TEXTO CURATORIAL

Sustentar-se no sonho

 

Exu, segundo a tradição, abre os caminhos; abre também este texto sobre Abdias Nascimento, dramaturgo, escritor, artista visual e ativista que é o homenageado da 32ª edição do Ocupação, programa dedicado a discutir artistas que mudaram os rumos da sua área de expressão. Abdias fala ao orixá em uma poesia-prece: ao “senhor dos caminhos da libertação” do povo negro, ele pede que lhe restitua a língua que lhe  foi roubada, que exorcize a domesticação do gesto. Avisa: em cada coração de negro há um quilombo pulsando; cada barraco, outro Palmares crepita.

 

Esses versos delineiam toda a atividade de Abdias, seja na arte, seja na política. A sua vida – ele nasceu em 1914 e morreu em 2011 – foi atravessada por uma luta contra o racismo. Combateu em várias frentes para valorizar a cultura africana e recuperar a autoestima do negro, assim como desmentir a ideia de que, no Brasil, vivia-se em uma “democracia racial”. Articulou grupos de pressão política, ações educativas, espaços de debate intelectual; produziu poemas, telas, peças, livros.

 

É tão surpreendente a extensão das suas atividades quanto o fato que, em tantas delas, precisava ser pioneiro. “Quem já não sentiu”, pergunta ele, “a atmosfera de solidão e pessimismo que rodeia o gesto inaugural, quando se tem a sustentá-lo unicamente o poder de um sonho?". Abdias soube resistir a essas debilidades de todos os princípios e criar coisas novas, “axés de sangue e de esperança”.

 

Aqui, procuramos dar a conhecer as várias facetas desse trabalho. A sua trajetória política e artística é apresentada a partir dos arquivos do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro), de artigos sobre os núcleos da sua obra e de um ensaio fotográfico inspirado em um dos seus projetos.

Além disso, preparamos uma publicação em que alguns textos falam do Abdias inteiro e de sua relevância para os dias de hoje. Quanto a isso, é possível dizer que as temáticas que ele pôs em evidência continuam, infelizmente, atuais. Para discutir o que mudou e o que persiste nesse cenário, convidamos ativistas e grupos políticos que prosseguem o embate pela igualdade no Brasil contemporâneo a nos contar a sua experiência.

 

Os debates sobre o legado de Abdias têm ainda um espaço no site do Ocupação –itaucultural.org.br/ocupação –, que reúne artigos sobre como ele compreendia a diáspora (a saída forçada do povo negro do continente africano) e as comunidades quilombolas do Brasil contemporâneo. Além disso, entrevistas com artistas e ativistas que foram marcados pelo trabalho do homenageado.

 

Em “Padê de Exu Libertador”, o poema a que nos referimos acima, Abdias lembra os nomes “daqueles que empunharam teus ferros em brasa contra a injustiça e a opressão”: um abolicionista, Luís Gama; os comandantes de revolta Luísa Mahin, Cosme Bento das Chagas e João Cândido; alguns quilombolas sagrados, como Isidoro e Zumbi. É entre essas figuras – indomáveis, desabusadas – que quer estar.

 

 

 “Cresça-me à tua linhagem”, reclama a Exu. Isso lhe foi concedido.

 

 

 

Itaú Cultural