Anos de chumbo

Declaração de Princípios

Dancem os que tenham motivos

divirtam-se os imbecis convictos

eu por mim só canto

o que me desespera

o resto, adio.

[Alex Polari, em Camarim de Prisioneiro]

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Carta de Antonina

Carta de Antonina Murat Vasconcellos - mãe da cineasta Lúcia Murat - enviada a Zuzu Angel | imagem: acervo Instituto Zuzu Angel

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Carta de Antonina 2

Carta de Antonina Murat Vasconcellos - mãe da cineasta Lúcia Murat - enviada a Zuzu Angel | imagem: acervo Instituto Zuzu Angel

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Atuação Política

Lúcia Murat é cineasta, estudou economia e, com a decretação do AI-5, em dezembro de 1968, entrou para o grupo MR-8. Presa em 1971, foi torturada e encarcerada pela Ditadura Militar por três anos e meio. Seu primeiro longa-metragem, Que Bom Te Ver Viva (1988), estreou internacionalmente no Festival de Toronto e revelou uma cineasta dedicada a temas políticos e femininos. Entre muitos prêmios, o longa foi escolhido como melhor filme do júri oficial, do júri popular e da crítica no Festival de Brasília de 1989.

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Cronologia

1955 – 50 Anos em 5. Juscelino Kubistchek toma posse.

1961 – Depois de 7 meses de mandato, Jânio Quadros renuncia a presidência. Assume João Goulart.

1964 – Em São Paulo, 500 mil pessoas na Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Pesquisa IBOPE mostra que brasileiro aprova Goulart, mas militares instauram a ditadura, à força. Sob a presidência do marechal Humberto Castello Branco, é editado o Ato Institucional 1 (AI 1) que suprime direitos políticos. 1965 – O Ato Institucional 2 (AI 2) decreta o fim dos partidos políticos – restam a Arena, simpatizantes, e o MDB, oposição – e institui eleição indireta pra presidente, autorizando o mandatário a decretar Estado de Sítio.

1967 – O presidente Artur Costa e Silva promulga a Constituição Federal do regime militar e estabelece a Lei de Segurança Nacional. 

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AI-5

1968 – Ocorre a Passeata dos Cem Mil contra os abusos da ditadura. O Comando de Caça aos Comunistas depreda cenário e equipamentos e espanca atores da peça Roda Viva, de Chico Buarque, com direção de José Celso Martinez Côrrea. A guerrilha realiza assaltos e sequestros. Greves paralisam fábricas em São Paulo e Minas Gerais. Em dezembro, o fim das liberdades civis com o AI-5. A União Nacional dos Estudantes (UNE) é considerada ilegal.  AI-5

Decretado em 13 de dezembro de 1968, o Ato Institucional nº 5 deu início ao período mais implacável da ditadura militar no Brasil (1964-1985). Com a medida, imposta durante o governo de Arthur da Costa e Silva, o regime se deu o direito de perseguir e punir arbitrariamente seus – reais ou potenciais – opositores. Em vigor até 1978, o AI-5 ainda fechou o Congresso Nacional e concedeu ao presidente o poder de, entre outras ações, cassar mandatos, intervir em Estados e municípios e suspender os direitos políticos de qualquer cidadão.

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A revolução

Lúcia Murat é cineasta, estudou economia e, com a decretação do AI-5, em dezembro de 1968, entrou para o grupo MR-8. Presa em 1971, foi torturada e encarcerada pela Ditadura Militar por três anos e meio. Seu primeiro longa-metragem, Que Bom Te Ver Viva (1988), estreou internacionalmente no Festival de Toronto e revelou uma cineasta dedicada a temas políticos e femininos. Entre muitos prêmios, o longa foi escolhido como melhor filme do júri oficial, do júri popular e da crítica no Festival de Brasília de 1989.

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Chumbo

1969 – O presidente Emílio Garrastazu Médici combate aos opositores e, com o apoio de empresários, organiza os DOI-CODI e a OBAN. Começa o Milagre Econômico.

1971 – Ocorre a prisão e o desaparecimento de Stuart Angel. O deputado Rubens Paiva, cassado pelo regime militar, é preso, torturado e morto. Carlos Lamarca é morto pelo exército. Ulisses Guimarães se torna presidente do PMDB.

1972 – O Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, sob a presidência do ministro Alfredo Buzaid, arquiva as investigação sobre Stuart. Zuzu recebe a carta escrita por Alex Pollari de Alverga descrevendo as torturas e a morte do filho na Base Aérea do Galeão.

1973 – Sônia Maria Moraes Angel Jones, esposa de Stuart, é presa, torturada e assassinada por militares. O PIB do país cresce 14%. A Anistia Internacional anuncia os nomes de 472 torturadores e 1.081 torturados no Brasil.

