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Rumos 2015-2016: Eugênia Moreyra, revolucionária do início ao fim

A roteirista e historiadora Isabella Poppe descobriu Eugênia Moreyra (1898-1948) – conhecida como a primeira repórter brasileira, também...

Publicado em 23/03/2017

Atualizado às 14:24 de 12/09/2017

Por Duanne Ribeiro

A roteirista e historiadora Isabella Poppe descobriu Eugênia Moreyra (1898-1948) – conhecida como a primeira repórter brasileira, também atriz e diretora teatral, além de militante comunista – há quase dez anos, em 2008, quando produzia uma iniciação científica sobre o “companheiro de toda a vida” de Eugênia, o escritor Álvaro Moreyra (1888-1964). Conhecer a trajetória da artista e jornalista pioneira teve impacto: “Sua personalidade transgressora, seu comportamento de vanguarda, suas amizades com os modernistas e intelectuais daquele período, sua prisão durante o Estado Novo, a criação de um teatro consciente da realidade social – isso tudo despertou meu imaginário e atiçou minha curiosidade”, diz Isabella. Essa inspiração daria frutos.

A vontade de “saber mais sobre a vida dessa mulher, que por alguma razão nunca se tornou conhecida do grande público”, levou Isabella ao projeto em que hoje trabalha com o apoio do programa Rumos Itaú Cultural: Pesquisa e Roteiro sobre Eugênia Álvaro Moreira, uma Pioneira Desconhecida. Ao interesse de trazer à tona essa história se somava um entendimento do potencial social de um projeto assim. “Optei por um roteiro de longa-metragem pela vontade de fazer de Eugênia uma protagonista forte, complexa, que possa ser reconhecida pelo seu papel na história política e artística do Brasil”, conta a roteirista. “Acredito que recuperar a sua trajetória é uma contribuição para valorizar o papel das mulheres na história em geral e para informar e reafirmar às pessoas de nosso tempo que os direitos que possuímos hoje foi fruto de muita luta no passado.”

Também nesse sentido, prossegue Isabella, “apesar de muitas conquistas ao longo dos séculos XX e XXI, nós ainda vivemos um período em que as mulheres precisam lutar por protagonismo, tanto nas representações artísticas como na própria sociedade. Se pensarmos que a arte reflete a vida, ela ainda precisa refletir bastante sobre o papel do gênero feminino na história e na atuação das mulheres hoje e ontem”.

Para o Blog do Rumos, Isabella destacou algumas passagens da biografia de Eugênia, o seu ousado e bem-sucedido percurso jornalístico, a sua contribuição para a renovação das artes cênicas nacionais e a sua militância. “Não tenho receio em afirmar que ela foi revolucionária do início ao fim, na arte e na vida. E eu acredito nisso. Acredito que o artista nunca deve ser indiferente à realidade social e política de seu tempo.”

Da vida intensa da reportagem ao "mysticismo da cella"

Em 1914, com 16 anos, boêmia e moderna, Eugênia tornou-se repórter do jornal A Rua, do Rio de Janeiro. Logo, porém, o periódico anunciou que ela havia se afastado, passando a viver no Asylo Bom Pastor, um internato para jovens. A manchete “Uma alegria que se enclausura – da vida intensa da reportagem para o mysticismo da cella – por que ella partiu?” apenas escondia o fato de que Eugênia tinha se internado para averiguar um crime – a “tragédia da Rua Dr. Januzzi, 13”, em que uma mulher, dita traída pelo marido com a irmã, foi encontrada morta, e não se sabia se por assassinato ou suicídio.

Eugênia intencionava elucidar o caso falando com a irmã acusada e outras internas. O esforço nesse sentido não trouxe muitos resultados, mas ela encontrou nessa ocasião uma chance de retratar o cotidiano dentro da instituição. “Ela se deparou com a vida dessas mulheres enclausuradas”, diz Isabella, “e, por sua sensibilidade e preocupação, decidiu revelá-las, em reportagens que também possuíam um tom de crítica à religião católica. Na época, a sua atitude foi ressaltada como exercício sublime de jornalismo, exemplo para outros repórteres se espelharem.”

