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Véio, por Agnaldo Farias e Carlos Augusto Calil

Apesar da censura dos pais e da sociedade, pois estaria fazendo um “trabalho de brincadeira”, Véio abandonou a roça e assumiu sua condição de artista, que ele ostenta com orgulho quando proclama que nunca trabalhou para ninguém.

 

 

 

 

Cícero Alves dos Santos nasceu em 1947, na Rua do Galo Assanhado, em Nossa Senhora da Glória, no sertão de Sergipe. Recebeu esse nome em homenagem ao Padre Cícero, para que herdasse sua inteligência. Seus pais não se arrependeram do gesto. Em criança pouco se interessava pelas brincadeiras dos meninos e ficava estático, cosido às paredes, ouvindo a conversa dos velhos, aprendendo com eles. Aos olhos dos meninos da sua idade, parecia um “véio”, e esse apelido vingou.

 

A habilidade de esculpir miniaturas logo floresceu naturalmente. O menino utilizava cera de mandaçaia, abelha comum na região. Ao sentir-se observado, desfazia rapidamente a peça, temendo a discriminação por “brincar de boneca”. O seu isolamento surgiu nesse tempo, o que o apartou gradativamente da família e do convívio social. Obrigado a auxiliar o pai na roça, aproveitava as horas de liberdade para esculpir miniaturas em madeira. Véio revelou-se um prodigioso escultor de micropeças, muitas delas com a dimensão da cabeça de um palito de fósforo. Mas não era essa sua profissão.

 

De início, essas peças tinham vocação anedótica; ilustravam histórias da comunidade que se mantinham vivas pela transmissão oral. Diante da indiferença geral pela tradição, Véio foi se arvorando em cronista moral. Com suas esculturas, contava e recontava fatos acontecidos e reportados nas conversas dos velhos. Compunha laboriosamente um repertório de causos saborosos, a que atribuiu o título de “sabedoria do sertão”. Apesar da censura dos pais e da sociedade, pois estaria fazendo um “trabalho de brincadeira”, Véio abandonou a roça e assumiu sua condição de artista, que ele ostenta com orgulho quando proclama que nunca trabalhou para ninguém.

A necessidade de reter a origem e a história da sua gente, dos velhos que tanto respeita e honra com seu trabalho, se estendeu naturalmente aos costumes e aos meios de produção – Véio passou a colecionar instrumentos de trabalho, máquinas primitivas, métodos obsoletos, pregos artesanais, carro de bois, casa de farinha, de onde recuperou, por exemplo, a origem da expressão idiomática “a porca torceu o rabo”. Dessa coleção surgiu o Museu do Sertão, que inicialmente Véio mantinha em sua casa na cidade, mas que, com expansão permanente, logo demandou espaço próprio.

 

O artista foi assim induzido a adquirir um terreno para morar e abrigar obras e museu. A 8 quilômetros de Glória, à margem da rodovia BR-206, criou o sítio Soarte, que durante um tempo guarneceu com assombrosas esculturas ao relento, dispostas junto à rodovia. “Cada peça dessas tem vida, alegria, tristeza. Eu converso com elas, cada uma é uma pessoa, um filho, um irmão, é uma família. Ninguém é eterno, então aqui morre peça, se acaba peça, nasce peça.”1 E é de admirar a energia com que as leva de um lado ao outro, renova com mãos de pintura, sem acusar seus 70 anos completados em 2017.

 

Esse bestiário fabuloso constitui a sua desolada nação sertaneja, “uma nação que aí está, sujeita à poeira, às tempestades, às críticas, à pornografia, às pragas, ao abandono, no mato, sem se mover, sem se manifestar, estão aí caladas, aceitando tudo que se diz [...]. Então é uma nação totalmente lascada...”.2

Véio ralhador fala com autoridade, adverte para a necessidade de preservar a mata, defende a autêntica cultura sertaneja, ameaçada pela indiferença e pela adesão preguiçosa de seus conterrâneos a valores externos ao meio. “Eu não tinha conseguido colocar na mente e na cabeça do povo sertanejo da cidade e das autoridades.”

 

Apesar de pregar em vão, Véio não desistiu; partiu para a ação exemplar: comprou um último trecho de mata virgem na região para preservá-lo. Uma ilha quadrilátera repleta de vegetação retorcida cercada de pastos, a qual ele visita diariamente apenas para escutar os pássaros e encontrar-se com as árvores e os arbustos, os seres do sertão hoje devastado, que Véio conhece com a intimidade de um botânico e que trata como amigos. Não faz nada na pequena reserva, mas a oferece a quem se disponha nela realizar cultos variados. Porque não a explora nem sequer retira madeira para sua produção artística, é tido como excêntrico pelos vizinhos. Prossegue assim seu caminho solitário, à margem dos interesses comuns.