1974 – O general Ernesto Geisel assume a presidência e promete iniciar a distensão do regime militar. O Milagre se foi: é tempo de recessão e, cada vez mais, censura previa em rádios, TV e jornais. 

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Carta para Geisel

Carta manuscrita de Zuzu Angel destinada ao General Ernesto Geisel (presidente da República do Brasil), 1975 | imagem: acervo Instituto Zuzu Angel

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Carta para Geisel 2

Carta manuscrita de Zuzu Angel destinada ao General Ernesto Geisel (presidente da República do Brasil), 1975 | imagem: acervo Instituto Zuzu Angel

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Carta para Geisel 3

Carta manuscrita de Zuzu Angel destinada ao General Ernesto Geisel (presidente da República do Brasil), 1975 | imagem: acervo Instituto Zuzu Angel

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A Célula do Setor Secundário

À noite sonhávamos

e durante o dia

comíamos os sonhos

da padaria

em frente.

[Alex Polari, em Camarim de Prisioneiro]

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Perdidas Gerações

“Simone de Beauvoir escreveu que em setembro de 1944 ter vinte ou 25 anos em Paris era um golpe de sorte: “Todos os caminhos estavam abertos”. Como tinha então 36 e Sartre, 39 anos, a observação deixa escapar uma compreensível insinuação de inveja: ‘Jornalistas, escritores, cineastas nascentes discutiam, faziam planos, tomavam decisões com tal paixão, como se o futuro só dependesse deles’.

Em maio de 68, seus olhos já sexagenários puderam se espantar de novo vendo um fenômeno parecido, muito mais ampliado, na mesma Paris. Os jovens de vinte ou 25 anos não se contentavam mais em se apossar do futuro. Com igual paixão, e gestos mais decididos do que os dos seus predecessores do pós-guerra, eles queriam dominar o presente, e não só na França. Movida por uma até hoje misteriosa sintonia de inquietações e anseios, a juventude de todo o mundo parece iniciar uma revolução planetária.

No Brasil, o chamado Poder Jovem ensaiava igualmente a sua tomada de poder e perseguia sua utopia. Também aqui, em 68, ter menos de trinta anos era por si só um atributo, um valor, não uma contingência etária. Algumas evidências contribuíram para isso. Pelé, aos 28 anos, bicampeão mundial, preparava-se para o tri e já era o maior jogador do mundo; Glauber Rocha, com 29 anos, já conquistara a admiração internacional com pelo menos dois filmes: Deus e o diabo na terra do sol e Terra em transe; Chico Buarque e Caetano Veloso, se parassem de compor aos 24 e 26 anos, entrariam mesmo assim em qualquer antologia de música popular brasileira; Roberto Carlos tinha 25 anos e já era rei; Elis Regina e Gal tinham 23 anos; Nara Leão, 26; Maria Bethânia, 22.

Além deles, um grupo de quase-garotos de nomes desconhecidos – Vladimir, Travassos, Muniz, Franklin, Jean-Marc, José Dirceu – iria em breve virar o país pelo avesso. Eles assustavam a ditadura, sonhavam com muitos Vietñas no mundo, acreditavam que a imaginação ia tomar o poder e amavam a Revolução. A avidez se justificava: eles tinham sido politicamente castrados na violência.

Quando os militares deram o golpe em abril de 64, abortaram uma geração cheia de promessas e esperanças. (…)”

                                                                                                     

[Trecho do artigo “Perdidas Gerações” escrito por Zuenir Ventura no livro 1968 – O ano que não terminou]

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Carta para Silvio Frota

Carta manuscrita assinada por Zuzu Angel destinada ao General Silvio Frota (ministro do Exército), 1975 | acervo: imagem Instituto Zuzu Angel

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Carta para Silvio Frota 2

Carta manuscrita assinada por Zuzu Angel destinada ao General Silvio Frota (ministro do Exército), 1975 | acervo: imagem Instituto Zuzu Angel

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A cultura nos anos 60

Heloisa Buarque de Hollanda é escritora, professora de teoria crítica da cultura da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e curadora do Portal Literal. É autora de livros como Pós-Modernismo e Política (1992) e O Feminismo como Crítica da Cultura (1994).

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Descobertas, sonhos e desastres nos anos 60

Heloísa Buarque de Hollanda

O tema da cultura nos anos 60, ou mesmo, os anos 60 como fenômeno cultural em si, parece infindável. No caso brasileiro, esse tema vem modulado por um entorno especial: a emergência de golpes militares que desestabilizaram por longos anos o regime democrático e a liberdade de livre expressão entre nós.

