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Geraldo Filme: patrimônio do samba

Geraldo Filme: patrimônio do samba

Geraldo Filme ou Geraldão da Barra Funda foi um dos grandes nomes e precursores do samba paulistano. Em uma conversa com o Observatório, o historiador Amailton Azevedo fala sobre a obra e a vida do artista

Publicado em 22/01/2019

Atualizado às 11:03 de 24/01/2019

Já em 1982, Geraldo Filme lamentava: “o samba não levanta mais poeira, o asfalto hoje cobriu o nosso chão” e, no entanto, apesar de os arranha-céus do Bixiga cobrir a luz da lua, “o Vai-Vai está firme no pedaço, é tradição, e o samba continua”. Essas frases, trecho do samba “Tradição”, contam um pouco da história do samba na capital paulista. Para além da fama do Bixiga, outros bairros também são temas da música de Geraldo, como atesta o historiador Amailton Azevedo em conversa com o Observatório. “Geraldo canta a Barra Funda, o Bixiga, circula nos chamados territórios negros antigos da cidade”, ou, nas palavras de Amailton, as “micro-áfricas” de São Paulo.

Imagem do disco "Plínio Marcos em Prosa e Samba". De pé, ao fundo, Geraldo Filme. Acompanhado de Toninho Batuqueiro, à esquerda, Plínio Marcos e Zeca da Casa Verde.

Nascido em São João da Boa Vista, em 1928, no interior de São Paulo, Geraldo Filme chegou a gravar quatro discos, entre os quais História das Quebradas do Mundaréu (1973), com Plínio Marcos, Toniquinho Batuqueiro e Zeca da Casa Verde, e O Canto dos Escravos (1982), com Clementina de Jesus e Doca. O seu legado, vale salientar, segue muito vivo na música brasileira, sobretudo em relação ao samba paulistano.

Influenciado pelo samba rural que chegava à Pauliceia, aos 10 anos o artista já tinha composição própria. “Eu Vou Mostrar” foi feito em resposta à provocação de seu pai, homem que dizia que São Paulo não era terra onde se fazia samba. Grande parte da vivência de Geraldo teve influência familiar: neto de ex-escravizados, sua produção musical não estava alheia a isso e é uma das representações da resistência cultural da população negra, força transformada, por exemplo, na música “História da Capoeira”.

A vida do sambista é tema da pesquisa do historiador Amailton Magno Azevedo, professor do Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) e autor do livro Sambas, Quintais e Arranha-Céus: as Micro-Áfricas em São Paulo (2016). Tamanho interesse surgiu, segundo Amailton, de uma conversa ou “de uma espécie de noite musical” com seu amigo e músico Lemenestréu:

“Nessa época, Lemenestréu e eu morávamos juntos. Eu era estudante do mestrado e estava fazendo uma pesquisa sobre rap em São Paulo. Ficávamos tocando violão e compondo. Numa madrugada dessas ele tocou um samba de Geraldo Filme, ‘O Silêncio no Bixiga’. Perguntei: ‘Pô, quem é esse cara?’. E ele me respondeu: ‘Como você não conhece? É um cara daqui de São Paulo que é muito importante na história do samba paulistano. Dá uma pesquisada que você vai ver que não é só o Adoniran Barbosa: tem muito mais coisa e o Geraldo é um desses caras que ajudaram a fundar uma memória do samba’. Fiquei curioso, em um primeiro momento: uma curiosidade musical que se transformou em uma preocupação de pesquisa.”  

Amailton Azevedo, historiador. Publicou a obra "Sambas, Quintais e Arranha-Céus: as Micro-Áfricas em São Paulo" com sua pesquisa sobre a vida e obra de Geraldo Filme. (imagem: Acervo Pessoal)

Ao adentrar no universo de Geraldo Filme, Amailton deparou-se com uma questão: Adoniran e a música “Trem das Onze” são os mais conhecidos quando se fala do samba paulistano. Porém, por meio da busca de documentação e em conversa com familiares e amigos, o historiador foi reconhecendo um conjunto bem maior de sambistas que, com Geraldo, compunham “uma experiência negra na cidade de São Paulo, muito vibrante, produtiva e criativa”. Fora o próprio Tio Gê, existiram Zeca da Casa Verde, Toniquinho Batuqueiro e a família do Seu Nenê de Vila Matilde.

“É palpável essa comunidade negra de São Paulo, essa micro-África paulistana, na primeira República. É possível identificar onde ela se encontrava e quais eram as suas práticas: na Penha, no Bixiga, na Liberdade, na Baixada do Glicério, na região central, ali onde tem a Igreja da Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, no Largo do Paiçandu e vem se estendendo pela Barra Funda até o lado da linha do trem. Então, há um mapa da cultura negra atuante do ponto de vista da produção cultural".

É palpável essa comunidade negra de São Paulo, essa micro-África paulistana, na primeira República. É possível identificar onde ela se encontrava e quais eram as suas práticas.

