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A memória no tempo presente

Coorganizadora do livro Futuros Possíveis: Arte, Museus e Arquivos Digitais, a midiartista Giselle Beiguelman fala sobre memória, design...

Publicado em 08/01/2015

Atualizado às 21:03 de 02/08/2018

por Tiago D'Ambrosio

Giselle Beiguelman é midiartista, professora e coordenadora do curso de design da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP e editora da revista seLecT. Junto à historiadora Ana Gonçalves Magalhães, curadora do Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP, organizou o livro Futuros Possíveis: Arte, Museus e Arquivos Digitais, que aborda os debates sobre cultura digital e preservação da memória e foi lançado em novembro de 2014 no Itaú Cultural. Na entrevista a seguir, Giselle fala de como foi produzir essa obra, do papel da arquitetura e do design em uma sociedade hiperconectada, da necessidade de reinventarmos a memória e dos efeitos da democratização dos meios de comunicação.

Futuros Possíveis: Arte, Museus e Arquivos Digitais reúne especialistas de renome internacional e transita por temas como estratégias para o armazenamento de arte digital, digitalização de acervos, formas de organização e disponibilização das informações, surgimento da estética do banco de dados e o campo da curadoria da informação. Saiba mais no site e no Facebook.

Giselle é autora de outros livros sobre arte e cultura digital, como Nomadismos Tecnológicos e Admirável Mundo Cíbrido. Sua obra artística inclui intervenções em espaços públicos, projetos na web e aplicativos para celular, exibidos internacionalmente em instituições de destaque como o ZKM (Centro de Arte e Mídia Karlsruhe, na sigla em alemão), na Alemanha, e o Centro Pompidou, na França. A artista e professora mantém o site desvirtual.com.

Futuros Possíveis... surgiu a partir de um simpósio realizado por vocês. Comente como foi o processo de trabalhar com esses temas.

Giselle Beiguelman: Em 2011, eu e a Ana estávamos trabalhando em temas correlatos sem saber. Ela pesquisava processos de digitalização de arquivos de museus, uso de novas tecnologias em bancos de dados, patrimônio digital. Eu investigava a história da arte digital, o lugar da arte digital no campo da arte contemporânea, metodologias de conservação e preservação de obras muito recentes – inclusive várias minhas! – que já não eram mais acessíveis. Pela Camila Duprat, então diretora do Instituto Sergio Motta, fomos apresentadas à Manuela Naveau, do Ars Electronica, que na época estava pesquisando novos formatos de exposição de arquivos e bancos de dados artísticos, a propósito da reorganização do arquivo do Ars. Era claro para nós três que o tema era urgente, abria inúmeras possibilidades de pesquisa e envolvia vários tipos de profissionais. Foi assim que, depois de muitas reuniões por Skype, chegamos aos quatro eixos temáticos que orientaram o simpósio e que dividem o livro. São eles: Novas Memórias – Arquivos do Futuro; Entre o Passado e o Futuro – A Construção do Presente; O Contracolecionador On-line – Arquivos e Museus Pessoais e, finalmente, Curadoria de Informação e Estética do Banco de Dados.

A experiência foi um desafio de ponta a ponta e um processo de aprendizagem muito importante para nós. Para realizar o simpósio, trabalhamos com todas as agências de fomento do país – Fapesp, Capes e CNPq –, além de conseguirmos recursos pela USP, pela embaixada da Áustria, pelo Media Lab da Universidade Federal de Goiás (UFG)... e depois, para o livro, trabalhamos com o Itaú Cultural e as editoras Peirópolis e Edusp. Isso sem deixar de lado os 22 autores, vários pesos-pesados internacionais dos maiores museus do mundo, tradutores, enfim, foi um processo muito rico de pesquisa, intercâmbio e extensão cultural. A repercussão, a urgência do tema e sua atualidade já nos colocaram nos trilhos para a formatação de uma segunda etapa do projeto. Aguardem...

Em seu texto Admirável Mundo Cíbrido, você diz que o surgimento de uma cultura cíbrida, na qual estamos o tempo todo entre redes on-line e off-line, traz consigo a ideia de uma espacialidade independente da noção de lugar. Como você enxerga, nesse contexto, o papel da arquitetura, que inscreve concretamente memórias e sentidos em um espaço físico?

Penso que hoje já vivemos no tempo de uma arquitetura expandida, que tem camadas informacionais agregadas às suas camadas construídas. Os sinais mais evidentes desse processo de cibridização da arquitetura aparecem na transformação das cidades em verdadeiras telas urbanas, aplicativos de realidade aumentada, e também pelas tecnologias de vigilância. Essas camadas informacionais fundem “bits e bricks” e implicam toda uma nova lógica de memória que passa a ser dos fluxos e não do lugar circunscrito. Sem dúvida, colocam-se novas questões na reflexão sobre a memória do “objeto” arquitetônico no espaço físico ampliado e amplificado pelas redes digitais.

Nesse texto, você cita ferramentas como Web Stalker, Netomat e Bits On Location, que desafiam, por meio das tecnologias de comunicação, nossas noções de espacialidade, mídia, conteúdo e interface. Que outras ferramentas ou iniciativas, ligadas a essas novas tecnologias ou não, você acha que podem desafiar hoje nossas compreensões de memória e tempo histórico?

As estéticas dos bancos de dados e os projetos que apostam em uma ruinologia crítica – termo que uso adaptando um conceito de Ernesto Oroza, cubano radicado nos EUA.

