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Seu Cândido: consciência, emoção e sonho

“Sem miolo o boi não dança”, diz o dito que virou slogan de um já tradicional encontro desses bri...

Publicado em 16/10/2017

Atualizado às 18:59 de 09/02/2023

Por Zema Ribeiro

Por Zema Ribeiro

“Sem miolo o boi não dança”, diz o dito que virou slogan de um já tradicional encontro desses brincantes que dão sustentação ao bumba meu boi, fazendo-o girar pelos terreiros do Maranhão. O que dizer então daquele que fabrica a carcaça que se erguerá sobre a cabeça do miolo?

Cândido Ramos Dias fabrica cerca de 15 carcaças de bumba meu boi por ano | foto: Francisco Colombo

Em uma tarde abafadiça, típica de São Luís do Maranhão, encontramos o senhor Cândido Ramos Dias em sua casa, na Rua do Ribeirão, 75, no bairro da Vila Palmeira. Ele tem 66 anos e há 38 trabalha no artesanato de carcaças de bumba meu boi. Nasceu em Cumbique, no Porto do Mocajituba, comunidade hoje pertencente ao município de Raposa, no interior da Ilha de São Luís.

Seu Cândido estudou apenas até o “2o ano do primário”. Durante muito tempo trabalhou como armador, com “ferragem, viaduto, ponte, prédio”. Com essa profissão chegou a atuar na Venezuela e no Paraguai. Hoje não trabalha mais com isso, embora não tenha se aposentado. Ele se resigna: “Minha idade é essa, mas eu fui criado com uma irmã, e essa minha irmã tirou meus documentos errados; nos meus documentos está constando eu com 53 anos. Aí não tem condições”.

Pergunto como ele aprendeu o ofício. “Isso vem passando de geração pra geração. Papai [já falecido] fazia e eu ficava de lado olhando.” Ele tem quatro filhos. “Um faz tudo, borda, conserta sapato”, revela quando quero saber se a genealogia artística tem continuidade. Negro, forte, seu Cândido esbanja simpatia, e logo se juntam a ele sua esposa e um vizinho, que vez por outra o ajuda no ofício. Ele vive há quase 50 anos com Rachel Rodrigues Rayol, “escreva quem quiser, leia quem souber”, ela mesma emenda, enfatizando que seu nome é grafado com ch. Paraense de Bragança, Rachel tem 81 anos.

Seu Cândido demonstra o uso de um instrumento que ele mesmo fabrica, emitindo o som grave do tambor-onça, que custa a partir de 60 reais. Uma carcaça custa a partir de 200. “Esse ateliê nós nunca tivemos condições de fazer. Agora a gente recebeu o cheque [do programa Cheque Minha Casa, destinado à reforma de moradias de famílias de baixa renda] do governo do estado, recebeu a primeira parcela, falta receber a segunda. Queríamos fazer o ateliê, mas [a regra do programa] diz que não, não pode, tem que fazer a casa da morada, aí nós não fizemos”, ele conta.

Antigamente, além de armar as carcaças, seu Cândido bordava o couro do bumba meu boi, o que já não faz “por causa da vista”. “Geralmente eu trabalho o ano todo. Numa época de São João é difícil, numa hora dessa assim, não ter quatro, cinco carros aqui parados. Quando não tem encomenda eu faço e coloco aqui, mas tem encomenda. O que fica mais despendioso, pra mim, é o buriti [palmeira de cuja madeira são feitas as carcaças]”, explica. “Eu compro no Rio dos Cachorros [comunidade da área Itaqui-Bacanga, no interior de São Luís]. O chifre do boi, esse chifre que vem, vem assim [exibe um par de chifres de verdade], custa 30 reais o par. Aqui eu vou fazer o benefício nele. Vai ficar tudo polidinho, bonitinho.”