Paradoxalmente, apesar das fortes pressões políticas (e policiais) que desenham o quadro da década em quase toda a América Latina, os anos 60 são e continuam sendo os anos de ouro de nossa produção cultural. Evidência esta que comprova a agilidade do modo e da lábia com que a juventude brasileira daquele momento moldou, atualizou ou mesmo reformatou, os fortes influxos culturais internacionais que, provavelmente, na área da cultura, mais do que em qualquer outra área, marcaram nossos anos 60 e sua sucessão de turbulências culturais e políticas. Ainda nessa linha de observação é interessante sublinhar como a metabolização do quadro cultural internacional e as ilusões do período pré-64, consolidaram alguns procedimentos que foram surpreendentemente eficazes como fatores de resistência não apenas ao golpe de 64, mas também ao golpe dentro do golpe, de 1968.

Começo pela pergunta: o que foi esse fenômeno cultural até hoje amado, rejeitado, rotulado de “Os Anos 60?”.

Nas matérias sobre 1964 que vêm ocupando os cadernos e grandes espaços nos jornais deste mês, o que encabeça o tema cultura é quase sempre o slogan “sexo, drogas e rock & roll”. Como segunda opção, vêm as descobertas ícones da década que teriam acelerado uma revolução comportamental, entre elas a chegada à lua, a pílula anticoncepcional, Mary Quant e sua mini saia, ou o imbatível tema dos efeitos da já histórica liberação sexual.

Sem desprezar essas pistas, prefiro tomar um rumo diferente e me concentrar numa outra descoberta da época, mais importante, e que pode iluminar todas as outras. Falo da surpreendente “descoberta  do Outro” , fator decisivo nas formas de lutas e resistências culturais que desenharam a década de 60. Explico melhor.

Desde o final dos anos 50, a Europa vinha assistindo a uma inédita sucessão de guerras de descolonização que alteraram de forma definitiva o perfil não apenas econômico, mas sobretudo cultural do chamado Primeiro Mundo.

A sequência foi mais ou menos essa: Em 1957, Independência de  Gana. Em 59, Independência das colônias francesas ao sul do Sahara. Em 61, o assassinato de Lumumba e a agonia do Congo. Em 62, a Revolução da Argélia.

Esses acontecimentos, mais do que as revoluções comportamentais da década são os que mais claramente sinalizam o nascimento convulsivo do que viria a ser conhecido mais tarde sob o logo “os anos 60”.

Para criar um autêntico clima de época, cito Sartre no Prefácio a Les Damnées de la Terre, a clássica obra de Frantz Fanon sobre a luta e a dialética da relação Senhor / Escravo. Escreve Sartre:

“Há não muito tempo, a terra tinha dois bilhões de habitantes: quinhentos milhões de homens e um bilhão e quinhentos milhões de nativos. Os primeiros tinham a palavra, os outros simplesmente a usavam”(…)

Portanto, os anos 60, foram o momento em que todos esses “nativos” tornaram-se seres humanos. Essa sim, uma autêntica  revolução de repercussão política tanto na políticas  externas da s metrópoles quanto nas políticas  internas das diversas sociedades nacionais. Ou seja, as guerras de descolonização naquele momento definiram  mudanças significativas no que diz respeito aos súditos externos – ou os “ nativos” habitantes das ex-colônias – quanto em relação  aos súditos internos destes países- os negros, as mulheres, as minorias-.

Este foi o momento no qual surgiram os “novos sujeitos da história”, ou, como se dizia na época, as “identidades coletivas”.

Como minha tarefa aqui é observar os movimentos culturais pré-64, vou evitar entrar na questão dos novos sujeitos (que me fascina) e vou, disciplinadamente, focar em apenas um desses novos sujeitos, que são os “jovens” ou os “estudantes”. Até então, a expressão o “jovem” exprimia apenas uma faixa etária, situacional e transitória. Naquele momento, entretanto, o “jovem” passa a falar com voz própria, formular suas demandas específicas e, nessa condição – de jovem – interpelar os poderes e as instituições dominantes. Eram segmentos que curiosamente não se definiam por classe social, nem por sua posição nos processos produtivos, nem mesmo por uma clara definição ideológica. Mas que inegavelmente tornaram-se, naquela hora, um dos motores mais efetivos da História, pelo menos até o declínio das rebeliões dos anos 60, por volta da crise do petróleo de 1973.

Por toda a parte, e mesmo em todas as regiões do saber, a convulsão dos anos 60 deixou a sua marca. O maoísmo e a experiência da revolução cultural chinesa, a Revolução Cubana e a teoria do foco (ou experiência da guerrilha como nova tática de enfrentamento), a guerra do Vietnam e sua repercussão na massa estudantil indignada norte-americana, o declínio da Filosofia com a crise das grandes narrativas totalizantes, a culturalização extensiva das experiências sociais, enfim, um momento privilegiado para a política e para a cultura em termos de disseminação de novas formas de fazer política e de experimentar as hierarquias e as relações sociais, produtivas e afetivas.