Foto: Silvia Leme​​​​

A história de Geraldo Filme perpassa a própria história de São Paulo e da resistência da comunidade negra em relação ao racismo, bem como a crescente urbanização pela qual passou a capital paulista. Não à toa, na canção “Vou Sambar Noutro Lugar”, Geraldo canta com Zeca da Casa Verde e Toniquinho Batuqueiro:

Fiquei sem o terreiro da Escola
Já não posso mais sambar
Sambista sem o Largo da Banana
A Barra Funda vai parar

Surgiu um viaduto, é progresso
Eu não posso protestar
Adeus, berço do samba
Eu vou-me embora
Vou sambar noutro lugar

Amailton Azevedo lembra a importância da imprensa negra a partir da década de 1930. Dois casos que comprovam isso são A Voz da Raça, periódico da Frente Negra Brasileira que circulou de 1933 a 1937, e o jornal Alvorada, publicado de 1945 a 1948, obra da Associação Negra Brasileira. Veículos de informação significativos colocavam-se na luta contra o racismo em um contexto em que as fronteiras entre liberdade e escravidão ainda não estavam bem definidas, apesar da abolição de 1889. Tão importantes quanto esses periódicos são os próprios partidos, como a Frente Negra Brasileira, posta na ilegalidade em 1937 por Getúlio Vargas. É desse cenário, em suma, que nascem os sambas de Geraldo Filme. Atento ao seu redor, à luta do povo negro e à história de resistências, Geraldo canta em “Tebas”, canção em referência ao marco zero da cidade de São Paulo, na Praça da Sé:

Tebas, negro escravo
Profissão: Alvenaria
Construiu a velha Sé
Em troca pela carta de alforria
Trinta mil ducados que lhe deu padre Justino
Tornou seu sonho realidade
Daí surgiu a velha Sé
Que hoje é o marco zero da cidade
Exalto no cantar de minha gente
A sua lenda, seu passado, seu presente,
Praça que nasceu do ideal
E braço escravo
É Praça do povo
[...]
No meu São Paulo, oi lelê, era moda
Vamos na Sé que hoje tem samba de roda

Foto da Antiga Igreja da Sé em 1862.

De rodas em rodas de samba, Geraldão fica conhecido e ajuda a construir o samba paulistano. Amailton afirma:

“Geraldo engaja-se nesse meio do samba e participa ativamente da fundação e da consolidação da escola de samba Paulistano da Glória, que valorizava a cultura negra. Trata-se de uma escola que nasce em meados dos anos 1940 e atua até o início dos anos 1970; uma escola muito apegada a esses temas, como o Peruche. Ele se enturma, circula nesses espaços, compõe músicas, torna-se vencedor de samba enredo até conseguir gravar seu primeiro disco no início dos anos 1980. Ele participou, em 1973, do disco Quebradas do Mundaréu, de Plínio Marcos, mas é só em 1980 que lança Geraldo Filme. É simbólico que o disco tenha o seu nome, porque ele já era uma pessoa consideravelmente conhecida no meio musical, no universo do samba, mas pôr o seu nome no título é simbólico no sentido de se apresentar para um público que até então não o conhecia.”

É simbólico que o disco tenha o seu nome, porque ele já era uma pessoa consideravelmente conhecida no meio musical, no universo do samba, mas pôr o seu nome no título é simbólico no sentido de se apresentar para um público que até então não o conhecia

Outro fator importante para pensar a obra de Geraldo Filme são as críticas que ele fez à ditadura militar, o seu engajamento político quando chegou a fazer parte do PCdoB. Ou refletir acerca da tensão entre Geraldo e os esforços das autoridades paulistanas (como o então prefeito Brigadeiro José Vicente Faria Lima) em profissionalizar o samba. Questionava o Carnaval como modelo de espetáculo, da televisão e dos negócios que foram incorporados nessa festa. Amailton Azevedo pontua: “Na entrevista para a TV Cultura em 1992, ele diz que o samba perdeu espaço para o glamour, para as celebridades”.

Geraldo, Geraldão da Barra Funda ou simplesmente Geraldo Filme faleceu em 1995, aos 67 anos. Suas composições continuam ecoando ainda hoje, assim como seu nome e sua história, tanto nas rodas de samba quanto em pesquisas de historiadores como a de Amailton Azevedo. Não por acaso, quando Amailton vai à Cohab para conversar com os amigos de Geraldo, percebe um sentimento de gratidão:

“As pessoas eram muito gratas a ele, conheciam os seus clássicos. Em uma das primeiras entrevistas que fiz, perguntei para uma dessas pessoas o que significa o Geraldo Filme. Com um sorriso que contava tudo, o sujeito me disse que Geraldo foi uma pessoa muito importante, que sonhava com a possibilidade de pôr uma escola na avenida, uma escola de samba na Cohab, uma escola que já tinha um nome: Quilombo do Educandário.”

Geraldo Filme é um patrimônio do samba. Suas letras são como uma janela privilegiada para a história de São Paulo, do samba paulistano e da resistência dos negros ao longo do século XX. Silêncio, o sambista está dormindo, ele foi, mas foi sorrindo. Ressaltar a sua memória é também fazer um convite à sua obra e aos temas das suas canções.

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