 

Véio trabalha os troncos que lhe chegam já abatidos: mulungu, jurema, goiabeira, graúna, barriguda. Ele jamais derruba árvore. Aproveita a madeira morta, para como um demiurgo do sertão dar-lhe nova vida. Reconhece-se “um criador, [que] fazia aqueles animais que não existiam no universo, mas passavam a existir porque os estava fazendo”.3 Parodiando João Cabral de Melo Neto, Véio é quando uma árvore tem voz. “Então a madeira tem essas coisas, que você tem que entender também o lado dela, as dores que ela sente ela não pode dizer.”4

 

As esculturas derivam de troncos abertos ou fechados. Dos fechados surgem as peças maiores com muitas pernas e sexo proeminente em cores vibrantes e puras. Nelas Véio intervém menos; a configuração natural inspira o criador, ele parece puxar para fora o corpo até então conservado em estado de latência, adormecido, que ele percebe pronto para sair. Há algo dos escravos de Michelangelo, as placas de mármore das quais brotavam torsos, braços, fragmentos de corpos para sempre aprisionados. A estilização, a feroz alegria, a gratuidade, a invenção o aproximam de Alexander Calder, membro ilustre da sua família artística.

 

As esculturas de Véio levam nomes emblemáticos, alusivos ou não: O Bicho que Eu Nunca Vi, Corpo Fino, para uma figuração do cão com pluma, que o poeta não viu, Rico e Pobre, O Peso do Mundo, O Medo, O Aniversário, este sobre a fome do povo de São Paulo, disputando um pedaço de bolo na festa de aniversário da cidade. São obras monstruosas ou, no mínimo, fabulosas. Diante delas é comum a pergunta: mas é possível existir isso? O impacto amplia-se pelo uso de cores fortes e familiares, nada de subtons e refinamentos dispensáveis – segundo o crítico Rodrigo Naves, pelo “uso sagaz de tintas acrílicas”, obtendo um efeito “pop”.5

 

As pequenas obras (algumas minúsculas) provêm de tronco aberto, aquele cuja forma natural não sugere estilização. Nesses casos, a invenção é livre de condicionamentos, pois o escultor não se submete à matéria dada. “Uma ação totalmente planejada pelo artista.”6 Os títulos arbitrários a elas atribuídos são documentais ou simplesmente índices: Bico, Bocudo, Escondido, Porcaria, Escadinha, Em Busca do Sucesso, Rampa Abaixo, Os Penitentes...

Seus personagens mantêm gestos prosaicos: mão no rosto em desespero, homem prostrado sobre a mesa, homem exibindo o sexo armado, homem lendo, homem contemplando, homem ajoelhado no confessionário, uma porta fechada, uma porta entreaberta, mulher carregando cabeça de porco, viajantes de costas num barco etc. O silêncio que delas emana é preâmbulo de visada metafísica. Bem ao contrário das esculturas grandes, que propõem uma experiência extrafísica. “Eu não sonho muito, não... Eu tenho pesadelos!”7

 

As peças maiores, coloridas, são vistosas, falam alto. São visíveis a distância, criam clareiras ao seu redor, mesmo quando atulhadas, como acontece em seu depósito, oficina e museu. Já as menores, que preservam a textura da madeira crua, são discretas, falam baixo. Como de longe não se adivinha de que tratam, é preciso aproximar-se, curvar-se até elas ou pegá-las na mão. Quando isso é possível, aí que são revelados seus minuciosos segredos.

 

“Gosto de minha criatividade assim, olho e já sei o que vou fazer quando pego o material.”8 “Isso não está em livro, é só na minha imaginação e visão.”9 Véio tem consciência de seu valor como artista original e clama por reconhecimento – que, iniciado numa exposição individual em 1986, só agora parece consolidar-se no país e no exterior.

 

 

*Agnaldo Farias é professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP), curador e crítico de arte. Carlos Augusto Calil é professor do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), cineasta e crítico. Juntos, assinam a curadoria da exposição Véio — a Imaginação da Madeira.

 

[Este texto faz parte da publicação produzida pelo Itaú Cultural especialmente para a exposição Véio - a Imaginação da Madeira]

 

 

1 Teimosia da imaginação. São Paulo: Instituto do Imaginário do Povo Brasileiro: Martins Fontes, 2012, p. 56.

2 Nação lascada, arte e metáfora de Véio. Brasília: Iphan: Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, 2006, p. 8.

3 NAVES, Rodrigo. Cícero Alves dos Santos [Véio] – Esculturas. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 143.

4 Teimosia da imaginação, p. 55.

5 NAVES, Rodrigo, op. cit., p. 7-8.

6 Idem, p. 22.

7 Teimosia da imaginação, p. 59.

8 NAVES, Rodrigo, op. cit., p. 143.

9 Teimosia da imaginação, p. 51.

 

 

 

 

SERVIÇO

 

Véio - a Imaginação da Madeira

Itaú Cultural - Pisos -2, -1 e 1

 

Abertura:

14 de março, quarta-feira, a partir das 20h

 

Visitação:

15 de março (quinta-feira) a 13 de maio (domingo)

Terças-feiras a sextas-feiras, das 9h às 20h

Sábados, domingos e feriados, das 11h às 20h

Indicada para todas as idades

 

 

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