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Walter Zanini: vanguardas, desmaterialização, tecnologias na arte

Professor que organizou a pesquisa inédita de Walter Zanini conta sobre o processo de produção do livro lançado em setembro

Publicado em 09/10/2018

Atualizado às 18:17 de 09/10/2018

por Eduardo de Jesus

A hipótese do professor e historiador Walter Zanini (1935-2013) que guia a pesquisa agora publicada em Walter Zanini: Vanguardas, Desmaterialização, Tecnologias na Arte (WMF, 2018) toma a centralidade dos processos de desmaterialização do objeto artístico iniciado entre as décadas de 1950 e 1960 na configuração da arte contemporânea.

No entanto, ao assumir essa direção, Zanini – também crítico de arte e curador – trama novas abordagens ao reconhecer como um dos vetores responsáveis pelos processos de desmaterialização a dinâmica relação entre produção artística e desenvolvimentos tecnológicos. Partindo de antecedentes do século XIX, como outros destacados historiadores da arte, no campo da arquitetura e do design em movimentos como art nouveau e Deustscher Werbunk, Zanini nos conduz para uma espécie de revisão na história da arte, incluindo a tecnologia, em seus diversos desdobramentos, como um potente acionador de novos procedimentos e estratégias artísticas. Fotografia, cinema, vídeo e tecnologia digitais – cada um a seu modo –, segundo o estudioso, nos conduziram ao longo do século XX para o cenário atual da arte, que se caracteriza por uma diversidade de formas e processos de produção e circulação calcados na desmaterialização iniciada nas décadas anteriores.

Foram recebidos dois enormes volumes com o material original impresso, com cerca de 850 páginas, mais uma primeira versão da pesquisa também impressa, bastante reduzida, um envelope repleto com notas bibliográficas escritas à mão, um CD com outros arquivos digitais ligados à pesquisa e o memorial impresso de Zanini para tornar-se professor titular da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP) em 1992.

Cada uma dessas fontes se entrelaçava de muitas formas à pesquisa, que se estendia ainda para textos publicados anteriormente em revistas acadêmicas e no livro Walter Zanini, Escrituras Críticas (Annablume, 2013), organizado por Cristina Freire e um verdadeiro guia do pensamento de Zanini. Além disso, entre os documentos digitais havia um relatório de pesquisa ano a ano, produzido em 2005 para o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), dando referências detalhadas sobre o desenvolvimento da pesquisa entre 1997 e 2005.

Nos dois imensos volumes impressos estava a maior parte do texto. Algumas passagens se encontravam ainda muito abertas e lacunares, mas traziam o gesto inicial de estruturação, apesar das inúmeras notas e comentários de Zanini sinalizando suas dúvidas, inclusive em relação à ordem dos capítulos.

Havia ainda esse material mais resumido que trazia outra estrutura, mais enxuta, com cerca de 130 páginas aproximadamente, detalhando bem as referências bibliográficas, chave central para compor o livro, além de muitas anotações à mão. Entre os materiais constava também o envelope com muitas notas que foram centrais para resolver as diversas pendências da enorme bibliografia manejada pelo historiador e que possibilitaram acertar e até mesmo recorrer a algumas dessas fontes bibliográficas para restituir partes do texto, assim como detalhar mais as referências e desenvolver notas explicativas dos modos de constituição da reflexão.

Logo de início foi fácil perceber que muitas partes estavam duplicadas em alguns capítulos compostos com fragmentos de outros, sem falar dos textos integrantes da pesquisa que já haviam sido publicados em versões mais atualizadas.

Capítulos temáticos

Elemento central no desenvolvimento do livro foi o relatório de atividades que Zanini elaborou para prestar contas da evolução da pesquisa ao CNPq. Era fácil perceber, por esse relatório e também pelo texto da pesquisa, que tudo estava em movimento. O estudioso, como de costume em sua trajetória, seguia extremamente atento ao desenvolvimento das dinâmicas entre arte e tecnologia, tanto em relação a obras, artistas e exposições quanto nas articulações teóricas e conceituais. 

