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Chico Pelúcio, Maria Tendlau e Pena Schmidt | Reflexões sobre editais

O assunto “editais” sempre causa repercussão. Por causa disso, trazemos aqui três entrevistados que atuam em áreas distintas para falar...

Publicado em 30/10/2015

Atualizado às 10:17 de 03/08/2018

O assunto “editais” sempre causa repercussão. Por causa disso, trazemos aqui três entrevistados que atuam em áreas distintas para falar conosco sobre esse tema, as formas possíveis de financiamento da produção cultural, os desafios de sustentabilidade de atividades e grupos artísticos e muito mais.

(Foto: Ivson Miranda)

 

Chico Pelúcio

Ator, iluminador, diretor de teatro e integrante do Grupo Galpão, é formado em administração de empresas e contabilidade, com especialização em cinema pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). No Grupo Galpão, atuou também como assistente de direção, diretor e iluminador de alguns espetáculos, acumulando prêmios por esses trabalhos.

Dirigiu diversos espetáculos de outras companhias de teatro, dança e circo, destacando-se as primeiras montagens de operetas de rua da Cia. Burlantins; quatro edições do projeto Oficinão, do Galpão Cine Horto; a ópera A Redenção pelo Sonho, de Tim Rescala, no Rio de Janeiro; e os trabalhos no Circo Roda, de São Paulo, e no Camaleão Grupo de Dança, de Minas Gerais.

Como diretor, realizou os curtas documentários Uma Breve História de Viagem, Flor, Minha Flor e Primeiro Sinal: a História do Teatro em Belo Horizonte – dos Primórdios até 1980. Como gestor cultural, foi responsável pela coordenação de produção do Grupo Galpão por vários anos e coordenador-geral de duas edições do Festival Internacional de Teatro de Rua, bem como do primeiro Festival Internacional de Teatro, Palco & Rua de Belo Horizonte (FIT-BH).

Em 1998, implantou e coordenou o Centro Cultural Galpão Cine Horto, do qual atualmente é diretor-geral. Escreveu o livro Do Galpão ao Galpão Cine Horto – uma Experiência de Gestão Cultural.

Observatório: Como você avalia os modelos atuais dos editais da produção cultural no Brasil? – formalização das atividades culturais x processo criativo.

Chico Pelúcio: Os editais surgiram para corrigir distorções do financiamento à cultura, seja do ponto de vista público, seja do ponto de vista privado. Eles deveriam ser considerados como uma entre as muitas ações de uma política para a cultura. Infelizmente, passaram a ser, de fato, somente uma das poucas iniciativas nesse sentido. Se, por um lado, o edital democratiza as chances e tem em tese a transparência necessária a esse tipo de iniciativa, por outro, suas formulações se tornaram demasiadamente ineficientes. Quando digo ineficientes, quero dizer que estão mais condicionados às facilidades de execução dos proponentes do que à realidade dos futuros beneficiados. Se levarmos em consideração que a maioria busca atender a áreas criativas da cultura, veremos que os formatos dos editais são frágeis ao elaborar suas regras engessando a produção artística em modelos formais e pobres. Eles acabam enquadrando a potência criativa em “caixas” que deformam as ideias inicialmente elaboradas para atender a seus regulamentos. São raros os editais no Brasil que evoluíram junto com a realidade e a demanda da arte e da cultura.

Muitos grupos, companhias e coletivos artísticos dependem de editais para sobreviver ou para manter suas atividades. Qual seria o modelo de investimento/apoio mais adequado para reverter essa situação? Existe? Comente.

Vou citar alguns pontos que prejudicam os resultados desses editais. O primeiro deles é não haver uma garantia de continuidade do próprio edital, com um calendário que possibilite o planejamento dos grupos e coletivos artísticos. O que se vê muitas vezes são cancelamentos e contingenciamentos dessas iniciativas, principalmente na esfera pública, em que são causados pelos mais diversos motivos, como mudança de governo, corte de orçamentos e inoperância dos gestores no planejamento e na execução do programa.