No Brasil, vivia-se um momento político delicado, mas particularmente estimulante desde a renúncia de Jânio em 61, quando Jango assume a presidência e abre a possibilidade de grandes reformas sociais.

Neste quadro e, à luz das rebeliões internacionais, nossos intelectuais, artistas e estudantes de esquerda, deslizam as questões internacionais sobre as minorias e as instituições patriarcais de feitio autoritário para um outro território de demandas mais locais e talvez mais urgentes. Tomam consciência da estrutura profunda e dos mecanismos de nossas desigualdades sociais e econômicas, ou seja, descobrem um “outro lado do Brasil”, digamos, descobrem uma outra classe de “nativos”, uma população subjugada, oprimida, neste caso, os de baixa (baixíssima) renda.   Engajam-se então no que seria uma “arte popular revolucionária“, ou numa foram peculiar de engajamento cultural diretamente relacionada com as formas da militância política.

Do ponto de vista da experiência social e do empenho na luta cultural, a juventude dos anos 60 no Brasil, atualizava a seu modo, a luta pelas minorias do cenário internacional.

Foi mais ou menos assim, que a produção cultural do início dos anos 60 entre nós mostrou uma curva progressiva de atuação diretamente marcada pelo temas do debate político. Seja nas produções de traços populistas, seja a produção das vanguardas experimentais, os temas da modernização, do nacionalismo, ou da “fé no povo”, informam a urgência de uma arte participante e a crença no alcance revolucionário da arte e da palavra poética.

Desde o final dos anos 50 era possível perceber sinais de mudanças no projeto intelectual e na produção artística das novas gerações. Dois vetores aparentemente antagônicos mobilizavam o campo de forças da produção cultural. De um lado, as correntes experimentais, internacionalizantes, que procuravam dar um salto qualitativo nas produções artísticas e literárias.

De outro, a necessidade de promover uma arte engajada, pedagógica, nacional, para o povo, sugerida pelo quadro político de dicção nacional-popular que emergia com força total naquele início de década.

É interessante observar a permanência insistente de uma forte tensão dialética entre essas duas forças, que vai alimentar a produção cultural e a intervenção intelectual ao longo da década. E é igualmente importante perceber como o antagonismo entre essas duas forças era bem mais estratégico do que real.

Vou tratar aqui com mais vagar a área de teatro porque talvez este tenha sido um dos campos mais exemplares de mobilização política na área artística. Citando João das Neves,  o Teatro foi a arte que mais cedo experimentou “ a descoberta romântica do homem brasileiro”.  Declaração essa , que eu traduziria como sendo o Teatro foi a arte que mais cedo experimentou a descoberta da realidade nacional e do compromisso social pelos artistas e intelectuais brasileiros.

Meus exemplos serão todos do Teatro no Rio de Janeiro, sabendo que este é apenas um exemplo entre muitos que surgiram no quadro da efervescência cultural do período. O grupo do teatro de Arena, talvez o fenômeno mais “anos 60” entre nós, foi fundado em 1953, por José Renato.

O Arena oferecia comédias comerciais para a classe média, com o diferencial de apresentar-se em formato de arena. Entretanto, nas noites de segundas-feiras, seu espaço costumava ser liberado para que os novos grupos e os novos diretores encenassem livremente suas produções. Um desses grupos foi o Teatro Paulista de Estudantes, no qual participavam, nada mais nada menos, do que Gianfrancesco Guarnieri e Oduvaldo Viana Filho. Em 1956, o Arena, por intervenção de Guarnieri, Vianinha e o recém-chegado Augusto Boal, já apresenta um novo perfil. Estavam em pleno funcionamento um Centro Cultural dirigido por Boal, um Dpto de Teatro Infantil, um Curso de Preparação de Atores e um Seminário de Dramaturgia. Em 58, foi encenada, pela primeira vez, o clássico de Guarnieri, – a peça Eles não Usam Black Tie –  que analisava a classe trabalhadora, suas  greves, seus conflitos. O espetáculo ficou em cartaz de 1958 a 1959, fez um sucesso tremendo, viajou o país todo, e deu o tom do teatro e da produção cultural brasileira do período pré-64. Logo em seguida, com Chapetuba Football Clube de Vianinha e Revolução na América do Sul (1960) de Augusto Boal, a farsa política transforma-se em  denúncia e no apelo à mobilização política.

