Meu caro Herbert,

 

Hoje, que sou mais velho do que você era quando nos conhecemos (lembro-me perfeitamente quando minha turma, a única formada por arquitetos e não de alunos de arte da FAAP, comemorou os seus 50 anos), tão careca quanto você, embora menos vermelho e suarento, posso lhe dar uma ideia do impacto de seus ensinamentos em minha vida,  de como, desde que nossos caminhos se cruzaram em algum momento de 1976, você passou a me acompanhar cotidianamente, incorporado ao meu modo de agir, na vida, nas salas de aula, no modo como concebo minhas exposições. Escrevo para que você tenha uma prova documental, menos impalpável do que meus frequentes pensamentos sobre você, um relato de como absorvi o muito que você e sua adorável Maria, sempre silenciosa e sorridente, ofereceu a mim e aos meus amigos, Ivanise, Beba, Beia, Evaristo, Fábio, Laura, Monica, Lúcia, Patrícia, Jairo, Guile, Igré, Rone, Carlão, Edu, Bolliger, outros mais, um vinho precioso que nós, intrinsecamente curiosos, sorvíamos sofregamente na nossa missa noturna dominical.

 

Era ainda o tempo da ditadura e naqueles anos quase todos nós atuávamos no movimento estudantil, defendíamos emocionados nossas convicções em defesa de uma sociedade mais justa, e também por conta do risco que afinal, corríamos. E, que pese as muitas limitações da nossa incipiente formação, já tínhamos consciência de que a vida, não só a vida política, alimentava-se do tipo de liberdade praticada pelos artistas e que a famosa frase de Maiakovsky, “não há conteúdo revolucionário sem forma revolucionária”, era uma dessas certezas inabaláveis. Mas tudo isso era uma forte abstração, um sentimento difuso, sem outro objeto que não alguma música pop, nacional e internacional, livros de Borges, Cortazar e Garcia Marques, um e outro filme mais descolado que passava no Bijou e na Majestic, uma e outra ida à Bienal, de onde saíamos fascinados e confusos.

 

Foi você quem nos deu a informação tangível, objetiva, mais extraordinária do que imaginávamos. Assistíamos hipnotizados, com a atenção colada nos seus comentários emitidos com forte e rascante sotaque alemão, dois ou três filmes, enriquecidos com as mais arrojadas peças musicais, surpreendentes para os nossos ouvidos, tão jovens mas já estofados de música tonal.

 

Os grandes museus modernos e contemporâneos com suas pinturas, esculturas, instalações e seu público, a arquitetura de Aalto, Corbusier, Piano, um ballet de Alwin Nikolais filma sorrateiramente, uma exposição de Dubuffet, a casa de Dali, visitada graças ao suborno de um guarda, o interior de uma pirâmide egípcia, uma viagem no Concorde, tudo isso e muito mais nos foi dado e animadamente discutido em seguida, sempre ao sabor de uma indefectível cidra e de uns salgadinhos meio sem gosto e farinhentos, que nós, acostumados com coxinhas e croquetes, julgávamos que deviam ser comuns e apreciados em sua Alemanha natal ou na Inglaterra, de onde em 1940 você se mandou para o Brasil.

 

Nosso repertório foi imensamente aumentado pois éramos umas verdadeiras esponjas. Na qualidade de coordenador informal do grupo, beneficiei-me de visitas fora dos domingos, como o dia em que, orgulhoso fui levar meu trabalho de conclusão do curso em homenagem à você.

 

Mas entre todas as lições que recebi em sua casa a mais importante não tem a ver propriamente com lição ou arte, ainda que tudo isso tenha sido decisivo para o caminho que segui. De todas suas lições a maior delas foi seu amor por nós, o seu e de Maria, o inexcedível e entusiasmado carinho com que vocês nos tratavam, como se fossemos o sal da terra, fora do comum, como se estivéssemos destinados a grandes feitos.

 

Meu querido Herbert, sempre tentei e sigo tentando retribuir a generosidade com que vocês dois abriram sua casa, seus corações e, junto com eles, os filmes, as danças, os livros e discos que vocês apresentavam como sendo a quintessência do espírito humano, a razão de ser de suas vidas e que vocês queriam que se convertessem na razão de ser das nossas. Dizia Hannah Arendt que os antigos consideravam os amigos indispensáveis à vida, que uma vida sem amigos não era realmente digna de ser vivida. Porém não davam muito valor ao feito de se procurar um amigo quando se está com problema, mas sim quando se o busca partilhar a alegria. Você, meu Herbert, é a água límpida da amizade. Do seu

 

Agnaldo Farias

Fev/2016

 

 

[Agnaldo Farias conheceu o professor Herbert Duschenes em 1976 e, nos três anos seguintes, foi frequentador assíduo da residência do casal. Hoje, é professor-doutor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP), crítico de arte e curador. Realizou trabalhos para instituições como o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM/RJ), o Itaú Cultural e a Fundação Bienal de São Paulo.]

 

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