Duas situações podem exemplificar esse gesto intrínseco a um pesquisador experiente como Zanini. A primeira era ligada à arte cinética: desmembrada em diversas passagens ao longo da pesquisa, aos poucos ganhou mais importância, levando o historiador a retirar fragmentos e a reordená-los em um capítulo exclusivo, que ainda estava bem lacunar e repleto de notas apontando novas revisões bibliográficas que surgiam no período. Muitas das partes que compõem esse capítulo se repetiam em diversos outros. Toda essa reformulação ocorreu entre 1999 e 2000, como nos informa o relatório de atividades ano a ano. Nesse período, os processos de interatividade acionados pelas tecnologias digitais que começavam a se inserir mais intensamente na produção artística parecem ter renovado o interesse nos aspectos históricos da produção cinética, certamente levando Zanini a expressar esse interesse e essa atenção construindo um capítulo específico.

Da mesma forma, bastante expressivo foi o desenvolvimento do capítulo dedicado ao cinema experimental, que aparecia como “Bloco especial: aspectos da contribuição do cinema de artista e experimental” e figurava de forma ainda lacunar, logo depois que ele abordava as vanguardas históricas e antes de entrar no tema do vídeo.

Essa inserção, ainda muito aberta e repleta de notas com novas referências bibliográficas a ser pesquisadas, surgiu no período de 2000 a 2001, como apontava o relatório de atividades. Nesse intervalo, as reflexões teóricas ligadas à imagem eletrônica começaram a buscar suas origens no cinema experimental, traço importante que, de alguma forma, expandiu as ideias fundadoras do período. Essas ideias, no entanto, ao ressaltarem as especificidades do vídeo, deixavam de lado uma significativa parte de suas dimensões históricas vindas do cinema experimental, do underground norte-americano e do cinema de artista.

Sobre o valor das notas

Além dessas situações, ao longo do texto inúmeras notas indicavam revisão ou apontavam desdobramentos e aproximações com indicações de bibliografia, demonstrando a vitalidade e o vigor de Zanini na investigação. As inovadoras experiências curatoriais no Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP e a prática em sala de aula, assim como o rigor nas pesquisas bibliográficas e as visitas regulares a acervos, artistas e exposições, certamente formaram uma marca importante e inovadora nos métodos de investigação de Zanini. Em muitas passagens são abertos diálogos teóricos com importantes curadores e historiadores da arte do século XX, como Pontus Hultén, Germano Celan e Enrico Crispolti.

As notas mais importantes que pontuavam o manuscrito do estudioso foram mantidas, sobretudo aquelas que apontavam revisões bibliográficas e novos desdobramentos, para mostrar as questões que ainda seriam colocadas em diálogo na pesquisa. Essas notas figuram no livro especialmente quando o conjunto de documentos acessados permitiu inferir com mais segurança as camadas de sentido do texto. Além disso, essa estratégia permitiu, de alguma forma, garantir que o leitor entrasse em contato com a dimensão processual do trabalho de Zanini. Tudo isso demonstra que a pesquisa estava em processo, que se tratava de um documento de trabalho vivo e ainda com muitas lacunas a ser resolvidas e partes a ser desenvolvidas.

A articulação da pesquisa de Zanini remonta seus métodos teóricos que podem ser vistos em outras de suas obras, sobretudo certo traço enciclopedista combinado com abordagens densas e ricamente detalhadas, presentes tanto nos dois volumes de História Geral da Arte no Brasil (IMS, 1983) quanto em A Arte no Brasil nas Décadas de 30 e 40: Grupo Santa Helena (Edusp, 1991), que também atravessam vastos períodos históricos.

O empreendimento de Zanini, como sinaliza a apresentação do livro, trata de investigar as chamadas “epistemologias do efêmero”, expressão por ele cunhada ao comentar a produção artística da década de 1950. Nesse sentido, o cerne da pesquisa está no capítulo 3 – “O impulso para o imaterial” –, no qual a investigação do processo de desmaterialização do objeto artístico, via reflexões de Lucy Lippard, permitiu ao estudioso revisitar artistas, grupos, exposições e movimentos com pouca visibilidade nas versões mais tradicionais da história da arte: Grupo Gutai, Grupo Cobra, Letrismo, Bauhaus Imaginista, coletivos como Judson Dance Group, com suas relações entre dança, performance e tecnologia nas obras de Rauschenberg, nas coreografias e nos filmes de Yvonne Rainer e Trisha Brown, assim como o grupo Fluxus (lembrando que Zanini foi o responsável pela importante presença do Fluxus em nossos contextos na 17a Bienal de Arte de São Paulo, em 1983), entre muitos outros presentes nesse capítulo.

