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Histórias contadas pelo cronista moral do sertão

Além de escultor, Véio é um colecionador e contador de causos e lendas sobre o homem do sertão que tecem a sua própria biografia. Aqui algumas delas, extraídas de entrevistas que ele cedeu aos curadores e à equipe do Itaú Cultural para a publicação da mostra

 

 

 

 

De histórias que eternizam o modo de viver do homem sertanejo, desde o começo do século, até acontecimentos históricos da cidade de Nossa Senhora da Glória (SE) e região, sem deixar de lembrar os causos e as lendas. Véio conta e reconta tudo isso e, por meio de toda essa narrativa, alimenta o seu próprio processo criativo.

 

Aqui você encontra um resumo desse universo nas palavras de Véio. Histórias dele, de outros, por ele e para ele. Histórias que, segundo o artista, precisam ser contadas.

 

[Um menino velho]

Quando eu tinha 5 anos, mais ou menos, os idosos se reuniam pra conversar e contar causos. Eu ficava ali quieto, olhando e escutando. Não era permitido criança ouvir conversa dos mais velhos. Só que eu tinha uns protetores, que sempre diziam: “Deixa ele aqui! Ele não interrompe ninguém!”. Ali eu ficava. Meus colegas pequenos sempre diziam que, por causa disso, eu parecia um velho. Com 5 anos, eu já era velho. Segui essa tradição de ser velho.

 

Como esses antigos saíram de circulação e não preservaram a história nem os seus pertences, eu me vi na obrigação, pelo nome que me deram, de preservar as coisas que eles tinham e usaram. Tudo o que guardei fala da história, da vida, da linguagem, dos costumes e da tradição.

 

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[Um trauma]

Tenho um trauma. Na infância, quando comecei a fazer esculturas com cera de abelha, tinha que desmanchar urgente. O pessoal não entendia, não sabia o que era. Os meninos homens tinham que brincar de brincadeiras violentas, montar cavalo. Nunca montei em um cavalo. Só era trabalhador quem trabalhava na roça. Não tinha essa vocação. Não gostava de nada forçado, e isso fazia meus pais acharem que eu ia ser marginal. Até entendo eles, pessoas do século passado. Meus irmãos sempre quiseram me arrumar emprego e eu dizia não. Mas dizia também que eles nunca iriam pagar uma conta minha ou me ver comprando fiado. Meus irmãos iam pra festa e eu não ia, porque eles podiam ir, tinham o salário certo todo mês. Eu era aventureiro e sempre fiz minhas peças por prazer.

 

Daí vem a minha rebeldia com quem quer adquirir uma obra minha. É raro eu vender alguma coisa que fiz. Porque sempre pensei, ao desfazer o que eu fazia na infância, que um dia ia ter a minha coleção da forma que eu quisesse.

 

No Memorial de Sergipe, tem 4 mil peças minhas. No Museu da Gente Sergipana, tem 60 peças que contam as histórias das lendas e das tradições. Eles queriam comprar ou alugar. Disse que não vendia nem alugava. Apenas empresto. Quem me conhece tem o cuidado de nunca me perguntar quanto custa uma obra minha.

 

Levo esta vida assim, imaginando. Se eu estou certo ou errado, não sei. É uma coisa que me propus a fazer.

 

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[Arte não é brinquedo]

Uma vez chegou uma senhora aqui e disse que o garotinho dela achava a coisa mais bonita do mundo os carrinhos de boi que eu faço. Ela disse que queria comprar um e eu perguntei o que ela ia fazer com a peça. “É pra uma exposição? Vai ficar em uma vitrine?” “Não. É pro meu filho brincar.” “Pois eu vou dizer uma coisa pra senhora. A sua criança não tem condições de brincar com uma obra de arte, não. Isso é obra de arte, moça. Isso aqui não é brincadeira, não. Vá comprar na rua, de plástico ou de barro, mas uma obra dessa a senhora não pode comprar pra um menino brincar.”

 

Ela ainda me disse que tinha condições de pagar bem. Respondi que ela podia ter uma carrada de dinheiro, uma carreta cheia, mas não comprava uma peça minha. Ela pediu desculpas e foi embora. Ficou minha inimiga. O sujeito tem um trabalho desgramado pra um moleque brincar? Não existe isso.