Com rapidez, desdobram-se subgrupos que, liderados por Vianinha, Francisco de Assis e Nelson Xavier, começam a encenar pequenas peças e textos agitprop discutindo a  reforma universitária e a reforma agrária, em sindicatos, fábricas, subúrbios.

Em 1961, o Arena já havia estabelecido o modelo de teatro político que seria seguido pelos grupos que viriam depois. Apesar de claramente comprometido c/ classe trabalhadora, a base política do Arena era estudantil através da União Nacional dos Estudantes (UNE).

Ainda em 1961, Vianinha escreve e encena A mais Valia Vai Acabar , seu Edgar. O dado importante aqui é que, como a peça era um musical político, abre, no grupo, espaço para uma forma de trabalho  agregadora. Juntam-se ao Arena,  o músico Carlos Lyra, o cineasta Leon Hirschman, sociólogo Carlos Estevam, do ISEB.

O sucesso dessa montagem foi um marco cultural para a esquerda que, mobilizada em torno do espetáculo, cria o Centro de Cultura Popular do Rio de Janeiro (CPC/Rio) em 1962. Naquele momento, os teóricos do CPC eram Carlos Estevam, Ferreira Gullar, Vianinha e Chico de Assis.

A partir daí o tom da cultura e do comportamento dos intelectuais estava dado. A cultura começa a se perceber como arma poderosa. O “teatro de agitação” ou “ comícios dramáticos” expandem-se para as ruas, sindicatos, ligas camponesas, intensificando a relação entre a Universidade e a produção cultural.

As UNES volantes, com apoio governamental, de políticos, sindicatos e empresas privadas, levavam artistas para quase todas as capitais e grandes cidades do Brasil. Os hits do momento foram Brasil- versão Brasileira (1962) esquete musical satírico contra o imperialismo; Quatro Quadras de Terra” (1963) e “ Os Azeredo x os Benevides” (1963) sobre os latifúndios no nordeste.

Com o apoio do Serviço Nacional de Teatro (SNT), é construído o teatro do CPC no edifício da UNE que operou até o fatídico 10 abril 64, quando o prédio da UNE foi incendiado.

Comecei este panorama pelo teatro porque o teatro foi, sobretudo, um elemento catalizador e a grande referência do padrão da produção cultural engajada e dos debates daquele momento.

Nas demais áreas, a questão que coloquei inicialmente, a tensão entre o experimentalismo de abertura internacional e o engajamento pedagógico de acento nacional-populista, foi bem mais explícita e complexa.

Na literatura, as vanguardas experimentalistas, sobre tudo o Concretismo, a Poesia Práxis e o Poema Processo,  expressavam as contradições desenvolvimentistas do período JK. Supostos adversários do engajamento cepecista, as vanguardas apresentavam vários pontos em comum. Entre eles,  a fé no poder transformador da palavra poética e a integração aos debates políticos do momento.

Décio Pignatari, ainda em 1959, escreve no prefácio a Fluxograma de Jorge Medauar:

Um operário que trabalha uma peça ao torno não escreve nela o seu nome ou a sua revolta. Sabe que só poderá acabar com as injustiças sociais através de ideias e ações claras e conjugadas.

As vanguardas, portanto,  pediam um discurso político racional e qualificado para enfrentar o horizonte técnico da sociedade industrial . O ponto dissonante das vanguardas em relação à emergência de uma cultura mais pedagógica era em relação à guerra aberta que declarava frente à “ alienação metafórica” da linguagem didático-política.

Em 1961, o Concretismo dá o que foi chamado de “ o salto da onça” ou o salto participante em direção à intervenção mais direta no cenário político. Cria o Suplemento Dominical do Jornal do Brasil (SDJB), a página Invenção do Correio Paulistano e o Suplemento Literário do Estado de São Paulo, que foram os grandes espaços de inovação do debate cultural dos anos 60.

A força das vanguardas nos anos 60, especialmente o Concretismo, tornou-se hegemônica no panorama literário do início dos anos 60. As outras manifestações literárias eram de caráter mais individual e não chegavam a caracterizar, de fato, um movimento literário.

Sobre isso, é interessante lembrar a trajetória de Ferreira Gullar, poeta concreto que torna-se figura chave do CPC do Rio de Janeiro. Gullar, comprometido com o rigor formal concretista procurou, de forma sofrida e insistente, trabalhar uma linguagem diretamente participante. Gullar conta em entrevista que resolveu esse impasse de forma casual. A pedido de Vianinha, Gullar estava trabalhando um texto para uma peça sobre reforma agrária que seria levada em turnê pela UNE volante. Foi quando descobriu as possibilidades de um trabalho de qualidade com o formato cordel e daí nasceu seu belíssimo poema,

“ João Boa Morte”, ao qual se seguiria uma obra notável onde o rigor formal informa de maneira brilhante a participação literária engajada. Outros poetas como Moacyr Felix, Paulo Mendes Campos e Geir Campos começam, nesse momento, também a fazer poemas participantes que, mais tarde, foram reunidos nos 3 volumes de Violão de Rua, editados pelo CPC.