A abrangência e a densidade das apresentações, descrições e reflexões em torno da produção desses artistas por um lado reforçam o gesto mais enciclopédico que caracteriza certa parte da produção do historiador e por outro demonstram seu trânsito fácil pela complexidade que caracterizou a cena desse período, fazendo abordagens transversais que conseguiam perceber as fronteiras tênues entre as manifestações artísticas.

Arte brasileira e resistência

Depois dessa visão mais geral do cerne da pesquisa de Zanini, é importante destacar algumas passagens e aproximações com a produção brasileira. De modo geral, desde o início da pesquisa ele sempre tratou de colocar em cena a produção e os artistas brasileiros, no entanto posteriormente dedicou-lhes muito mais espaço, principalmente em relação ao vídeo, desenhando uma importante e inovadora disposição histórica de artistas brasileiros que trabalharam com esse formato como meio de expressão.

Nesse capítulo, o tópico “Bienal, tecnologia, videoarte” é surpreendente pelo grau de ineditismo, revelando aspectos pouco conhecidos da historiografia brasileira em torno da Bienal de Arte de São Paulo. Zanini investigou os antecedentes da entrada conturbada e já bastante conhecida do vídeo e da videoarte no contexto da 12a edição do evento, em 1973. A história começa com os encontros internacionais oferecidos pela bienal para promover alterações em sua estrutura em 1969 e 1971, procurando absorver as inúmeras mudanças da produção artística desse período, em particular o domínio das relações entre arte e tecnologia.

Pierre Restany (França, 1930-2003) entra em cena, a convite de Matarazzo, numa tentativa de trazer parte de uma exposição que o francês havia realizado na Suécia, reunindo artistas envolvidos com plataformas de comunicação e tecnologias típicas daquele período. No entanto, depois da censura de obras brasileiras para a VI Bienal de Jovens de Paris, em 1969, Restany se afastou do trabalho e organizou formas de resistência que serviram de estopim para o longo boicote à bienal em discordância com a ditadura militar que imperava no Brasil. A tarefa de renovação, posteriormente, em novo convite de Matarazzo, se encaminhou para Villem Flusser (Praga, 1920-1991), que por uma série de questões institucionais deixou o cargo, sem conseguir fechar uma exposição com foco em obras com o uso de tecnologia.

A riqueza de detalhes e o modo como se entrelaçam o desejo de renovação das estruturas da bienal e suas questões históricas, bem como seus aspectos institucionais e políticos, fazem desse capítulo um dos destaques do livro, lançando luz sobre aspectos ainda pouco conhecidos da história da bienal e principalmente sobre a relação entre arte e tecnologia.

Por último, é importante destacar a inclusão do texto “Primeiros tempos da arte/tecnologia no Brasil”, publicado em A Arte do Século XXI: a Humanização das Tecnologias, organizado por Diana Domingues (Edusp, 2009). O texto traz reflexões e comentários de Zanini a respeito do desenvolvimento das relações entre arte e tecnologia, e poderia abordar nesse recorte sua atuação nas bienais de 1981 e 1983.

Uma curiosidade é que Zanini não dedicou uma linha sequer às duas edições do evento nas quais foi curador. A inclusão desse capítulo já publicado completaria, de certa forma, a história da inserção mais intensa de obras ligadas ao domínio tecnológico na bienal, já que ambas as edições foram centrais para a renovação das práticas curatoriais, trazendo obras desenvolvidas em diversos suportes com estratégias que ampliaram os limites e as potências da arte.

 


Eduardo de Jesus (Belo Horizonte, 1967) é professor titular do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Graduado [pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas)] e mestre (pela UFMG) em comunicação social, com doutorado em artes [pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP)]. Publicou "The reterritorializations of urban space in Brazilian cinema" no livro Space and Subjectivity in Contemporary Brazilian Cinema (Palgrave Macmillan, 2017). Além da pesquisa de Walter Zanini, organizou o livro Estratégias da Arte em uma Era de Catástrofes (Cobogó, 2017), com reflexões de Maria Angélica Mellendi. Desenvolveu a curadoria de eventos como: FIF – Festival Internacional de Fotografia de Belo Horizonte (2013, 2015 e 2017), Esses Espaços (Belo Horizonte, 2010), Densidade Local (México, 2008) e Festival Internacional de Arte Contemporânea Videobrasil (São Paulo, de 2001 a 2013).

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