Os DJs da Literatura

 



Para Heloisa, Mário de Andrade já fazia remix

De sua rede na chácara de Araraquara, o escritor paulista brindava a literatura brasileira com um de seus mais famosos remixes. Quase um século depois, em seu apartamento do Leblon, no Rio, Heloísa Buarque de Hollanda, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, analisa o episódio. “O Mário de Andrade estava totalmente consciente do que fazia. Ele chamava a atenção dos amigos para sua nova técnica literária, embora não lhe desse um nome. O remix que conhecemos hoje já era pedido pela literatura há um tempão, só faltava ser formalizado”, observa.

A arqueologia da técnica acumula outros exemplos famosos. É o caso de Almoço Nu, romance que o poeta americano William Burroughs publicou em 1959, considerado a obra inaugural dos cut-ups. Ele resultou de uma longa série de textos dispersos, montados depois de maneira aleatória. Ana Cristina César, Clarice Lispector, James Joyce e Júlio Cortázar, entre outros, experimentaram, em algum momento de suas obras, a mesma técnica do recorte. “A citação de outros autores, prática recorrente na poesia, pode ser vista, ainda, como uma forma primitiva de remix”, avalia Heloísa. Nem mesmo a obra fundadora da literatura ocidental escapa. Escrita a partir de blocos de contos populares, a Ilíadade Homero é a primeira recombinação de que se tem notícia. Ao que parece, no princípio, era o remix.

Leonardo Villa-Forte, hoje com 27 anos, cursou psicologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro, mas já há alguns anos se ocupa mais das letras do que da mente. Feita a descoberta, passou a usar a internet para difundi-la, logo se tornando uma referência da nova técnica entre os autores brasileiros. Muito branco e muito dedicado, dispensa uma tarde de praia para estudar, ler, ou falar sobre remixes. Desde 2011, dá palestras e oficinas sobre literatura recombinada. Numa manhã ensolarada de junho de 2012, exibia para uma turma de alunos seu remix nº61, batizado Um Jogo:

 “Ele estava no quarto, empurrando roupas para dentro de uma mala, quando ela chegou à porta.

– Estou contente por você estar indo embora, estou contente por você estar indo embora! – disse ela

– Está ouvindo?


– Você estava muito irritada agora há pouco.

– Fui apanhada de surpresa. – Peço desculpas por isso. Meu pensamento esbarra nos seios, nas coxas e ancas das mulheres. É muito difícil ser inteligente neste corpo. [...]”


O texto foi produzido a partir de 14 autores. “E aí, o que acharam?” É assim que Leonardo começa suas oficinas; mostrando como Gonçalo Tavares vai muito bem com William Faulkner, e que trechos do romance de costumes Lucíola, de José de Alencar, e do clássico do naturalismo O Cortiço, de Aluísio Azevedo, podem habitar, sem dissonâncias, uma mesma frase. “Não tenho uma história predefinida, somente um ponto de partida”, ele explica. “À medida que você encaixa os textos, as possibilidades vão se definindo. É como um funil, entendem?” O processo parece complicado, mas a turma o aceita com entusiasmo.

No início das aulas, Leonardo distribui textos, tesouras e tubos de cola. Nos primeiros momentos, a sala está cheia de rostos confusos e de olhares perdidos. É preciso começar a recortar e colar para que os primeiros textos, aos poucos, se esbocem. O mestre em Letras, Claudio Biasi, se mostra aliviado por ter, enfim, um trecho completo para mostrar. “Engraçado dizer isso, mas o excesso de liberdade é paralisante!” Claudio lê seu remix e depois rememora. “Não sabia por onde começar. Mas, depois que escrevi a primeira frase, foi mais fácil seguir em frente, pois o número de alternativas diminuiu. A cada nova frase, ficava mais fácil”. Eis o funil de que Leonardo gosta de falar.

Não é sem algum temor que textos alheios são recortados. O artigo 46 da lei brasileira nº 9.610, de fevereiro de 1998, não é muito claro para os leigos. “Das limitações aos direitos autorais” é como qualquer outro escrito jurídico: difícil de ler. Não é possível, no entanto, engajar-se na arte do remix sem compreender os deveres e as obrigações expressos na lei. Decidido a decifrá-la antes que ela o devorasse, Leonardo agendou uma visita com o advogado Daniel Campello. “Foi uma consulta longa, estava até com muita vontade de ir ao banheiro, mas segurei a onda”, recorda Daniel. O advogado, especialista em direitos autorais, ouviu pela primeira vez o termo “remix literário” quando Leonardo ligou para marcar um encontro.


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