Isabella ressalta ainda o arrojo da empreitada. “Ela enxergou numa aparente situação rotineira um fato jornalístico. Deu visibilidade a uma questão importante e pouco debatida na sociedade. Foi uma proposta ousada numa época em que a modernização e o avanço do capitalismo no Brasil já interferiam nas redações dos jornais, em que o que importava era vender cada vez mais exemplares.” A investigação lhe aumentaria a fama e alavancaria as vendas do jornal.

Que fizesse rir, mas fizesse pensar

Já casada, mais de uma década depois, Eugênia fundou com Álvaro Moreyra o Teatro de Brinquedo, em 1927. O casal era envolvido com os modernistas da Semana de 1922 – o pintor Di Cavalcanti (1897-1976) a retratou e o escritor Oswald de Andrade (1890-1954) dedicou O Rei da Vela a eles –, e a trupe que criaram, no espírito desses artistas, pretendia “renovar as artes cênicas e se opor ao teatro comercial da época”, de acordo com Isabella. Queriam “um teatro que fizesse rir, mas fizesse pensar”.

Eles próprios, porém, não se consideravam modernistas. “Eram artistas de vanguarda, estavam atentos às transformações da época e à própria influência europeia, mas não se enquadravam totalmente no movimento”, diz a roteirista.

Ainda segundo ela, “o Teatro de Brinquedo não era exatamente panfletário, pois considerava que o teatro tinha de agir por uma forma não direta; engajado, mas não explícito. Ao mesmo tempo, não se destinava a um público específico de massas operárias, buscava uma fusão entre o popular e as elites”. Na Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras, lemos que o grupo “representa uma transformação completa na concepção do espetáculo, no processo de produção e criação e nas relações com o público, revelando-se como manifestação precoce da modernidade teatral no Brasil”.

O grupo acabou em 1936. Isabella aponta que a sua influência chega a Os Comediantes – companhia que encenou Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues, marco da história do teatro nacional. Depois desse momento, Eugênia ainda foi presidente do sindicato da classe teatral, o que fazia parte de um interesse mais profundo.

Esse interesse mais persistente era a política. “Eugênia tinha vocação artística, mas nunca deixou de lado sua luta pela transformação social”, sublinha Isabella. Esse dado pode ter influenciado na maneira como ela foi registrada pela história: “Pessoalmente, eu acredito que parte do esquecimento em relação à figura de Eugênia possa ser atribuída à sua militância política, como acontece com diversos artistas que se engajam politicamente e acabam sendo rotulados como ‘menores’ ou como alguém que perdeu o rumo”.

Transformar os fatos em drama, traduzir uma admiração

A biografia de Eugênia representou um desafio para o projeto. Na pesquisa, segundo a roteirista, foi achado “um rico e vasto material, documentos, reportagens, cartas e depoimentos. Isso exigiu uma enorme dedicação para ler, organizar e analisar tudo, e assim poder estabelecer um enfoque”. Depois dessa fase de estudo, ocorre a escrita do roteiro.

“Sabemos que não bastam fatos marcantes para ter um roteiro de audiovisual sólido, instigante e bem estruturado”, explica Isabella. “É preciso transformá-los em acontecimentos dramáticos e adaptá-los à linguagem específica do audiovisual. Por isso agora o objetivo é escrever a estrutura em cenas que o roteiro terá e desenvolvê-las de acordo com o estilo a que o filme se propõe e com as características da personagem, tendo como pano de fundo o Rio de Janeiro do início do século XX.”

Talvez o maior desafio seja traduzir a impressão deixada pela pioneira sobre Isabella. Mais do que um objeto de pesquisa, um personagem histórico, Eugênia é para ela uma fonte de entusiasmo. “Eu tenho a consciência de que pode haver certo romantismo na imagem que faço dela, mas acho que é assim quando construímos uma admiração por alguém”, comenta. “A verdade é que toda a sua vida – a própria imagem dela, a expressão marcante do seu rosto – me fascina.”

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