O segundo ponto está na elaboração de seus regulamentos, que raramente leva em consideração a necessidade de continuidade e tempo da gestão desses coletivos. A grande maioria dos editais prevê um calendário de somente um ano, como se esse tempo fosse suficiente para a consolidação de qualquer projeto. É fundamental que os contemplados possam contar com dois, três, quatro anos, no mínimo, para desenvolver e consolidar suas ações.

E, por último, são necessários regulamentos mais flexíveis, que considerem a transversalidade das artes, a necessidade de pesquisa e de novos formatos. As “caixas” que eles criam não permitem os avanços estéticos e de conteúdo.

Por exemplo, o projeto na área de audiovisual em Minas Gerais chamado Cinema Instantâneo (ou Cinema de Ator) e inscrito na categoria Novas Linguagens – caracterizada pela pesquisa de um cinema feito no momento da improvisação do ator – foi eliminado porque o edital pedia um roteiro previamente escrito. Vai entender.
Há de se pensar também na prestação de contas, que deveria levar mais em consideração a realização da proposta do que notas fiscais.

Você tem conhecimento de alguma ação da classe artística em relação à promoção de debates/discussões sobre os modelos atuais de editais ou novos modelos de financiamentos?

Acho que há bons precedentes, como o Rumos Itaú Cultural e os editais do governo da Bahia. Há alguns anos, eles abrem discussões saudáveis para a evolução de editais. Entretanto, a falta de espaço de diálogo com os governos constituídos e o isolamento das empresas privadas na elaboração e no planejamento dos editais tornam bastante difícil o atendimento das demandas contemporâneas das áreas artística e cultural. A consequência disso é o isolamento dos beneficiados, que, por sua vez, pouco organizados politicamente, ficam à deriva, lutando para ganhar de manhã o almoço do dia, quase sempre no “salve-se quem puder” ou “farinha pouca, meu pirão primeiro”.

(Foto: Ivson Miranda)

 

Maria Tendleu

É mestre e doutoranda em teatro e educação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Implantou e coordenou o Projeto Teatro Vocacional, da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, entre 2001 e 2004. Durante quatro anos, fez parte do conselho curador do Próximo Ato – Encontro Internacional de Teatro, organizado pelo Itaú Cultural.

Foi consultora pedagógica do Projeto Ademar Guerra em 2009 e coordenadora programática de teatro do Programa Fábricas de Cultura entre 2009 e 2011, ambos da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo. Em 2011 e 2012, foi curadora de teatro do Centro Cultural São Paulo (CCSP). Atualmente, é orientadora de arte dramática no Teatro da USP (Tusp) em Piracicaba (SP) e integra o Coletivo Bruto e o Núcleo Coisa Boa.

Como você avalia os modelos atuais dos editais da produção cultural no Brasil? – formalização das atividades culturais x processo criativo.

Maria Tendlau: Considero os editais uma vitória no entendimento de um tipo de arte que não se insere e não deve, por sua natureza, se inserir num sistema de mercado (entenda-se um sistema de produção artística e obras que não obedecem à lógica da mercadoria). O financiamento público direto via edital, livre do poder de decisão da iniciativa privada (como no caso das leis de incentivo) – que obedece às leis de mercado –, possibilita um avanço na discussão sobre o lugar da arte como arte pública. Dizer que a arte é pública (como dizemos acerca do teatro, minha linguagem de referência) significa realocar a pertinência da produção poética, não mais como produto de troca, mas como ação dialógica com áreas como a educação, o urbanismo, os movimentos sociais. Insisto nesse ponto porque acho que ele é determinante para um tipo de leitura sobre as políticas públicas para a arte. Todavia o edital tem limites, que se apresentam na continuidade de sua existência. Eles tendem a ser somente uma espécie de ação de “redução de danos”, se não há em seu contexto um entendimento mais amplo de política cultural pública. Já fiz parte das comissões de dois editais do poder público em São Paulo, a Lei de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, da SMC (Secretaria Municipal de Cultura) e o ProAC (Programa de Ação Cultural) da SEC (Secretaria Estadual de Cultura), e creio que só posso avaliar o sistema como um todo, no âmbito da coisa pública, a partir desses dois modelos. Também porque já fui premiada por esses dois editais como artista. Além disso, fiz parte de outras comissões, das quais falarei em seguida. No caso da Lei de Fomento, um edital mais consequente no meu entender, existe alguns aspectos em jogo:

