companheiros e amigos profissionais, para consequente seleção da curadoria. Os personagens “sganzerlianos”, com respectivos verbetes, ganham destaque na mostra, que revelará cenas familiares e exibirá o material bruto de dois filmes do cineasta catarinense: um inacabado, Fora do Baralho (1971), rodado no deserto do Saara, e Carnaval na Lama (1970), desaparecido em uma mostra que homenageava Helio Oiticica em Paris, em 1992.

Os três signos medulares na constelação de Rogério – Noel Rosa, Orson Welles e Jimi Hendrix – ganharão espaços específicos. Atenção para o canto dedicado a Hendrix, que é o experimento interativo da mostra: uma guitarra com dispositivo mid, disponível para qualquer visitante tentado a aguçar o imaginário musical inerente ao cinema de RG. A guitarra emitirá sons e imagens em inesperadas combinações.

O mar, elemento significativo nos filmes de Rogério, inundará uma tela sob forma de projeção, que o espectador descortinará ao incursionar no ambiente. O público estará, então, no interior de uma sala-tela-caixa, onde o imaginário do gênio protagoniza a cena, os personagens divagam e a luz projeta signos e profecias que refletem o novo milênio.

Concebida sob uma perspectiva contemporânea, a Ocupação Rogério Sganzerla persegue três linhas de fuga: luz, abismo e caos – nodais no universo do autor. Sua plenitude poética poderá também ser compartilhada em retrospectiva completa do cineasta, debates com íntimos conhecedores de sua trajetória no Brasil e no exterior, por meio de portal eletrônico, livros e esta publicação: ecos do espírito da mostra.

Através da mobilização da família, que generosamente abriu seu acervo, de amigos e colaboradores e entidades de preservação, e do envolvimento da equipe do Itaú Cultural, ocupa-se, enfim, um espaço privilegiado para a expansão de linguagem de Rogério Sganzerla. E justo na cidade que Rogério filmou compulsivamente com sua máquina de escrever desde adolescente e onde produziu as obras-primas, O Bandido da Luz Vermelha e A Mulher de Todos, que agora voltam reconhecidas para inscrever sua luz própria.

A Ocupação Rogério Sganzerla é uma iniciativa sem precedentes sobre um artista visionário que transita na terceira margem do cinema, intransigente em seu ideário e que finalmente recebe um tratamento à altura da contribuição para o cinema brasileiro com que sonhamos (neste caso, sua vida vale o sonho). Um evento de fôlego, que proporcionará a fruição de uma obra singular, radical e ainda pouco acessível ao público, por dificuldades de distribuição. Esperamos que em breve este esforço lance sólidas bases para a sistematização do inventário documental do artista, criando, assim, condições para um diagnóstico que desencadeie uma ação urgente e efetiva para a restauração desse patrimônio audiovisual sem limites.

Casado com Paloma Rocha, enteada de Rogério Sganzerla, Joel Pizzini foi seu amigo. Cineasta, dirigiu ao lado de Paloma o documentário Elogio da Luz (2003), sobre a vida e obra do amigo. Diretor do filme 500 Almas (2005), vencedor de mais de 20 prêmios em festivais nacionais e internacionais, Joel Pizzini é o curador da Ocupação Rogério Sganzerla.

Joel Pizzini

curador