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Uma prosa com Bráulio Tavares

Bráulio Tavares é escritor e compositor. Publicou mais de 20 livros, entre romance, conto, ensaio, poesia e literatura de cordel. Seus...

Publicado em 02/12/2014

Atualizado às 21:02 de 02/08/2018

Bráulio Tavares é escritor e compositor. Publicou mais de 20 livros, entre romance, conto, ensaio, poesia e literatura de cordel. Seus títulos mais recentes são ABC de Ariano Suassuna (perfil biográfico, José Olympio, Rio, 2007), A Pulp Fiction de Guimarães Rosa (ensaio, Marca de Fantasia, João Pessoa, 2008) e Contos Obscuros de Edgar Allan Poe (antologia, Casa da Palavra, Rio de Janeiro, 2010). Além disso, ministra a disciplina a cultura dos sertões nas Semanas de Gestão e Políticas Culturais realizadas pelo Observatório Itaú Cultural em cidades do interior do Brasil.

Na entrevista a seguir, Tavares aborda temas como o sertanejo e a “sertanização das cidades”, políticas de incentivo à leitura, ficção científica e games.

Observatório: Fale sobre a “cultura dos sertões”, tema abordado em suas aulas nas Semanas de Gestão e Políticas Culturais realizadas pelo Observatório Itaú Cultural. O que é o sertanejo em sua origem e quais as mudanças sofridas por ele desde meados do século XX até os dias atuais quando, em vez da urbanização do sertão, “o mar virou sertão”, ou seja, tivemos a “sertanização das cidades”, com as elites urbanas encurraladas por cinturões de pobreza?

Um dos sentidos da palavra sertanejo designa os descendentes da colonização interiorana do Brasil que subiram, seguindo o rumo do Rio São Francisco, até o Nordeste.  Foi uma civilização voltada para agricultura e pecuária, com história e valores bem distintos dos da colonização litorânea, baseada na navegação pelos portos das capitais. A cultura sertaneja é basicamente conservadora, religiosa, hierárquica, ética, austera, muitas vezes puritana, atribuindo grande peso às relações familiares e de amizade.

No século XX essa civilização começou a ter embates e crises de encontro à mentalidade urbana, que é mais flexível, mais aberta ao novo, menos hierárquica, na qual relações de amizade e de trabalho são feitas e desfeitas sem muita cerimônia. Na qual é mais importante o que está acontecendo naquele momento do que o que vem acontecendo há várias gerações. Há um senso maior de aventura – o que, para alguns, quer dizer insegurança – e pode haver uma liberdade individual voltada para o hedonismo, o lazer, o consumo.

Observatório: No contexto sociocultural atual, qual sua opinião sobre as políticas culturais que vêm sendo desenvolvidas no Brasil nos últimos dez anos? Acredita que estamos conseguindo valorizar e fomentar as culturas sertanejas e, ao mesmo tempo, permitir que esses sertanejos, que formam as periferias dos grandes centros urbanos, usufruam dos seus direitos culturais? Quais os principais desafios a ser enfrentados?

Qualquer política cultural integradora é positiva na medida em que consegue amenizar o choque entre essas duas mentalidades, principalmente no caso dos migrantes, que vêm do sertão para as cidades numa situação extremamente frágil, do ponto de vista econômico e psicológico.

Observatório: Paralelamente às pesquisas sobre o sertanejo, você também desenvolve análises sobre as novas tecnologias e seu impacto na sociedade e cultura contemporâneas, e tece críticas à produtividade digital da literatura e das artes – diz que o dia teria de ter seis horas adicionais para conseguirmos fruir esses conteúdos. Fale um pouco da sua relação com o ambiente on-line, as consequências da expansão digital para o campo cultural e o impacto da produção cultural exponencial na fruição.

Na nova cultura digital, em poucos anos uma quantidade absurda de informação (livros, filmes, músicas, jornais, revistas etc.) foi posta à nossa disposição por um custo mínimo. Hoje, pela manhã, eu posso ler os principais jornais do mundo quando acontece um fato importante. A obra completa dos clássicos, grande parte da obra dos contemporâneos, a obra imprevisível de milhões de anônimos.

O dia nunca terá mais de 24 horas. Nosso tempo biológico é curto e finito, e parece até uma crueldade você ter em poucos anos o seu horizonte de leitura e informação multiplicado um milhão de vezes sem aumento do tempo correspondente.

A moeda mais preciosa neste mundo novo é o tempo.  Cada hora gasta lendo bobagens é uma hora que poderia ter sido dedicada a coisas que você realmente gosta e que pode acessar. As próximas décadas deverão ter uma interessante adaptação de conceitos para que as pessoas organizem melhor seu tempo de leitura (por leitura entendo aqui a fruição de tudo: músicas, filmes etc.). Essa é uma questão ainda mais interessante na medida em que percebemos que a produção de lixo cultural também vai crescer exponencialmente.