Da mesma forma, o cinema também foi mobilizado pela demanda de engajamento. E o Cinema Novo nasce, como a literatura,  marcado sob a égide do debate entre a invenção formal e o engajamento político.

Em sua primeira fase, a palavra de ordem do Cinema Novo foi debelar a alienação através dos temas de seus filmes que tratavam das   questões nacionais, do proletariado, dos camponeses sem aderir ao que seria a linguagem didática do nacional-populismo. Foram realizados assim 5 X Favela , filme documentário em 5 episódios de Leon Hirschman, Cacá Diegues, Joaquim Pedro, Miguel Borges e Marcos Farias (1961), Barravento de Glauber Rocha (1962), Rio Zona Norte de Nelson Pereira dos Santos (1962), Vidas Secas, também de Nelson Pereira dos Santos (1963), Ganga Zumba de Cacá Diegues (1963), Deus e o Diabo na terra do Sol de Glauber Rocha (1964) Os Fuzis de Ruy Guerra (1964).

A Música também apresenta suas peculiaridades e talvez tenha sido mesmo a área mais resistente em absorver o que seria uma música didático-populista. É ilustrador observar a literatura da área sobre isso.

Até mesmo o crítico José Ramos Tinhorão, que passou à história como o grande defensor de um nacionalismo ferrenho e grande patrulhador da criação musical do período, ao longo de sua obra, na qual repudia severamente as influências internacionais nocivas na nossa música popular, como os ecos do rock and roll norte americano, e mesmo o impacto do jazz na releitura do samba de  Bossa Nova, não consegue identificar linhas de força “puramente nacionalistas e engajadas” no panorama da musica brasileira pré-64.

A Bossa Nova terminou sendo, de fato e de direto, a grande revolução musical naquele início dos anos 60.

Não posso deixar de interromper um pouco este relato para ler um trecho de Tinhorão sobre a BN. Diz ele:

E foi assim que, por volta de 1956, um grupo de jovens filhos de família de boa situação financeira começou a reunir-se no elegante apartamento da Srta. Nara Leão, na Av. Atlântica, fronteira ao mar de Copacabana, para realizar como amadores, aquilo que os músicos de boite já faziam há um tempo para ganhar a vida, imitando os americanos: os samba sessions. Estavam tais jovens, de nível universitário, nessa preocupação de encontrar uma saída para o samba que acusavam de quadrado e estagnado por só “saber falar de morro e barracão” quando surgiu na boite Plaza, um estranho violonista que balançava o ritmo com uma combinaçãoo de acordes compactos. Esse violonista, era um baiano de Juazeiro chamado João Gilberto e em pouco tempo estava criada a moda-símbolo da juventude classe média: o samba de bossa nova. A música estava assim dividida em duas grandes tendências: a tradicional, do povo, e a BN, das camadas de classe média que refletia as tentativas de industrialização do país com tecnologia importada.

Mesmo acreditando nos prognósticos sombrios de Tinhorão,  algumas tímidas aproximações entre a música do povo e a de classe média foram tentadas naquele momento. Carlinhos Lira, que já em 57 havia criado “ Criticando” , uma antecipação de seu samba “a influência do jazz” de 1961, engaja-se no CPC e preocupa-se com a recuperação da música nacional-tradicional. Em 1961, faz com Geraldo Vandré a trilha sonora do filme de Joaquim Pedro Couro de Gato, (episódio de 5 X Favela, produção do CPC) lançando uma requintada composição de BN onde explicitava sua  dissonância com as imagens cruas do filme. A letra dizia: “Quem quiser encontra o amor/ vai ter que sofrer / vai ter que chorar…. ”

Ainda em 61, Carlos Lyra começa a fazer encontros em sua casa com antigos compositores populares como Cartola, Nelson Cavaquinho, Zé Keti, mas a iniciativa mostrou-se decepcionante. Desse encontro, só iria vingar uma parceria, com Zé Keti, o “Samba da Ilegalidade”  de 1962.

A idéia de esboçar esse rápido panorama da produção cultural pré-64 foi a de checar possíveis novidades na cultura e no comportamento do jovem brasileiro no período imediatamente anterior ao golpe. Mesmo reconhecendo diferenças de grau e de orientação, torna-se claro o início de uma profunda movimentação com traços próprios no projeto cultural e criador desta geração.