1. A lei especifica que o edital é para a cidade, ou seja, existe um vínculo direto com a cidade, que visa a uma relação muito direta da produção dos grupos teatrais com as dinâmicas sociais urbanas. Isso possibilita algumas iniciativas bastante consequentes em localidades periféricas e em espaços de grande abandono e tensão social. Esse aspecto inscreve a criação como prática de ação política, possibilitando uma qualificação visível da produção poética e uma ampliação do acesso da população à arte. Instaura-se uma nova forma de comunicação entre público e artista que não é via mercado.

2. A lei foi pensada pelos e para os grupos teatrais e instaurou desde sua gestação o entendimento de um processo coletivo de criação, em que as relações de produção têm espaço para se reestruturar numa lógica diferente da lógica da mercadoria.

3. A lei entende o processo de criação num tempo diferente do tempo mercadológico. Prevê a necessidade de permanência, continuidade, pesquisa e residência das ações de criação.

Já o edital do ProAC tem uma história um tanto controversa. Ele surge como resposta do Governo Estadual à luta das categorias artísticas por uma Lei Estadual da Cultura. Diferentemente da Lei de Fomento, não se trata de um edital gestado pelos artistas.

Ele é bastante eficiente no sentido de distribuição de verba, atende a diversas linguagens e possui um orçamento significativo. Mas me parece que funciona mais no sentido de atendimento de demandas dos artistas do que no entendimento de uma política pública como um todo. Existe a grita do interior por um aumento de verbas, por exemplo, voltadas à produção descentralizada, mas não percebo uma qualificação notável dessa produção. O que ocorre na maioria das vezes é que, apesar das cotas para o interior, a produção da capital é claramente mais fértil – no caso do teatro, fique claro. As perguntas que se colocam são:

a. Estaria a ação de descentralização de verbas contribuindo para um diálogo entre a pesquisa dos artistas e a ampliação do acesso à produção artística pela população? Como vem se dando esse diálogo?

b. A produção da capital (quase uma aberração quantitativa) teria se beneficiado no sentido da qualificação também da Lei de Fomento? Como entender a enorme quantidade e qualidade da produção paulistana?

c. Caso a resposta acima seja positiva, o que seria necessário para o ProAC ganhar a mesma potência da Lei de Fomento? E ainda, isso seria interessante ou apenas aumentaria uma demanda que nunca conseguirá se manter via financiamento público?

d. O edital público pode existir apenas para fomentar uma relação simples de consumo, propriamente dito, de arte? Ou seja, atender à população, dando acesso a entretenimento, e atender ao artista, no sentido de prepará-lo para adequar-se ao mercado (eu discordo desse princípio, mas há de pensar se não é o objetivo desse edital específico)?

Gostaria aqui de falar de outro edital do poder público, que me parece o mais fantástico de cuja comissão já fiz parte, que é o VAI (Programa para a Valorização de Iniciativas Culturais). Esse programa, de fato, modifica a realidade da produção juvenil e está intersticialmente ligado às dinâmicas da periferia da cidade de São Paulo. Nele a forma da ação é totalmente determinada pelo jovem artista e a ação é acompanhada com o suporte da SMC. A verba é pequena, mas as transformações, muito localizadas, são expressivas. Como se trata de um edital, digamos, “geracional”, não existe um vínculo perpétuo ao financiamento. Contudo, o objetivo de formação desses jovens pela ação do edital não é voltado à inserção no mercado, e sim ao reconhecimento e à ampliação dos vínculos desse jovem com a cidade.