Observatório: Sendo um profissional da literatura, como você vê os programas de incentivo à leitura?  Em que medida programas como Leitura Viva influenciam a formação de leitores?

Tudo que leve o brasileiro a ler mais é positivo, e note-se que incluo aí a leitura digital, via web etc. Não é apenas o livro. Dizem que o computador (tablets etc.) nunca vai estar acessível a todos os brasileiros, mas o mesmo vale para o livro e nem por isso desdenhamos o livro. O fato é que o simples ato de entender a palavra escrita, ser capaz de decifrá-la e gerar vívidos quadros mentais produz um tipo de cultura mais rico, mais imaginativo, mais encorpado.

Se tudo que diz respeito à língua, à autoexpressão, ao modo de falar do povo com quem você vive for ensinado a partir da música ou da narrativa (oral ou escrita), o processo educacional se torna, de certo modo, mais real. Tudo que fizer as pessoas se aproximarem do texto é positivo. Tem gente que só entende o que é falado, e tem gente que só entende se estiver escrito.

Observatório: Em uma entrevista, você afirma que lê e aprecia a ficção científica (FC) a mais de 50 anos. Além disso, em 1992 publicou o guia O que É Ficção Científica?. Fale sobre seu interesse nesse assunto e suas pesquisas nessa área.

São leituras de infância que depois, na idade adulta, foram retomadas com olhos mais críticos.  Houve uma redescoberta. A FC fala sobre a totalidade do presente, ela inclui todas as virtualidades de futuro que já se fazem sentir hoje.

Gosto de pesquisar as origens dessa literatura entre nós. Acabei redescobrindo textos raros como A Liga dos Planetas, de Albino Coutinho, de 1922, o primeiro romance interplanetário brasileiro (até alguém descobrir um que lhe seja anterior, é claro). Republiquei (na minha antologia Páginas do Futuro – Contos Brasileiros de Ficção Científica, Casa da Palavra, 2011) “O Fim do Mundo”, de Joaquim Manuel de Macedo, de 1857.  Sou colaborador de projetos como The Encyclopedia of Science Fiction  e The Encyclopedia of Fantasy, em que escrevo sobre o Brasil, juntamente com outros colegas, como Roberto de Sousa Causo, Elizabeth M. Ginway e Rachel Haywood-Ferreira. Todos esses, aliás, escreveram livros abordando a FC brasileira.

Pegou muito, aqui no Brasil, grudou mesmo, como diz o pessoal, a antiga discussão contrapondo a literatura mainstream (a corrente principal da literatura local) e a literatura de gênero, que outros podem chamar de literatura de fórmula. Penso que podíamos usar menos esses termos, e pensar numa literatura da imaginação, cuja existência não cancela a da literatura de análise, a literatura de tese, a literatura de experimentação de linguagem e tudo o mais.  Pode-se inclusive fazer misturas variadas.

Uma crítica frequente à FC é de que é “coisa de americano” ou “coisa de garoto”. É coisa de americano e de garoto – como o rock também é, e existe vírus mais adaptativo do que o vírus do rock? O da FC é a mesma coisa. Não tem nada a ver com este ou aquele país ou século.  É uma descarga coletiva ao longo da medula temporal da humanidade, que às vezes gera revoluções, gera navegações, gera renascimentos, gera viagens extraordinárias.

Observatório: Ainda há resistência em considerar os games uma forma de expressão artística, uma resistência similar à enfrentada pelo cinema na época de seu surgimento. Nas suas pesquisas sobre FC também se tangencia a questão dos games na contemporaneidade. Quais os critérios que ainda precisam ser estabelecidos para que se possa identificar uma obra de arte em um game?

Já escrevi alguns artigos profetizando que os vídeo games serão para o século XXI o que o cinema foi para o século XX. Uma forma de arte com o espírito do século. Um não toma o lugar do outro. Acho que sempre iremos querer obras de arte prontas e acabadas, para ser apenas contempladas através de algo como um vidro. Mas vamos querer também um vidro que sejamos capaz de atravessar, queremos entrar no jogo, queremos como deuses sentir o que sentem os mortais. Aliás, isso pode render um bom artigo.

Já escrevi vários textos imaginando que em, sei lá, 2035 existirá um game sobre Macondo [a cidade em que se passa Cem Anos de Solidão, de Gabriel Garcia Márquez], em 2033 existirá um game sobre os labirintos de Jorge Luís Borges, em 2055 existirá um game chamado Grande Sertão, reproduzindo as lutas e tiroteios e revelações de Riobaldo, cidade por cidade, córrego por córrego via Google Earth e GPS projetando o background, em imagem corrigida ou em tempo real.  Pensando bem, qualquer autor que tenha uma obra narrativa numerosa e variada dá um game sensacional.  Desde Ponson du Terrail até Walter Gibson. Imagine um game sobre Fellini, um game sobre Cortázar.

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