 

Uma única vez dei uma obra minha pra uma criança. O molequinho chegou e ficou olhando a peça, que era um bonequinho com a língua pra fora. Por causa disso, ele chamava de “Calinga”. Tive dó dele, ele pediu o Calinga e eu dei.

 

Vinte e cinco anos depois, mais ou menos, lá em [Nossa Senhora da] Glória, vi um monte de coisas despejadas. Gosto de observar isso. Por que as pessoas usam as coisas e depois, quando elas estão velhinhas, jogam fora e desprezam? Tem muita coisa que não poderia ser jogada fora! Passei o pé e foi bem em cima dele! Apareceu o “Calingazinho”, com o chapeuzinho de couro que eu tinha botado. Apareceu aquela criaturinha e eu me emocionei tanto que ainda hoje me emociono. Ele me olhou como quem dissesse: “Olha o que você fez comigo!”. Peguei ele com o maior cuidado, trouxe de volta e hoje tenho essa pecinha guardada. Isso aqui não tem preço. Ele reclamou de mim. Eu ia passando ali naquela rua por acaso, nem era um lugar por onde eu costumava passar. Não entendi como isso aconteceu.

 

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[O palhaço]

Meu sonho era ser palhaço. Em 1954 se instalou o primeiro circo na praça de Nossa Senhora da Glória. Lá tinha o Palhaço Churupita. Não entendia muito como era o desenrolar das coisas, mas tinha o negócio de “gritar palhaço”. Não tinha som, era apenas o palhaço com perna de pau na rua e a criançada atrás dele.

 

Eles desenhavam um sinal no nosso braço pra dizer que podíamos entrar de graça no circo. Meu sonho era conseguir esse sinal. Minha avó me viu um dia no meio das crianças “gritando palhaço”. Acho que ela não gostava muito de mim, não, porque foi logo contar pra minha mãe. Quando vi a velhinha ali me olhando, já apaguei a letra riscada em mim, a que garantia a entrada de graça no circo. Porque sabia que não ia conseguir mais ir, ela não ia deixar.

 

Voltei pra casa correndo e fiquei lá brincando. Não demorou e a velha chegou. “Júlia, Véio está gritando palhaço!” Minha mãe disse que não era eu, que eu estava brincando em casa. “Oxente, pois eu vi um menino do mesmo jeitinho dele no meio do povo!” Não disse que minha avó estava mentindo, não, mas fiz questão de dizer pra minha mãe que não era eu.

 

Isso marcou muito a minha vida. Eu queria ver o palhaço. Eu queria ser o palhaço. Um palco pra mim ia ser tudo. Mas depois consegui ir ao circo. Foi uma coisa que me encantou demais. Não tive a oportunidade de ir pro picadeiro fazer minhas coisas, mas passei pra arte e faço nela minhas críticas e minhas alegrias.

 

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[O rádio chega ao sertão]

O primeiro rádio da região de Nossa Senhora da Glória foi comprado entre 1939 e 1940. Foi uma compra coletiva entre o município e os comerciantes da cidade. Ninguém sabia que diabo era um rádio. Compraram e botaram em praça pública. Toda tarde o povo ia ouvir Aracy de Almeida, Francisco Alves... E todo mundo ficava encantado!

 

Depois, por causa de problemas políticos, esse rádio passou da praça pública pra janela da prefeitura. Um senhor caiu por cima dele e disse que ia quebrar aquilo! O prefeito, que na época se chamava José Bezerra Lemos, disse que então ia levá-lo pra casa. “Vocês vão ouvir tudo é lá em casa!”, ele disse.

 

À noite, uma multidão de eleitores foi pra lá e aquela coisa não agradou a primeira-dama. “Ou você tira esse rádio daqui ou saio eu”, ela falou. O prefeito disse que precisava deixar ele dentro de casa mais um pouco: o povo estava esperando notícias sobre os combatentes da guerra, porque havia dois aqui do sertão. O povo ia ficar do lado de fora e, quando saísse a notícia, o prefeito ia avisar.

 

Não saiu o nome de ninguém, o rádio foi perdendo a essência e o prefeito passou até a ser criticado. “Uma besta com um rádio na cabeça” – falavam isso dele. E ele carregava mesmo, porque não confiava nos assessores. Isso marcou a história do município porque foi o primeiro meio de comunicação por aqui.

