ABDIAS POR TULIO CUSTÓDIO

Dilemas de uma intelectualidade afro-brasileira:

caso Abdias Nascimento

 

O confronto de Abdias contra a invisibilidade dos artistas, militantes e pensadores negros é uma luta que continua ainda hoje

 

Em 1903, o sociólogo e historiador afro-americano W. E. B. Du Bois definiu, de maneira inspiradora, dois aspectos que guiariam a questão racial nos anos subsequentes: a existência de uma dupla consciência na vida dos negros e a necessidade do "treinamento" de líderes e pessoas que trabalhassem em prol do desenvolvimento do povo negro. Esses elementos diagnosticados na madrugada do século XX permitem tratar de um dos dilemas mais difíceis enfrentados por intelectuais negros: sua invisibilidade.

 

O intelectual negro sofre constantemente o desafio de superar a dupla consciência – que é o resultado de dois olhares operando na vida de um negro: o olhar externo, dirigido ao negro pelo branco, e o olhar do negro a si próprio, determinado pelo anterior. O olhar externo se impõe à sua forma de se ver e se representar no mundo. Além dessa barreira, de esfera mais íntima, precisa também se engajar em uma luta simbólica pelo direito de falar de si por si e, ao se expressar e produzir reflexões sobre a sua condição, ter legitimidade para tal. Uma batalha constante para terem suas vozes ouvidas, seja em ambientes formais, como a academia (na qual são tão poucos os expoentes), seja em atividades de militância (portanto, políticas), seja na cultura, no ramo das artes, da literatura ou do teatro. Dois desafios, um da ordem de representação de si, outro da representação sobre si. A mente que vê e o ser que fala por si no mundo.

 

Vejamos como isso se dá no caso de um dos maiores pensadores e ativistas negros brasileiros, Abdias Nascimento.

 

Abdias foi, sem dúvida, grande. Grande pelo tempo de atuação, que começa no final dos anos 1930, em um flerte com a Frente Negra Brasileira, e vai até o início da segunda década do século XXI, quando, mesmo cansado pela idade (97 anos), frequentava eventos e palestrava para gerações mais novas. Grande pelo leque de atuações: economista de formação, foi teatrólogo, diretor, ativista, professor universitário, político (deputado e senador), artista plástico. Grande.

 

Abdias atravessou o século XX e protagonizou as expressões mais importantes da presença política e cultural negra, como a já citada Frente Negra Brasileira, o Teatro Experimental do Negro (TEN, que fundou em 1944) e o Movimento Negro Unificado, nos anos 1970. Além disso, teve também sua passagem (e que passagem!) pelos Estados Unidos, período em que se exilou e foi exilado (sim, isso aconteceu com ele!). O exílio significou para ele, no auge de seus 54 anos, uma mudança complementar de carreira e atividades, pois começa a atuar como professor e artista visual naquele país, além de ter tido a oportunidade de frequentar diversos congressos internacionais, levando sempre o tema do racismo brasileiro por todos os cantos pelos quais passava. Abdias foi grande. Mas não escapou do dilema da invisibilidade.

 

Ele foi uma das pessoas que introduziram, nos anos 1940, a discussão e a crítica contra o blackface, discussão tão viva e centro do debate em 2015, quando uma companhia de teatro se utilizaria do recurso (que consiste em pintar de preto o rosto de um ator branco, com intenção de que o mesmo represente um personagem negro), mas foi questionada por diversos militantes negros. A pergunta que uma das pessoas mais ativas nesse protesto, Stephanie Ribeiro, fez – "Por que não um ator negro para representar o papel? Por que a escolha de um padrão historicamente datado e marcado pelo racismo e agressão à representação do povo negro?" – é a mesma feita por Abdias em 1941, quando passava por Lima, no Peru, e assistiu à peça Imperador Jones, de Eugene O'Neill, experiência que, de grande maneira, inspirou a criação do TEN.

