Os DJs da Literatura



Villa-Forte é o “DJ residente"


Leonardo Villa-Forte poderia ter gritado “Eureka!” quando, em uma tarde de leituras no mês de novembro de 2009, fez uma descoberta acidental. “Eu tentava ler uns dez livros de uma vez só, quando percebi que alguns trechos de autores diferentes se conectavam”. A exclamação grega, que manifesta o espanto diante dos grandes achados, expressaria muito bem o que ele sentiu. Estava diante do que julgava ser uma novidade literária. Excitado, passou a escolher trechos dos livros que tinha diante de si, montando, em uma tarde, uma narrativa produzida unicamente pelo encaixe de escritos alheios.

A técnica, Leonardo descobriu depois, é compartilhada por muitos escritores e tem até nome próprio: remix literário. Na rede, ele encontrou vários comentários entusiasmados a respeito dessa estratégia narrativa, festejada não só por seu aspecto inovador, mas também por sua radicalidade. Achou, no entanto, que a ousadia deveria passar pelo crivo de críticos mais exigentes. Foi com algum receio que encaminhou seu primeiro remix a amigos próximos. “Todos concordaram que era estranho, mas muito interessante. Deu vontade de mostrar para mais pessoas e resolvi abrir um blog, o MixLit, onde compartilho semanalmente meus remixes”, conta.

A remixagem é uma das mais radicais tendências da criação literária contemporânea. Apareceu na música, entre os anos 1960 e 1970, sendo turbinada pela difusão da internet. Do leste asiático aos confins da Amazônia, tornou-se banal a mistura de canções alheias. Na verdade, sua origem é bem mais antiga. Não é um exagero dizer que até um mestre da música erudita como Wolfgang Mozart remixou. O compositor nunca escondeu as referências explícitas à música do vienense Joseph Haydn em suas criações.  Em vez de afastá-los, essa interferência os aproximou. Haydn e Mozart se tornaram amigos e dedicaram muitas composições um ao outro.

Na literatura, o remix chegou bem depois. A internet se encarregou de difundir o trabalho dos DJs literários que, como Leonardo, compartilham a ideia de que todo leitor é, ao mesmo tempo, coautor.  A novidade, no entanto, é às vezes vista com desconfiança. Em um campo tradicional como o das letras, questiona-se, com frequência, não só o desprezo pela assinatura do autor, como o próprio valor literário dos textos remixados. Mas e se o leitor não soubesse que o texto é um remix?


Era uma vez um remix

Verão de 1926. O escritor Mário de Andrade chega a sua chácara, no interior de São Paulo, com as malas abarrotadas de livros. Traz, ainda, um amontoado de fichas, cadernos de notas e recortes de jornais. No passado, aproveitara o silêncio do campo para se dedicar à leitura. Desta vez, chega movido por uma missão especial. A leitura de Do Roraima ao Orenoco, ensaio do etnógrafo alemão Theodor Koch-Grunberg, que coletou mitos indígenas na Amazônia, despertou no modernista o desejo de escrever um romance inspirado no folclore. Às lendas narradas por Theodor, ele mistura agora trechos das obras de Capistrano de Abreu, Pixinguinha, Couto Magalhães e Pereira da Costa. Mesclados a relatos da tradição oral, eles estimulam Mário a testar várias disposições e combinações. Nasce, assim, Macunaíma, seu livro mais importante. Boneca de Piche, como Mário era conhecido na intimidade, escreveu depois aos amigos, gabando-se dos breves seis dias gastos na escrita de sua rapsódia.  Festejava, ainda, o método de composição, que julgava ser o inventor.


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