 

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[O casamento sertanejo, a importância do maleiro e a zoada do periquito]

No casamento sertanejo de antigamente, o transporte da roupa do noivo e do vestido da noiva era feito pelo maleiro. Colocavam as roupas e as alianças em malas e entregavam pra uma criatura. Três horas antes do casamento, essa pessoa levava aonde iria ser realizada a troca de roupa dos noivos. Tinha que ser alguém de alta responsabilidade, porque não podia acontecer nada com as alianças e com o vestido. A pessoa que tinha mais importância em um casamento sertanejo de cem anos atrás eram as testemunhas e o maleiro. O filé do boi era sempre pras testemunhas, e o maleiro tinha todo o acesso aos noivos.

 

Outra figura importante desses casamentos era o “periquito”. Algumas pessoas saíam a cavalo da porta da igreja logo que acabava a cerimônia, iam pro local onde iria ser realizada a festa e pegavam o que se chamava de pé de peru. Quem conseguisse chegar primeiro de volta à igreja seria destaque na mesa dos noivos. E eles eram chamados de periquitos do casamento, porque faziam muita zoada. Essa pessoa era escolhida na hora, os outros eram convidados.

 

Isso tudo aconteceu aqui na nossa região por muitos e muitos anos. Hoje nem se comenta mais como era e qual é a origem disso tudo.

 

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[Santo de casa não faz milagre]

Quando não chovia, uma pessoa ia na casa de outra e roubava um santo. A que roubava tinha que negociar com o santo. “Você só volta quando chover!” Mesmo que eu tivesse um São Francisco, pra conseguir chuva, tinha que roubar o São Francisco de outra pessoa. Quando chovia, era feita a devolução do santo, com oração. Do mesmo jeito que tem procissão.

 

Depois da devolução, era feito um leilão, uma novena, e era uma festa muito grande só porque o santo tinha mandado chuva pro sertão.

 

Por isso que se fala que “santo de casa não faz milagre”. Porque, mesmo que eu tivesse um santo, era o santo roubado que conseguia o milagre de fazer chover.

 

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[Mania de Véio]

Eu tenho uma mania. Se eu ficar sem trabalhar na arte, fico estressado ou, como dizem na linguagem popular, agoniado. Se chego na Igreja do Bonfim, em Salvador, fico olhando as madeiras, os paus, pra ver o que conseguiria fazer com aquilo. Desde pequeno, tenho essa mania.

 

Isso sempre foi minha brincadeira, porque nunca participei das brincadeiras do sertão. Era cavalo de pau, sair correndo, peteca, brincadeira do grilo. Nunca montei nem em um cavalo de verdade. De forma alguma. Nunca montei e tenho fé em Deus que nunca vou montar.

 

Todas essas brincadeiras eu achava que não tinham a ver comigo. Enquanto as outras crianças brincavam, eu fazia meu trabalho. Nunca tive turma. Até hoje sou uma pessoa que, se me contam um segredo, não conto a ninguém. Não tem quem me arranque um segredo. Tenho essa forma de pensamento e de vida. Gosto de estar sozinho na mata. Muita gente acha que é loucura.

 

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[Trechos extraídos de entrevistas cedidas por Cícero Alves dos Santos, o “Véio”, para a publicação produzida pelo Itaú Cultural especialmente para a exposição em sua homenagem, Véio - a imaginação da madeira]

 

 

 

SERVIÇO

 

Véio - a Imaginação da Madeira

Itaú Cultural - Pisos -2, -1 e 1

 

Abertura:

14 de março, quarta-feira, a partir das 20h

 

Visitação:

15 de março (quinta-feira) a 13 de maio (domingo)

Terças-feiras a sextas-feiras, das 9h às 20h

Sábados, domingos e feriados, das 11h às 20h

Indicada para todas as idades

 

 

Itaú Cultural

 

Avenida Paulista, 149, Estação Brigadeiro do Metrô

Fones: 11. 2168-1776/1777

Acesso para pessoas com deficiência

Ar condicionado

Estacionamento: Entrada pela Rua Leôncio de Carvalho, 108

Se o visitante carimbar o tíquete na recepção do Itaú Cultural:

3 horas: R$ 7; 4 horas: R$ 9; 5 a 12 horas: R$ 10.

Com manobrista e seguro, gratuito para bicicletas.

 

     

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