 

 

Em 1950, no Congresso do Negro Brasileiro, os artistas e pensadores negros do TEN tiveram o seu lugar de fala e pensamento questionados pelos chamados "intelectuais e estudiosos da academia" (ligados aos estudos culturalistas sobre questão racial no Brasil), segundo os quais os membros do TEN – como Guerreiro Ramos, Aguinaldo de Oliveira Camargo e Sebastião Rodrigues Alves – não tinham legitimidade para falar da questão racial enquanto intelectuais, apenas como "ativistas". Questionamento não muito diferente daquele que, hoje, as feministas negras sofrem quando publicam seus textos reflexivos e analíticos acerca da intersecção opressora entre raça e gênero. Ou ainda quando o rico e vastíssimo acervo produzido pela produção pictórica e poética de Abdias – seus quadros, poesias e peças teatrais – não é exibido, não é explicitado como um grande legado.

 

O que Abdias enfrentou – e isso tem reflexos diretos nos problemas que os jovens ativistas enfrentam no contexto atual – é a constante invisibilidade do intelectual negro como legítimo produtor de conhecimento e reflexão, seja sobre sua vivência, seja sobre outros assuntos que o interessem; e a negação da importância que sua produção e seu legado podem ter para outras gerações.

 

Como confrontou Abdias a questão da dupla consciência? Incorporando de modo enérgico e amplo em seu pensamento as culturas negras brasileiras como parte de um legado mais amplo, de origem africana, frente à diáspora forçada pelo escravismo colonial. A visão deturpada do negro sobre si se dava por um processo sistemático de embranquecimento físico (por meio do genocídio, da eliminação e da ideologia da democracia racial) e cultural (ao negar a conexão da cultura negra brasileira com a África e ao não reconhecer a importância do legado africano como potência inteira e não como “um pedaço de cultura”).

 

Abdias enfrentou, com muito afinco e perseverança, a invisibilidade do intelectual negro ao propor ações e congressos no TEN, ao levar sua reflexão e seus escritos para diversos congressos internacionais entre os anos 1960 e 1980 – incluindo uma passagem de um ano na Nigéria, pela Universidade de Ile-Ife. Essa abordagem identitária e contrária aos processos encampados pelo racismo à brasileira – expressão que Abdias preferia mencionar como “genocídio do negro brasileiro” – é importante e rica, e não pode ser subestimada.

 

As novas gerações precisam conhecer o produto das lutas das gerações anteriores, de modo a formar novos quadros de referência, criar a partir do realizado, superá-lo, ir além. O racismo brasileiro, nas suas especificidades e na eficácia mortífera simbólica, executa – como Abdias já apontava nos anos 1960 – com perfeição o embranquecimento epistemológico da população brasileira. Isso significa não evidenciar pensadores negros. Isso significa não retomar sua produção e ressaltar seu legado. Isso significa ignorar toda a potência de impacto que a presença e a memória de líderes e intelectuais negros possuem no sentido de confrontar o racismo que acomete o povo negro brasileiro historicamente. E, infelizmente, muito do legado de Abdias está sob esse silenciamento.

 

Abdias é o exemplo da intelectualidade negra brasileira, e o esforço do Itaú Cultural em resgatar e organizar uma exposição em seu nome é uma forte contribuição para acender a importância de seu legado intelectual, político e artístico para o povo brasileiro. Sim, porque a pior perda que advêm da invisibilidade dos intelectuais negros é a de um legado para todo o povo de riqueza cultural, intelectual, artística. A perda de vozes que nos ensinaram ontem, dão base ao hoje e nos ajudam a lutar pelo amanhã. Resgatar essa riqueza é superar o dilema.

 

Tulio Custódio

 

[Sociólogo, curador de conhecimento na Inesplorato, e fundador do site Pitacodemia]

[Este texto faz parte da publicação produzida pelo Itaú Cultural especialmente para a Ocupação Abdias Nascimento]