Em relação à iniciativa privada, deve-se dizer que o edital do Rumos é incrível. Por sua liberdade, pela dedicação da comissão, pela abrangência e pela escuta às novas demandas da produção poética. Essa liberdade pode ser compreendida também como um entendimento consequente de uma ação de mecenato, já que a preocupação do instituto com o desenvolvimento da arte no país é patente e, contudo, não se necessita dialogar com demandas imediatistas. Ocorre que o edital do Rumos acaba por esbarrar num vácuo de política cultural pública que está posto e, inserido nesse contexto, tem por princípio (já que se constitui como uma ação consequente) ampliar sua discussão, por vezes, para questões além de sua competência. Como tivemos, até agora, uma edição, imagino que surgirão outros pontos de tensão e questionamento durante sua vigência. E esses pontos deverão ser acolhidos.

Aproveito para uma pequena observação. A tensão ocasionada pela implementação de políticas culturais é de todo bem-vinda. É graças a ela, e aos limites de atuação surgidos durante os processos gerados por sua atuação, que os horizontes se ampliam e novas práticas tomam espaço. A política cultural, no meu entender, deve gerar a tensão necessária para sua contínua reinvenção. O que vejo, muitas vezes, é o temor dessa reformulação e da criação de novos confrontos impedir a efetivação dos objetivos iniciais de uma política. Trata-se do apego ao “meio” em detrimento do “fim”. Heiner Müller, teatrólogo alemão, dizia que a tarefa da arte é tornar a realidade impossível. Acho que não seria ruim aplicarmos esse princípio desafiador também nas políticas culturais.

Muitos grupos, companhias e coletivos artísticos dependem de editais para sobreviver ou para manter suas atividades. Qual seria o modelo de investimento/apoio mais adequado para reverter essa situação? Existe? Comente.

Acredito que, em parte, respondi anteriormente. Não por uma proposição, mas pelo reconhecimento de um limite. Meu colega Chico Pelúcio apontou, em debate ocorrido no Itaú Cultural, para a compreensão do espaço da educação formal como um espaço de excelência na atuação da produção artística. Se de fato isso se efetivasse, imagino que não sobraria grupo de teatro, especificamente, sem espaço de atuação. A questão é que o entendimento da educação formal, muitas vezes, em lugar de se antepor a uma lógica mercadológica, trabalha para e por ela. E isso poderia ser um enorme retrocesso ao espaço já reconhecido pela atuação dos grupos. Teríamos de discutir mais a fundo também a educação formal. Acredito, e isto surge como discussão tanto em relação à Lei de Fomento como em relação ao VAI, que deveria existir uma maior variedade de editais – diferentes ações públicas, para diferentes modelos de produção artística. Não sou a favor de uma adesão indiscriminada à causa da sobrevivência dos artistas, mas também temo muito uma saída “pela tangente”, que se assemelha muito a outras saídas fáceis como resposta às políticas de distribuição de renda. Ou seja, que não se adote a balela do “peixe” e do “aprender a pescar” num cenário de absoluto abandono, tanto da população – que merece usufruir do discurso poético (como público e como criador) – quanto dos artistas que necessitam, sim, de um tempo e espaço que não é o mesmo tempo e espaço da mercadoria. No dia que tiver “RIO” para todo mundo, e não só para uns poucos, daí podemos começar a discutir questões de “pesca”.

Não estou dizendo que esse problema é de fácil solução e, como apontei, acho necessário ter muito cuidado com uma política cultural que privilegie apenas o criador e não o público. Devemos reconhecer os limites que se apresentam e “escová-los a contra pelo”, de modo a poder encontrar novas possibilidades de existência para a arte pública.

Você tem conhecimento de alguma ação da classe artística em relação à promoção de debates/discussões sobre os modelos atuais de editais ou novos modelos de financiamentos?

Sim. No caso da categoria teatral, a discussão sempre está posta. Durante toda a vida da Lei de Fomento, foram propostas ações de discussão junto às comissões. Também existem diversos fóruns, ligados ou não à Cooperativa Paulista de Teatro, em que o tema é recorrente e sempre se defende a continuidade de uma luta por diversificação dos editais (posso citar a conquista da criação do Prêmio Zé Renato, como exemplo) e o aumento de verbas (como no caso da luta histórica por 2% no orçamento da cultura). Além disso, o mesmo terreno minado, ditado pela urgência e necessidade de sobrevivência do teatro de grupo e de pesquisa e que originou o Movimento Arte Contra a Barbárie, também se renova. Um exemplo atual disso é a articulação do Movimento MOTIM, que alinha grupos independentes com sede na cidade de São Paulo e, assim como em outras capitais brasileiras, tem de lidar diariamente com a questão da especulação imobiliária.

