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Artistas negros | Minha camisa de 1 dólar e meus pés sujos: a arte de conduta de Paulo Nazareth

Paulo foi de Minas Gerais aos Estados Unidos a pé, de ônibus ou de carona, acumulando o pó das Américas nos pés para lavá-los no Rio Hudson. Com isso, criou a série Notícias de América

Publicado em 07/05/2021

Atualizado às 17:07 de 16/08/2022

Artistas negros destaca produções de artistas presentes na coleção de obras de arte do Itaú Cultural (IC). A cada edição da série, uma conversa sobre trabalhos com temáticas e estilos variados, buscando ampliar horizontes. Siga aqui pelo site ou no nosso perfil no Instagram.

Paulo Nazareth
série Notícias da América
Imagem: Arquivo do Artista/Itaú Cultural
Acervo Banco Itaú

por Duanne Ribeiro

No final da viagem de Paulo Nazareth, a América foi informada sobre as Américas. A mensagem consistia na poeira acumulada em quase sete meses de andanças pelo continente – do conjunto habitacional Palmital, em Santa Luzia, cidade da região metropolitana de Belo Horizonte (MG), até Nova York, nos Estados Unidos, onde lavou as solas dos pés pesadas de experiência no Rio Hudson.

Veja também:
>> Todos os textos, nas várias curadorias, sobre obras do acervo do Itaú Cultural

Talvez já nesse ponto, sem falar mais nada, essa história ressoe em nós, brasileiros, de maneira muito significativa. Os Estados Unidos detêm "primazia" política no globo ­– uma eleição nacional, por exemplo, põe em jogo todo o mundo – e influenciam particularmente o continente e o Brasil. No campo do soft power, ou “poder brando”, essa potência não é menor: sua cultura tem impactado, por mais de sete décadas, os costumes e a produção artística internacional. Por tudo isso, o país se constitui como figura de hostilidade e desejo, de ameaça e cobiça.

Nesse sentido, para além do american dream propriamente dito – o ideal de direitos e ascensão social que marca a autovisão dos cidadãos daquele território e orienta polêmicas entre eles –, há o "sonho americano" de tantos. Muitos deles nossos compatriotas, que querem voar, como a Iracema de Chico Buarque, para a América, permitidos ou não pela lei. Com efeito, em 2021, a detenção de imigrantes ilegais pela patrulha fronteiriça dos Estados Unidos chegou ao maior número mensal em 15 anos: 171 mil pessoas. O país pode ser a nossa Roma, mas nem todos os caminhos levam para lá.

Na epopeia de Paulo, o eixo dessa relação centro-periferia está invertido: o centro é o que menos importa; a passagem pelas periferias é o decisivo. "Não podia pegar um avião no Brasil e descer em Nova York, como se não existisse nada entre um ponto e outro", disse. Era necessário "impregnar-se" de América Latina. Assim, caminhou, andou de ônibus ou pegou carona de março a outubro de 2011, pisando em 15 países americanos até chegar às margens do Rio Hudson. Segundo a Folha, disse "ter caminhado 700 km e emagrecido sete quilos". O trajeto foi a ocasião da produção dos panfletos, das fotografias e das performances da obra múltipla Notícias de América.

A viagem e esse trabalho criativo foram registrados neste blog, em que uma imagem de banana repleta de inscrições sugere que ir aos Estados Unidos foi a chance de entender que "é preciso aprender a história da Guatemala". Nele também lemos uma das propostas centrais de Notícias de América: "Que toda a poeira do caminho fique em meus pés". Isso para "levar poeira de aqui para lá", como intitula o artista um vídeo posterior. Trata-se, como indicamos, de algo mais que uma metáfora: de fato, Paulo não teria lavado os pés durante todo o percurso. Quando se livrou do encardido nas águas do Hudson, descreveu: "foi como arrancar uma pele. A poeira já fazia parte do meu pé".

Não é como se um símbolo fosse dissolvido na rede fluvial da metrópole? Essa poeira contava todo um conjunto de vivências, expresso também nas obras que integram Notícias de América. No blog podemos ver, por exemplo, cartazes que Paulo exibiu (em inglês ou espanhol, "Arte", "Feito no México", "Vendo minha imagem de homem exótico", "Limpo seu banheiro por um preço justo") e séries como Cara de índio, em que o artista, descendente dos Krenak e de africanos escravizados, encontra indígenas urbanos pelas Américas para "comparar a cara mestiça à cara do outro".

As fotos no topo deste artigo também compõem a série: Paulo debaixo de uma pilha de repolhos; Paulo soterrado por destroços de concreto e toras de madeira; Paulo em meio a flores brancas. Se os trabalhos de que falamos podem fazer pensar em relações de poder, em questões raciais e em identidade, esses mostram, por outro lado, o artista mesclado à paisagem, como se fosse só um fragmento dela. O que há de similar entre essas imagens e Notícias de América parece ser o gesto de imergir, de distinguir-se sem se distinguir. O tema é como se colocar. Assim, fala o artista:

O objeto de arte está na maneira como eu decido me conduzir, me comportar diante do mundo. É arte de conduta, arte de comportamento, performance expandida e, ao mesmo tempo, diluída. Não é um espetáculo, vai se misturando e se fazendo vida.

Caminhada terminada, longa vida à caminhada: dois dias depois de chegar, partiu para a Guatemala. Em dezembro, voltou aos Estados Unidos para participar da feira Art Basel Miami, em que expôs a si mesmo com uma kombi cheia de bananas – algo como República de Bananas visita a Terra dos Livres. Na instalação, chamada Art market/Banana market, ele vendia fotos suas como “homem exótico” a 1 dólar e frutas a 10 dólares: "Cobrava pelo jogo da imagem e uma suposição do que o outro pensa dessa imagem, o exotismo a América Latina, o índio, o negro, o outro", contou. Ganhou 600 dólares.

Saiu no New York Times e foi convidado também para uma festa da Art Basel Miami, à qual compareceu com sua "camisa de 1 dólar, comprada na Guatemala", seus "pés sujos" e seu "saco de estopa". Imerso, mas não indistinto – integrado nos seus próprios termos, ou melhor, antropofágico. Paulo mostra que o essencial não são os jogos do capital simbólico, meros trampolins à crítica. O essencial é a arte como ética e mutação. "Eu me transformei", comentou, "por me manter o mesmo".

Paulo Nazareth é artista visual e performer. Estudou entalhe em madeira com o escultor Mestre Orlando. É licenciado em desenho e plástica e bacharel em desenho e gravura pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), na qual também cursa linguística. Em Santa Luzia (MG) é feirante – na sua barraca, nomeada Paulo Nazareth Arte Contemporânea LTDA., vende frutas e obras de arte. O deslocamento segue tendo papel fundamental na sua produção: após Notícias de América, desenvolve, entre outros trabalhos, Cadernos de África, em que anda por vários países africanos, mas também procura pelo que há de África na sua casa no Palmital. Leia perfis do artista na Veja, em O globo, na Select e na Isto é. Saiba mais na Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira.

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