No primeiro grupo, destacaria artistas que confrontam a “overdose documental”, como Erik Kessels, que encheu uma sala do Foam [Museu de Fotografia de Amsterdã, na sigla em holandês] com o download de 24 horas de fotos do Flickr (Photography in Abundance, 2011), e a brasileira Denise Agassi, que, em Viagem-Arquivo (2014), desenvolveu um dispositivo que cria percursos imagéticos a partir de buscas de imagens e vídeos disponíveis no YouTube e no Flickr.

No segundo grupo, chamaria a atenção para obras que problematizam a obsolescência programada, o acúmulo do lixo tecnológico e a possibilidade de trabalhar no âmbito da disfunção das máquinas e dos ruídos de processamento inerentes a esse processo tão voraz de descartabilidade. Isso nos coloca face a face com novos processos de apagamento, de lacunas, gaps – dentro das estéticas da ruinologia crítica. Destaco nesse grupo o próprio Oroza, Lucas Bambozzi, os Gambiólogos, Paulo Neflídio e também os artistas comprometidos com a visualidade do Glitch (estética do ruído e do erro de programação), como Rosa Menkman, Benjamin Gaulon e, no Brasil, eu mesma.

Em “Reinventar a Memória é Preciso”, você fala da inflação discursiva do termo memória, que passa a ser utilizado com muita frequência e geralmente entendido como uma qualidade objetiva quantitativa – assim passamos a falar de equipamentos eletrônicos com pouca ou muita memória. Já os aspectos subjetivos da memória, aos quais estamos todos sujeitos – esquecimentos e invenções, releituras, contextualizações e reinterpretações –, são quase sempre desconsiderados. Quais as implicações disso em nossa cultura?

Basicamente, são duas implicações. Por um lado, se continuarmos na direção em que estamos, da overdose documental e da obsolescência programada, vamos insistir no fenômeno da construção de uma cultura baseada em memórias que paradoxalmente ergue arquiteturas do esquecimento. Por outro, estamos diante da possibilidade de repensar os métodos de memorizar, historicizar as tecnologias de memorização, problematizá-las à luz das demandas do horizonte cognitivo do nosso tempo. O ensaio contempla essas alternativas ao discutir novos formatos de conservação e museologização da arte digital.

Em seus textos, você atenta para o perigo de certas abordagens do design da experiência e da publicidade estimularem uma noção temporal esvaziada de significado, que torna o passado um tempo a-histórico, mero objeto de consumo, e o presente banal, que precisa ser o tempo todo reimaginado. E indica que isso pode ser entendido como um possível elemento compensador para o regime de urgência das redes e para a nossa dificuldade em preservar e acessar a memória do passado recente. Como o design opera dessa maneira?

É perversa a relação do design de experiência com a memória. Opera como um dispositivo cenográfico que apazigua as contradições. Sua vocação para tematizar espaços é inequívoca. Esse tipo de estratégia promove uma espécie de “disneyficação da cultura”, sintomática de um processo em que a possibilidade de acessar a memória nos escapa cada vez mais. Chama a atenção que esse processo ocorra em sincronia com o mood retromaníaco do pop, incontestavelmente cada vez mais “intoxicado” pelo passado. Como se vivêssemos o tempo todo a saudade de um tempo que não foi.

A democratização dos meios de comunicação borrou os limites entre produtor e consumidor de informações, assim como permite que quase todos possam controlar o que é publicado e o que é arquivado. Na educação, muitos já consideram as metodologias tradicionais incapazes de acompanhar a velocidade de criação e compartilhamento de conhecimento. Ao mesmo tempo, museus e instituições culturais estão se esforçando para criar mais espaços de diálogo efetivo com o público. Como você percebe essas mudanças nas suas atuações como artista e educadora?

Como artista, tenho vivido o “drama” e a “aventura” da obsolescência programada, da precariedade dos sistemas de armazenamento, da falta de recursos (metodológicos e materiais) para reprocessamento de arquivos e da descoberta do enfrentamento dessas novas situações. Tenho obras funcionando basicamente à base de documentação, obras que sofreram danos até agora irreparáveis por mudanças abruptas de sistemas operacionais e descontinuidade de alguns desenvolvedores. Enfim, como estou nessa área há muito tempo e com algumas obras que se tornaram referenciais, especialmente na bibliografia internacional, na qual sou bem mais citada que na brasileira, infelizmente, tornei-me um caso de estudo para alguns curadores e conservadores. Uma de minhas obras (De Vez em Sempre/De Vez em Nunca), ao ser incorporada ao acervo do ZKM, foi imediatamente refeita (reprogramada, atualizada...) e deverá ser novamente refeita, reprogramada, atualizada em breve. Outras estão no mesmo caminho.

Como educadora, o desafio é tão grande e fascinante quanto ou maior. Lido com uma geração que não passou pela TV preto e branco, que não sabe o que é o mundo sem TV a cabo, sem internet e sem video game. Há um abismo cultural entre nós. Aprender a ler o mundo contemporâneo pelos olhos deles e levar o nosso olhar, nossas outras matrizes para o deles e criar um campo de possibilidades em aberto é o que justifica estar na sala de aula e o exercício da docência hoje em dia. Sem dúvida que os parâmetros de atenção, concentração e memorização são diferentes. Brinco que eles já nasceram com um chip a mais. Têm uma capacidade absurdamente rápida de “fazer download” do que está a sua volta. Contudo, faltam algumas linhas de comando no “sistema operacional”. O processamento é muito fragmentário e filtrado. E, se pensar é generalizar, como aprendemos com Jorge Luis Borges em “Funes, o Memorioso” [conto publicado em Ficções], então, Houston, temos um problema...

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