Muito além das palavras



Maltez une o útil ao agradável em seu app, escrevendo e ilustrando a história (Foto: divulgação)

A voz é serena. “Tá vendo esse monte de chácaras e condomínios, ocupando todo o vale? Fazia parte da Pedra Branca, a fazenda do meu tio José. O que vem a seguir se passou nessas terras, já faz um tempo”. Assim começa Meu Tio Lobisomem, livro do paulistano Manu Maltez. As palavras do narrador chegam a nossos ouvidos ditadas pela voz do autor. Meu Tio Lobisomem é um livro-aplicativo, uma espécie de evolução do e-book tal qual o conhecemos. Mais que no livro digital, nele a narrativa ganha ares futurísticos, misturando palavras escritas, ilustrações, sons e vídeos, tudo à distância de um toque. A letra, pouco a pouco, perde espaço para os sons e as imagens, confirmando uma tendência da cultura contemporânea. Constitui-se, assim, uma nova experiência de leitura, que se torna sinônimo, também, de ver e de escutar.

Appbook, enhanced book (livro reforçado, em tradução literal), livro-aplicativo. Ele surgiu nos Estados Unidos em 2010, pegando onda na popularização dos tablets. Estourou com uma versão de Alice no País das Maravilhas para iPad, na qual o leitor pode trocar as roupas de Alice, além de aumentar ou diminuir a personagem, numa divertida interação com o texto de Lewis Carroll. Em uma aposta ainda mais ousada, a Penguin americana lançou no começo de 2011 uma versão de On the Road, o clássico da geração beat escrito por Jack Kerouac, que explora ao máximo os recursos do novo formato. Mapas da viagem dos quatro protagonistas, trechos lidos pelo próprio Kerouac, áudios de entrevistas com o autor, rascunhos, críticas da imprensa quando do lançamento do romance em 1957. Tudo isso, claro, ao lado do bom e velho texto original.

De Itatiba para o Tablet

No Brasil, o formato ainda engatinha. São poucas as editoras nacionais que já se arriscam nesse terreno incerto. O livro de Manu Maltez foi o primeiro lançado simultaneamente em versão impressa e app, em agosto de 2011. Na obra, o escritor, que também é ilustrador, escultor e compositor, resgata lembranças da infância passada na fazenda do tio, na cidade de Itatiba (SP). Maltez já havia ilustrado o livro de contos Rasif, de Marcelino Freire, e lançado uma releitura em desenhos de O Corvo, poema de Edgar Allan Poe. “Já escrevia antes, mas eram coisas mais curtas, poemas e letras de músicas, então foi natural enveredar para a literatura”, conta.

O jovem autor – na literatura, 35 anos significa a tenra infância – de Meu Tio Lobisomem lembra que, no início, a ideia era colocar um CD junto do livro, já que, em parceria com o violeiro Fabio Barros, havia composto uma música tema, batizada O Lobisomem de Itatiba. Conversando com sua editora, a Peirópolis, de São Paulo, ouviu a sugestão de criar um app. “Achei ótimo, pois sempre quis trabalhar com animação”, lembra Maltez. Para ele, o formato do livro se prestava bastante para esse tipo de desdobramento. “Já tinha ouvido falar desses aplicativos, mas nunca os tinha visto. Nem tenho um iPad, me emprestaram um e dei uma fuçada no que estava sendo feito”, diz.


O livro-aplicativo de Maltez, no tablet. (Gravação: André Seiti)

O som do virar de páginas está lá, para os mais saudosistas. São dois tipos de trilha. A primeira, de efeitos e pequenas passagens musicais, em sincronia com as animações. A segunda, com a música tema. Apesar de feliz com o resultado, Maltez, que se diz um fanático por livros, não acredita na substituição destes pelos produtos digitais. “São linguagens completamente diferentes e esse é o grande barato. Você pode fazer outra coisa com o app a partir do livro, com música, narração, animações e outras ideias que surgirem. É quase como uma adaptação para o cinema. Mas também não é isso, é realmente um outro formato”, defende.

Desenvolvedor do Ciclope, o ateliê digital de Belo Horizonte responsável pelo appbook de Manu Maltez, Lucas Junqueira conta que o processo entre a criação do software e o lançamento do livro-aplicativo levou cerca de dois meses. O ateliê já recebeu o material pronto, de uma animadora independente. “Passamos certos parâmetros, mas só isso. Quanto ao áudio e à narração, ficaram a cargo do próprio autor, o que acabou barateando os custos”. De acordo com Junqueira, a criação do app de Meu Tio Lobisomem não ultrapassou os 10 mil reais.


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Imagem do topo: Ilustração de Manu Maltez para seu livro Meu tio lobisomem