A arte acorda a cidade



Viviane vai de ônibus da casa mágica para o trabalho

Pés apressados na calçada, asfalto repleto de carros, muros cheios de anúncios. A cidade grande parece não ter vocação para acolher gente. Quem por ela passa não para. A fugacidade do tempo é traço marcante da vida contemporânea. Em meio à urgência sôfrega, a obra de arte pode sensibilizar quem transita pelas ruas com olhos e ouvidos lacrados. A intenção é provocar os distraídos, mudar a paisagem. Vários coletivos de artistas tem se lançado na superfície áspera da urbe com esse objetivo nada modesto.

É o caso do projeto Travessão – Coletivos em ConversaObras de arte em forma de busdoors(cartazes de ônibus, em tradução livre) costuram Belo Horizonte, cortando seu centro nervoso, a Praça Sete.  São imagens que têm o espaço urbano como tema, feitas para dar cor ao concreto. O Travessão retira da vida cotidiana da cidade a matéria-prima para sua criação. A ideia é fazer uma bricolagem, utilizando mecanismos, formas e texturas disponíveis nos grandes centros. Em dois anos de desenvolvimento, a proposta já interligou muita gente através da arte.

Casa mágica. Esse é o modo como Viviane de Cássia Ferreira designa sua morada. O jardim florido que desrespeita as grades transborda para o passeio, parecendo querer alcançar quem caminha pela Rua Nova Ponte, na região oeste da capital mineira. Convidada a sentar-me à mesa adornada com frutas e biscoitos, ouvi a dona da casa falar sobre a experiência que expandiu sua sensibilidade artística e mudou sua relação com o bairro em que cresceu e habita até hoje. “O Travessão me atravessou completamente”, disse, dando inicio à narrativa.

Participante da oficina de criação do primeiro ano do projeto, em 2010, Viviane se encantou de imediato com a proposta de criar peças de arte gráfica para circularem nas traseiras dos ônibus das linhas 9211 e 9214, coletivos que ela utiliza há oito anos para ir ao trabalho. No momento em que ingressou no Travessão, a moça que hoje mostra um sorriso largo estava afastada de seus afazeres de professora e atriz. Viu no projeto uma chance terapêutica de lidar com a doença. “Tenho transtorno afetivo bipolar e iniciei a oficina meio constrangida, sob licença médica.” Ela mantinha uma relação complicada com o universo imagético, que ainda considera muitas vezes perturbador.

Uma nova forma de contato com as imagens se descortinou na oficina proposta por “aquele casal maravilhoso”, como Viviane se refere a Elisa Marques e Nian Pissolati, criadores do Travessão. O trabalho aconteceu no Centro Cultural Salgado Filho, quase em frente à casa mágica. Ela enumera, empolgada, as atividades efetuadas ao longo de quatro meses. “Conversamos com moradores, fizemos intervenções poéticas no bairro, fotografamos fachadas, colhemos texturas pelas ruas.” Enquanto fumava seu cigarro na copa ensolarada, Viviane falava sobre teorias e técnicas que conheceu, como o situacionismo europeu e a utilização de photoshop. Para ela, o mais importante foi como o projeto renovou sua visão de mundo, tornando-a mais crítica e consciente em relação ao universo das figuras. “Tudo foi visto, discutido, experimentado e transformado em peças gráficas que me deixaram imensamente orgulhosa e feliz, contribuindo decididamente para afugentar o fantasma da depressão”, arrematou.

No Centro Cultural São Geraldo, na região leste da capital, outro grupo também inventava peças para busdoors. Conectando a cidade, os ônibus que ostentavam em suas janelas traseiras as mídias confeccionadas em adesivos de vinil permitiram uma teia de diálogo através das imagens produzidas em cada uma. No segundo semestre de 2010, 12 dessas obras transitaram entre Salgado Filho e São Geraldo, deixando nas veias de asfalto o rastro das criações coletivas elaboradas nos dois bairros.

Neste ano de 2012, o projeto aumenta para 20 o número de ônibus a circularem com a produção do Travessão. Os dois centros culturais escolhidos desta vez estão na região do Padre Eustáquio e na Pampulha, integrados pela linha 4100, cujos carros recebem os busdoors.


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Imagem do topo: Elisa e Nian –do romance nasceu o Travessão