(Foto: Ivson Miranda)

 
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Pena Schmidt

É autor, produtor musical e diretor do Centro Cultural São Paulo (CCSP), da Secretaria Municipal de Cultura. Ex-executivo, diretor, produtor de gravadoras multinacionais e presidente da Associação Brasileira de Música Independente (ABMI) de 2000 a 2004, foi ainda consultor da MTV e gerente da gravadora Trama antes de ser, de 2005 a 2012, superintendente do Auditório Ibirapuera – Oscar Niemeyer, casa de shows e instituto de música no Parque Ibirapuera, em São Paulo.

Observatório: Como você avalia os modelos atuais dos editais da produção cultural no Brasil? – formalização das atividades culturais x processo criativo.

Pena Schmidt: Olhando o edital como grande manifestação de política pública, percebe-se que é um facilitador das relações entre o processo criativo e o dinheiro público, mas muito pouco além disso. Por meio dos editais, o recurso público é distribuído de maneira democrática, republicana, transparente, com a obrigatória aplicação dos princípios da administração – legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Com eles, porém, não vieram critérios que buscam a qualidade da produção, a sustentabilidade mínima, a formação de plateias, o impulso para o mercado.

Os editais das empresas e dos órgãos públicos irrigaram os setores criativos nas direções mais demandadas pelos artistas, por seu prestígio e visibilidade. Desse modo, foi estabelecido um processo finalístico, financiador de obras, de CDs, de apresentações – em sua maior parte afastado e sem relação com a cadeia produtiva e com o público, que ficaram ausentes das formulações desses editais e só foram tomados como alvo de uma chamada contrapartida de distribuição gratuita de produtos culturais, ingressos, livros, discos.

A burocracia se impõe. Mecanismos foram desenvolvidos para atestar a veracidade da distribuição gratuita, como recibos de fornecedores de prateleiras, para acolher enorme produção, silenciosa. A cadeia produtiva termina premiada com novas profissões não produtivas, destinadas a exercer a gestão burocrática do edital, bem remunerados planilheiros, pareceristas e compiladores de tabelas de referência de valores de mercado; tabelas cada vez mais afinadas com o mercado fornecedor de insumos para editais, especialistas em fornecer documentação exigida; tabelas inflacionadas pela ausência de competitividade, enrijecidas pela ausência mesma de economia de mercado.

Tirando as distorções que seriam encontradas sempre, o dolo e a desonestidade, o edital segue a lei e todo o sistema se justifica, resultados são fiscalizados e a classe artística segue buscando sua participação. Um olhar crítico percebe sintomas alarmantes de dependência e anestesia da dependência, de vício propriamente. A busca por editais é considerada mais importante no processo artístico que a busca por conteúdo, afinal, não há sucesso nem fracasso como parte do edital, são efeitos colaterais. Sucesso é vencer um. Companhias se formam para participar de editais específicos e companhias se desfazem porque seus membros vão trabalhar com os ganhadores da verba. Artistas da música conseguem projeção nacional ao vencer editais com alto vetor publicitário, mas dificilmente criam sustentação em suas carreiras para o momento seguinte, pós-edital, e correm para disputar o próximo.

Ao se somar todo o dinheiro público que financia a produção artística fora do grande mercado –lá onde mora a diversidade e a criação mais original –, ao se somar o Sesc, as secretarias de cultura e a Lei Rouanet, o resultado é que, na prática, há uma grande interferência do Estado. Ele pode estar financiando quase toda atividade artística, uma enorme parte através dos editais. Há um mérito, isso é uma forma de vitória da arte sobre a barbárie. A diversidade é um direito e o Estado tem o dever de proteger os direitos. O mercado se afasta da diversidade, o Estado cuida da cultura. Mas se desenha uma probabilidade de que o sistema se fragilize cada vez mais ao se ver dependente de um único patrocinador, um único legitimador, um único sustento, vindo do Estado.

