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A capacidade de indignar-se diante da dor do outro

Um surpreendente comparecimento de estudantes de direito levou os organizadores a alterar o local...

Publicado em 07/05/2018

Atualizado às 17:54 de 27/08/2019

Por Encontro com Espectadores – Valmir Santos

Um surpreendente comparecimento de estudantes de direito levou os organizadores a alterar o local do Encontro com o Espectador na tarde de 29 de abril de 2018. Em vez da Sala Vermelha, no 3o andar do Itaú Cultural, o evento – que discutiu o espetáculo Sobre Ratos e Homens – aconteceu no térreo do instituto, na Sala Itaú Cultural, o teatro propriamente dito, que teve seus 224 lugares praticamente preenchidos.

Naquela tarde de domingo, os estudantes de direito presentes no Encontro com o Espectador – alunos do professor Wanderley Costa Lima, que atua em diferentes campi das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU) e os estimula a frequentar o teatro – descortinaram no drama social a centelha de questionamento sobre a condição humana.

A maioria do público já havia assistido a uma das sessões da peça no mesmo espaço, tendo sido mobilizada pelo enredo da obra, que se passa no interior dos Estados Unidos, sob as ruínas da recessão econômica na década de 1930.

O drama de John Steinbeck (1902-1968), de título original Of Mice and Men, denuncia a realidade social de trabalhadores rurais explorados por fazendeiros. Ao mesmo tempo, a história expõe a capacidade de alguns desses mesmos desvalidos de sonhar e pactuar amizades num contexto hostil e bastante atual, se consideradas as denúncias de afronta aos direitos humanos em vários países.

A condição subumana de escravizados e a prática de racismo e machismo – entre os próprios funcionários, além dos patrões – foram alguns dos pontos abordados em consonância com as escolhas estéticas e poéticas refletidas na atuação dos oito atores que participaram da discussão com os espectadores, ao lado do diretor Kiko Marques.

Este relatou seu encontro com o romance de Steinbeck na adolescência e o quanto foi despertado pelo forte laço de amizade entre George e Lennie, os empregados recém-chegados. “A humanidade contida no texto é de uma amizade quase improvável. De um lado, um homem inteligente, produtivo; de outro, uma pessoa estranha, perigosa e totalmente desadaptada do mundo. A resposta para essa superação é o amor”, disse o diretor.

Sobre Ratos e Homens fala do forte laço de amizade entre George e Lennie | foto: Agência Ophelia

Um dos alunos de direito, de prenome Aurélio, comentou o impacto social profundo da peça. “Se a gente parar e pensar, o que vocês contracenam no palco é o que a gente vive diariamente. Os personagens estão sem saída e ainda assim alguns deles insistem no sonho”, afirmou.

Isso é evidente no desejo de George (Ricardo Monastero) e Lennie (Ando Camargo) de juntar dinheiro para comprar uma terra e viver dignamente. Logo essa dupla cativante conquista a adesão do veterano com quem divide o teto coletivo, Candy (Roberto Borenstein), que ganha um novo alento de esperança. O roteiro de Steinbeck, porém, é mais realista com eles.

Mediadora dessa 18a edição do Encontro com o Espectador, a jornalista e crítica Beth Néspoli observou as escolhas dos criadores ao valorizarem a empatia em oposição à brutalidade dominante nas inter-relações pessoais da obra. “O teatro é muito importante porque alarga a percepção da gente sobre o mundo. Há peças que lidam com a identidade. Essa lida com a alteridade”, disse. “Sobre Ratos e Homens estimula a ver o outro, a compreender, a ter empatia pelo outro, o que é estranho a mim. Um atributo da peça é levar a entender o quanto o meio social, as ações de poder, limitam os sonhos das pessoas.” De fato, o autor norte-americano vencedor do Prêmio Pulitzer de Ficção (1940) e do Prêmio Nobel de Literatura (1962) prima pelo exercício de alteridade em sua prosa.

Beth também citou os “silêncios sustentados”, capazes de manter a tensão da cena, e o quão essas passagens combinam com a trilha sonora de Martin Eikmeier, intervindo na medida certa para “adensar a atmosfera”.

A atriz Erika Altimeyer ponderou sobre sua personagem Mae, mulher do filho do dono da fazenda, sobre a qual recaem atitudes e comentários machistas. Os homens a veem apenas como objeto insinuante, desprezam sua visão de mundo. O ator Tom Nunes, por sua vez, foi instigado por Beth a discorrer sobre o seu papel (Crooks), discriminado pela cor, ressentido, tomado de profunda solidão, mas capaz de sorrir e ouvir o próximo.

