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Onde encontrar a memória da cidade?

Uma conversa sobre os modos de representar e recordar as vivências urbanas a partir do debate entre as artistas We’e’na Tikuna e Claudia Jaguaribe

Publicado em 05/09/2018

Atualizado às 18:14 de 05/09/2018

Por Duanne Oliveira Ribeiro

Descrevendo Zaíra, uma das tantas paradas de As Cidades Invisíveis, Italo Calvino afirma que “a cidade se embebe como uma esponja dessa onda que reflui das recordações e se dilata” – o passado encharca a matéria. Acrescenta o escritor italiano: “A cidade não conta o seu passado, ela o contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimões das escadas, nas antenas dos para-raios, nos mastros das bandeiras”. Assim, as lembranças, na urbe, recuam a um estado potencial – tornam-se veladas. Onde podemos buscá-las, redescobri-las?

Essa pergunta que Calvino nos inspira, podemos tentar respondê-la a partir do Brechas Urbanas de agosto. Realizado pelo Itaú Cultural, o ciclo de debates sobre a vida urbana tratou neste mês da memória estética das cidades. Estiveram na mesa, mediadas pela jornalista Natália Garcia, as artistas visuais Claudia Jaguaribe e We’e’na Tikuna. Claudia multiplica os modos de lembrar da cidade: captura movimentos e pontos de vista, revolve as maneiras usuais de apresentar as reminiscências. Tikuna, enraizada nas tradições da sua nação indígena, implica que é preciso procurar a memória nos próprios corpos.

Movimento e matéria

Entre Morros (2010), apresentado por Claudia no debate, traz os aspectos que notamos. Uma das fotografias desse ensaio – a que registra a ocupação do Morro Dois Irmãos – é um exemplo do quanto a arte pode preservar instantes da cidade. Na imagem, as matas estão comprimidas por duas povoações, uma de cada lado; com a ampliação crescente, ambas estão a ponto de fechar o contorno. Sente-se no estático da foto um movimento: o processo de crescimento urbano está guardado, vivo, no registro.

Não só por registrar modos pelos quais a cidade pode ser percebida, mas porque explora meios pouco usuais de exibir esse tipo de imagem, EntreVistas (2011) é outro exemplo útil para a nossa pauta. Exposto no Itaú Cultural, o ensaio não é exibido só em quadros, mas em estruturas tridimensionais. No debate, a artista lembrou que é com a fotografia que se inicia a “virtualização” que hoje marca todas as áreas das nossas vidas; com essas obras que retornam a algo material, há uma resistência a essa generalização do virtual.

É uma problemática fértil: tratou do tema, por exemplo, o filósofo Rafael Capurro, que fala de um mundo marcado por uma ontologia digital, em que só aquilo que é ou pode ser digitalizado existe de fato. No que se refere à memória das cidades, poderíamos nos questionar sobre quanto das nossas experiências é delimitado pelos limites dos nossos aplicativos. Os espaços da cidade podem ser contidos na sucessão de fotos da timeline?

Empreendimento da memória

Talvez as palavras de Calvino que abrem este texto possam não só descrever as cidades, mas também pessoas – todos nós somos embebidos como esponjas da onda que reflui das recordações e se dilata. No caso de We’e’na, esse fluxo é o da tradição do seu povo. Os indígenas brasileiros hoje lutam para resguardar seus saberes e seus modos de viver, sem deixar de aprender com outras culturas, como a dos “brancos”. We’e’na exibiu isso em si mesma: pinturas na pele, vestes com padrões Tikuna e salto alto. Ela dizia o que também reforça Daniel Munduruku: os indígenas não estão “exilados na própria cultura”.

A artista explicou como cada forma geométrica das suas pinturas expressa um símbolo codificado na cultura Tikuna. Se, em um primeiro momento, entramos em contato com essas obras pela via do exotismo, podemos aceitar o convite de We’e’na e passar a ver a sua complexidade. São trabalhos que carregam em si uma memória, ou que se ligam ao empreendimento cotidiano, realizado por um povo, de manter essa memória.

O que significa a presença na cidade desse saber enraizado na aldeia? O que ela traz de novo ou irredutível? Não impõe à cidade relembrar as vivências que a “civilização” pode sufocar, estigmatizar, segregar? Se o discurso sobre o passado ou a percepção do atual parece única, essa ilusão é diluída pela escuta das vivências que resistem à hegemonia. Líquida, então, a cidade outra vez: transbordante não só de pretérito como de futuros.

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