O efeito mais perverso é a extinção da economia da cultura, do meio ambiente, da ecologia, em que se poderiam desenvolver talentos a partir de um apoio granular, da venda de ingressos, produtos e obras de forma artesanal, no sentido de pequena indústria, que pode evoluir para a criação de reputação, melhores cachês e mais recursos investidos na produção, em prêmios, em reconhecimento público e finalmente na sustentabilidade para viver do que se faz, até com apoio e dinheiro público como parte do processo, apenas parte do processo.

Muitos grupos, companhias e coletivos artísticos dependem de editais para sobreviver ou para manter suas atividades. Qual seria o modelo de investimento/apoio mais adequado para reverter essa situação? Existe? Comente.

Editais bem formulados são imprescindíveis e já começam a aparecer as tentativas de evolução: os editais do ProAc (Programa de Ação Cultural) já se colocam nessa direção, alguns editais na Bahia, alguns editais dentro da SMC (Secretaria Municipal de Cultura) e do CCSP (Centro Cultural São Paulo). Muitos desses editais já praticam uma política de “recortar na entrada”, especificando condições para participação, trazendo para a disputa menos candidatos, mais qualificados. Democráticos para todos os que estejam aptos a solicitar. Por exemplo, deveríamos ter editais para iniciantes, para pesquisa pura, para sustentar os pensadores e para os amadores. Mas separados dos profissionais qualificados, para que a partilha seja justa.

Não há como escapar do formato universalizado, o concurso, a disputa. Ou talvez haja, mas enquanto não se materializa alternativa vamos de editais. Sem deixar, no entanto, de buscar a qualidade da expressão, de incluir a aferição da consciência do público, sua crítica, e finalmente de apontar a existência do processo artístico imerso numa economia, não necessariamente em busca de lucro, mas que saiba prover recursos para a permanência do espetáculo em cartaz.

Mais editais para o meio do processo, para a infraestrutura, para os palcos, para as casas de música, para o cinema de bairro, para o cineclube. Editais para teatros e centros culturais autônomos, para os bares que apresentam saraus, para os coletivos que organizam e realizam ações, para as rádios comunitárias e para os blogs, revistas e jornais de arte. Para a compra de equipamentos que serão usados por muitos artistas, para a montagem de softwares que beneficiam comunidades inteiras, como o Toque no Brasil (http://tnb.art.br). Editais para fomentar quem já investe na arte como trabalho: escolas de música, teatro e dança, cooperativas, associações profissionais, feiras, seminários, workshops, cursos livres, hackatons e festivais, especialmente os festivais, um potente motor social. Irrigar os campos produtivos. Editais para reconhecer o valor e a importância dos que procuram e encontram maneiras de fazer arte sem dinheiro público, sustentados por seu público, porque eles são exemplares e não faltam modelos – basicamente excluídos dos editais por escolha. Editais que premiem as escolhas da crítica, de seus pares, da qualidade progressista e por mérito, por avanços evidentes. Os que merecem.

Dinheiro permanente para instituições que têm permanência, em vários graus, de subsídios fiscais à dotação para fundos de rendimento. Ciclos mais longos, de três ou cinco anos, para construções mais complexas, para processos que interagem com o mundo e pedem antecedência de dois anos. Compromissos de longo prazo são típicos de projetos de alta qualidade, reconhecida pelo comprador internacional. E por aí vai.

Você tem conhecimento de alguma ação da classe artística em relação à promoção de debates/discussões sobre os modelos atuais de editais ou novos modelos de financiamentos?

Existem algumas conversas sobre música em São Paulo que podem levar a um fomento não tão fixado em editais finalistas ou difusão cultural, a compra de espetáculos. É um longo processo. A comunidade cultural de Minas, especialmente em Belo Horizonte, já tem longa prática de debater, propor e gerir formatos de fomento, incluir editais de passagens, para circulação de artistas, mas neste momento estão ameaçados de corte.

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