Entre eles, seleciono três que me parecem modelar e mesmo colocar em questão algumas formas de comportamento político e intelectual consideradas como padrões culturais brasileiros até então.

Em primeiro lugar, a consolidação da legitimidade de sujeitos políticos não tradicionais.

Em segundo, a conexão direta estabelecida entre intelectuais de classe média e as camadas populares, coisa ainda não testada, mesmo durante o Estado Novo, quando os intelectuais e artistas tiveram grande atuação e influência, mas terminaram dependentes da máquina estatal à qual, ao que tudo indica, se opunham.

E em terceiro lugar, a progressiva e mesmo relativamente abrupta conscientização destes intelectuais em relação às questões nacionais e seu compromisso com a solução destas questões. Em todas as áreas,  o sentido da participação e da responsabilidade intelectual diante chamada “realidade brasileira”  definiram o perfil de generosidade da atuação cultural daquela hora.

Estes traços, por sorte, foram utilíssimos, e deram um razoável preparo físico para que nossos intelectuais e artistas enfrentassem,  com inesperada agilidade, as desavenças provocadas pelo golpe militar que viriam imediatamente a seguir.

Não vou repetir aqui, mais uma vez, que o golpe de 64,  além de ter surpreendido estudantes e artistas,  desarmou, de uma feita, os projetos e estratégias de transformação social pela via do confronto entre as classes; que a UNE perdeu seu apoio e tornou-se semi-clandestina; que a censura começou a atuar de forma agressiva  e todas as demais consequências que tão bem conhecemos desde aquele histórico dia Primeiro de Abril.

Vou chamar aqui apenas atenção para os subprodutos da mobilização  política cultural gerada na primeira metade da década e para algumas particularidades interessantes das reivindicações políticas do pós-golpe. Começo por essas últimas.

No panorama dos movimentos e rebeliões internacionais, o que surgia como novidade era a defesa dos direitos das minorias, especialmente dos direitos dos negros e das mulheres. No quadro brasileiro, estas reivindicações focaram as desigualdades sociais e, de certa forma, bloquearam as demandas raciais e feministas.

Quanto ao movimento negro, estopim das rebeliões norte americanas durante a década, houve um recuo estratégico que subapreciou as demandas negras  classificando-as apenas como uma questão social e econômica. Um recuo que decididamente dificultou, de maneira nada desprezível,  a rearticulação de base do movimento e das manifestações e demandas anti-racistas no Brasil.

No caso da mulheres, a operação foi ainda mais desviante. Como os setores progressistas da Igreja apoiavam as lutas pelos direitos humanos lato sensu e os e movimentos de resistência ao golpe militar, as demandas das mulheres, de caráter mais pessoal, como o aborto, o divórcio ou mesmo a liberação sexual feminina e o direito de arbítrio sobre o próprio corpo   foram silenciadas e reformatadas em termos de demandas coletivas e sociais. Isto deu um perfil interessantíssimo e persistente ao nosso movimento feminista, tema do qual fugirei agora.

Vamos direto aos fatos. Em artigo já clássico sobre o período, Roberto Schwarz apontou com justeza a situação anacrônica da produção cultural pós 64. Na área da cultura propriamente dita, a repressão, nos momentos iniciais do regime militar,  focou diretamente a desarticulação das conexões promissoras já estabelecidas entre os produtores culturais e as lideranças sindicais e camponesas. Em princípio, a partir dessa ação repressiva, o projeto cultural forjado no início da década e totalmente baseado nestas articulações, estaria condenado. Entretanto, de forma curiosa, aqueles intelectuais e artistas, não formalmente comprometidos com estas bases políticas, não sofreram qualquer tipo de restrição.

Resultado: apenas alguns messes depois do golpe, alguns membros do CPC como Vianinha, Gullar, Tereza Aragão, Armando Costa e João das Neves, haviam criado um  grupo chamado Opinião e começam a montar  um show que iria colocar em cena, Zé Keti, João do Valle e   Nara Leão, respectivamente o samba do marginal suburbano, as incelenças e o desafio do imigrante nordestino e  a bossa nova da classe média urbana. Nesse empreendimento, juntaram-se ao teatro, a música de protesto que ia de Caracará e até Guantanamera e a poesia de Ferreira Gullar e João Cabral.