Pergunto-lhe qual é o número médio de carcaças feitas neste ano. “Eu fiz uma faixa de umas 15 carcaças. Vou começar uma amanhã.” Ele leva, normalmente, 12 dias para fazer uma. “Tá vendo essa tora aí? Eu serro pra fazer isto aqui”, aponta um pedaço de madeira maciça e depois uma cabeça de bumba meu boi. Em seguida cata três agendas, nas quais anota os nomes dos grupos de bumba meu boi ou de seus representantes que encomendam trabalhos. Ali estão marcados, entre outros nomes, os dos bois de Tajaçuaba, Apolônio, Miritiua, Pindoba, Mimo de São João, Estrela Maior, Penalva, Maiobão, Mata da Vila Dom Luís e Sítio do Apicum.

Dedé, um vizinho, demonstra o toque de um pandeirão também fabricado por seu Cândido. Pergunto ao artesão se ele ainda gosta de brincar em grupos de bumba meu boi no período junino. “Não estou mais brincando por causa da idade, mas eu gosto. Na Pindoba foram 20 anos. Lá comecei como Nego Chico. Depois passei para caboclo de fita”, enumera os personagens do folguedo. “Com a saída de Adelino, meu primo, que cantava o boi de lá, eu me retirei e ajudei a fundar o Boi de Miritiua, também sotaque da ilha. É meu sotaque preferido. Meu boi preferido é o da Pindoba”, confessa.

Não brinca, mas ainda vai aos arraiais prestigiar? “Eu vou. Sou devoto do santo, São João.” Antes de descer a rampa pela qual se chega à casa – e ao ateliê, lateralmente – há uma minúscula barraca, onde se enfileiram garrafas de cachaça, vodca e conhaque, e onde se lê Quiosque dos Boieiros. O senhor vende uma pinga? “De vez em quando”, ri. E ainda toma uma pinga? “Eu gosto de uma vodca”, confessa qual um garoto apanhado em uma travessura. Qual é o melhor São João do mundo? “Pra mim é aqui em São Luís”, afirma com convicção.

Seu Cândido revela que hoje as carcaças são sua principal fonte de renda. “O quiosque é só pra completar, pra não ficar parado de tudo. Tem uma hora que fracassa de um lado, a gente tá no outro. A gente vai escapando. Tem hora que pende prum lado, pende pro outro”, conta, sem tom lamentoso na voz.

Ele tem consciência da importância de sua arte. “Eu me sinto feliz. Depois que passei a trabalhar diretamente com isso, sou bem reconhecido na ilha. Aonde eu chego o pessoal me reconhece. Eu fico de fora, na hora em que os donos das brincadeiras me veem me chamam no microfone, me botam numa mesa, que meu lugar não é aquele, é junto deles. Tem muitos aí que não podem nem ir num evento”, alfineta sem citar nomes, mas provavelmente referindo-se à classe política brasileira.

“Eu tenho boi feito aqui que tá no Uruguai, na Argentina”, revela, orgulhoso. Indago-lhe qual é a sensação de ver uma carcaça feita por ele rodando pelos terreiros da cidade. “Ah, é muito lindo! Emociona. A gente fica emocionado”, diz. “Teve um ano em que eu chorei no Parque [Folclórico da Vila Palmeira, um dos mais tradicionais arraiais da capital maranhense] quando peguei a carcaça e o couro do boi bordado, do Boi do Iguaíba.”

Posando para as últimas fotos, ele revela: “Meu sonho é levantar aqui, fazer um ateliê bonito e chamar uma rapaziada pra ensinar, pra eles mais tarde terem uma profissão. Sair de rua, botar uma rapaziadinha nova pra aprender a fazer a carcaça, fazer um pandeiro, fazer um tambor-onça, uma roupa de pena dessas. Quando eu for embora pro andar de cima, tem quem fique tomando conta pra cultura não morrer. É muito importante a cultura viva. A gente, sem a cultura, não tem nada. Uma brincadeira, um lazer, uma bola, tudo é cultura! Você aprendendo qualquer profissão, em cima duma cultura, tira um menino de rua. Ele aprendendo, mais tarde, vai dizer: 'Foi fulano quem me ensinou', então meu nome vai mais longe ainda. Pra mim a cultura é viva!”.

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