“Eu tiro o chapéu para o autor. Quando ele escreveu, não colocou o único ator negro como pobre coitado, mas como o único intelectual em cena. Foi o que mais me deu vontade de fazer essa peça. Justamente aquilo que ele colocou e ao longo da história foi sendo proibido: negro não pode estudar; negro não pode ter noção do seu direito, senão vai brigar, e isso não pode...”, explicou Nunes. “Isto para mim é mágico: por mais que o personagem apareça pouco, ele é muito significativo. Eu represento uma classe de 52% de brasileiros negros e que têm tão pouca voz. Por mais que o Crooks carregue tanta dor, ele tem o sorriso. Independentemente de sua cor, ele tem o sonho de qualquer pessoa, que é ter alguém para conversar.”

Cena da peça Sobre Ratos e Homens | foto: Agência Ophelia

O diretor Kiko Marques disse achar fundamental o movimento que vem se dando no país em termos de empoderamento pelo aspecto positivo nas temáticas do feminino e do negro. Lembrou do diretor inglês Peter Brook, que, na sua companhia francesa Théâtre des Bouffes du Nord, mescla profissionais de múltiplas nacionalidades e ignora o chamado physique du rôle (o tipo físico). “Ele faz uma das coisas mais profundas nesse sentido. Negro é irmão do asiático, que é pai do europeu e do hindu, e eles são uma família. Já Sobre Ratos e Homens realmente trabalha com essa visão negativa, que considero eficaz, e ficaria muito triste se isso não pudesse ser mais realizado no teatro”, afirmou. “Tenho a impressão de que o espectador, ao final, sentirá um movimento de revolta que sobe nele, o que é absolutamente fundamental. Você lê um contexto [na peça], e esse contexto é presente na minha vida. É a representação de um contexto real, que não mora lá [na década de 1930], mora aqui, hoje. Eu me reconheço nas minúcias dessa atrocidade. Diante desse movimento de revolta, de tristeza e dor, é impossível não se perguntar: 'Meu Deus, por quê?'.”

Duas conversas em maio: L, o Musical e O Incrível Mundo dos Baldios

As duas próximas edições do Encontro com o Espectador (a 19a e a 20a) vão acontecer excepcionalmente no mesmo mês, neste maio. No dia 20 (domingo), às 15h, no âmbito do evento Todos os Gêneros: Mostra de Arte e Diversidade, organizado pelo instituto, o diálogo vai girar em torno do espetáculo L, o Musical, do coletivo Criaturas Alaranjadas Núcleo de Criação Continuada (DF). O diretor e dramaturgo Sérgio Maggio celebra o amor entre mulheres ao som de vozes femininas da MPB, passeando por tópicos como liberdade, desejo, afetos e identidade humana. A intenção é criar uma reflexão sobre as delícias e os conflitos do amor lésbico.

Maggio e a poetisa, cantora e atriz Elisa Lucinda, que contracena com outras cinco colegas, estarão em diálogo com o público sob mediação do crítico e curador Kil Abreu. L, o Musical narra o entusiasmo da renomada autora de novelas Ester Rios (Elisa) com o sucesso de seu primeiro folhetim a retratar um triângulo amoroso entre mulheres. Ela divide a sua empolgação com as amigas Anne, Simone, Elle, Filipa, Léa e Xena e lembra-se de Rute, o grande amor de sua vida. Notícias inesperadas poderão mudar o destino de todas essas mulheres.

No domingo seguinte, dia 27 de maio, também às 15h, é a vez de receber os criadores da companhia de teatro Os Satyros (SP), o diretor Rodolfo García Vázquez e o ator Ivam Cabral, coautores do espetáculo O Incrível Mundo dos Baldios. A conversa será mediada pela jornalista e crítica Maria Eugênia de Menezes.

Numa passagem de Ano-Novo, um anjo circula pelo planeta Terra. Um peregrino busca atender às promessas de pessoas que esperam por milagres para sua vida. Em uma casa de repouso, uma voluntária dá banho em um velho palhaço adoentado. Em um ponto de ônibus, uma cantora maranhense conhece dois verdureiros evangélicos. Na quebrada, um segurança faz um plano com um amigo para enriquecer rapidamente. Em um cruzeiro, uma advogada bem-sucedida vive seus últimos momentos ao lado de uma médica e um amigo. Em uma área de fumantes de um clube, uma refugiada palestina conhece um adolescente perdido...

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