Pouco depois, em dezembro de 64, no Rio de Janeiro, uma multidão de jovens assistia, hipnotizada, a um espetáculo ou melhor, a um “show dramático musical”, o Opinião. Em cena, as contradições entre o projeto político formulado pela classe média para o povo. Na plateia uma multidão de jovens, portando figurinos fashion da época como casacos militares à la Che Guevara ou as saudosas camisas azuis da marinha brasileira, sintonizados em linha direta com o palco, cantava em coro, um repertório de protesto e resistência. O refrão insistia:

“ Podem me prender / podem me bater /  mas eu não mudo de opinião” Além de “Opinião”, a música “Marcha da Quarta Feira de Cinzas”, de Vinícius de Moraes, ganhava novo sentido transformando-se numa grande alegoria do pós-golpe e era facilmente traduzida e codificada numa novíssima e eficaz aliança entre público e plateia. Estava desenhada a tática para os próximos 4 anos, que até hoje são conhecidos como os anos de ouro da cultura brasileira.  Se não era mais possível o contato com o “ povo”, que a classe média resistisse em massa e, sobretudo, não mudasse de opinião.

Opinião tornou-se de certa forma uma palavra-chave no período 64-68. Não deve ser por coincidência que, logo depois do show Opinião, em 1965, os artistas plásticos se reuniram e fizeram nas ruas a exposição Opinião 65, e no ano seguinte a Opinião 66 com temas e estratégias explicitamente políticas. Nem que Arnaldo Jabor tenha ido de câmera em punho para as ruas fazer seu primeiro longa metragem, o documentário Opinião Pública.

Não vou me estender por estes 4 anos incrivelmente criativos e produtivos mas quero apenas observar que uma nova massa política foi formada nesse período. Palco e plateia, artista e espectador, escritor e leitor estabeleceram de tal forma uma fina sintonia e o ajuste de interesses comuns que, em 1968,  a cultura e os estudantes experimentavam, pela primeira vez na História, o papel de protagonistas políticos.

O momento alto dessa trajetória foi a radicalização deste embate e  a consciência de sua crise expressa pelo Tropicalismo. No cinema, Terra em Transe de Glauber Rocha, O Desafio de Paulo Cesar Sarraceni, O Bravo Guerreiro de Gustavo Dahl e Fome de Amor de Nelson Pereira dos Santos traduzem o impasse que experimentava o intelectual de esquerda. “A poesia e a política são demais para um homem só”, revelava   Sarah  a Paulo Martins, protagonista de Terra em Transe .

No teatro, José Celso, propõe uma arte de interpelação e agressão com Rei da Vela. Nas artes plásticas, a instalação  Tropicália, de Helio Oiticica, visualiza um Brasil bem mais complexo do que o imaginado no período pré 64.

Na música, após um longo exercício através dos Festivais da Canção que foram, no fundo, o grande registro ou mesmo o desenho de um debate político importantíssimo em curso, o Tropicalismo de  Caetano Veloso, com  Tropicália e de  Gilberto Gil, com Soy Loco por Ti América, confirmam , definitivamente, o fim da visão linear nacional-populista. A década se despede em seu momento mais alto.

Em Quarup, de Antonio Callado, a luta armada mostra-se como saída possível. Algumas escolhas começam a se esboçar para uma juventude emparedada: É o que Glauber chamou de a “luta entre o rock e a granada”. Dilema bastante aparentado com aquele da opção entre o desbunde e a luta armada, a guerrilha.

As escolhas, bem como os caminhos, tornam-se mais individuais. Gilberto Gil ensina: “Meu caminho pelo mundo eu mesmo traço”. O AI-5 fecha o pano, promovendo a diáspora do sonho de milhares de jovens, artistas e intelectuais.

Em 31 de março de 2004, 40 anos depois do golpe, o poeta Alex Polari, num seminário na Universidade federal do Rio de Janeiro, relê, saudosa e sem sinais de arrependimento o poema intitulado “A nova tática e o velho instinto”, escrito no cárcere em 1972 e publicado em 1979 no livro Inventário de Cicatrizes, pelo Comitê da Anistia. Diz o poema:

Juro
não tem auto-crítica
que me tire
as saudades
de uns tiros

[Artigo publicado originalmente em março de 2004 e reproduzido aqui ipsis litteris]

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Colônia Penal Brasiliensis

Desligaram as máquinas

O que restou, jogaram no fosso

Dos ossos fizeram pentes

Dos corpos piruetas

Dos cabelos perucas

Dos pentelhos palitos

Da pele roupas

E da voz agoniada e rouca

Eles foram costurando cada grito e cada boca

Um por um deles foram juntando eco por eco de desespero

Caco por caco de amargura

E assim eles inventaram esse silêncio.

[Alex Polari, em Camarim de Prisioneiro]

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Seção de vídeo

“A única saída é a imaginação”

Heloisa Buarque de Hollanda é escritora, professora de teoria crítica da cultura da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e curadora do Portal Literal. É autora de livros como Pós-Modernismo e Política (1992) e O Feminismo como Crítica da Cultura (1994).

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Poema de Saída Breve

Viver, Porra!!!

[Alex Polari, em Camarim de Prisioneiro]