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Anotações sobre o puro brilhante (ou devir imagem) – parte 2

Sofia Borges dá sequência a suas reflexões sobre si e sobre as imagens a partir de um mergulho no seu livro “O pântano”

Publicado em 09/02/2022

Atualizado às 12:07 de 10/11/2022

Por Sofia Borges

Imagem de texto. se lê a matéria é uma miríade. a realidade eu não sei o que é. tudo ocorre pela sua própria resistência. a sentido está contido em tudo e não pode sair dali a não ser por essa espécie vazia vácua firme e transparente que é existir. então tudo existe pela sua própria negatividade. e o branco firme é tão firme que nem luz tem.
(imagem: Sofia Borges)

E voltando ao assunto de ser “imageta”. Quero estruturar aqui a primeira vez em que organizei isso, essa atuação de pensar a imagem – além das exposições em si, nas quais continuamente faço isso. Essa primeira consolidação foi O pântano, meu primeiro livro. Ainda nessa série de ensaios de textos, chegarei à segunda consolidação: O fóssil, o olho e o fogo, meu primeiro filme. Agora, porém, falo de O pântano, que recebeu um prêmio britânico e, por esse motivo, foi lançado por lá.

Na ocasião de receber o prêmio e lançar o livro, fui entrevistada por uma jornalista em Londres que, depois de entender que meu livro era fruto de mais de sete anos fotografando dentro de museus, me perguntou se por acaso o museu era a minha verdadeira musa.

Fotografia de pedras com escrito o pântano
(imagem: Sofia Borges)

Lembrei disso ao pensar sobre essa coisa aqui inventada de ser imageta. E, na verdade, não, o museu não é a minha musa. Talvez minha verdadeira musa seja mais o mito, aquilo que paira em torno da coisa. Porque o que eu procuro fotografar é um estado que habita as coisas, mas não é a coisa em si. Seja objetos descansando em museus, arranhões em paredes antigas, imagens em livros, animais em zoológicos, fósseis, pedras, achados arqueológicos em institutos de pesquisa, retratos dentro de quadros ou quadros dentro de pinturas: esses são apenas o mármore, enquanto a abstração e a negatividade do significado são a minha Vênus.

Portanto, minha musa não é o museu, mas o objeto existente em si, a matéria, o mármore, o barro, o plástico, a superfície de uma tela, uma caverna. E isso pode ser encontrado em qualquer lugar, não necessariamente dentro de museus.

Mas, assim como a diferença entre uma pessoa nua e o papel que ela desempenha no contexto da cultura, em algumas circunstâncias os objetos estão atuando com mais precisão em seu significado cultural ou histórico ou semântico. Nos museus, os objetos possuem muitas camadas diferentes de tempo, história, uso, símbolo, representação. É mais fácil reconhecer essas camadas em um objeto que já foi separado da invisibilidade da realidade; elas, as coisas, estão lá apenas para habitar esses significados. Assim, foi mais fácil para mim distinguir esses estados e, afinal, usar minha musa, a matéria, apenas para mostrá-la atuando dentro de seu próprio mito: o mito do significado, o mito da compreensão, o mito da realidade.

Capa de livro em que se lê images do nor existe. em português, imagens não existem
(imagem: Sofia Borges)

Desde sempre penso que minha pesquisa em fotografia é uma prática filosófica. De questionar o ato da representação, de significado, de compreensão. Uso a fotografia como ferramenta para dissecar o significado de uma imagem, taxidermizar sua capacidade de representação. Mesmo pensando que é quase uma conquista impossível, meu intuito final sempre foi apresentar as coisas sob a luz de uma negatividade, de uma negatividade imagética.

Foi depois de anos pesquisando que entendi que meu interesse pela fotografia vem do fato de que a imagem fotográfica mimetiza a imagem que temos dentro dos olhos.

Tão simples, mas percorri um caminho complexo para chegar a essa percepção. Sou fascinada com a imagem da realidade, a imagem que vemos nos olhos. Acho incompreensível. E a fotografia é, para mim, uma ferramenta para entender melhor isto: a experiência de ver uma imagem.

Também em meu trabalho não estou interessada em temas ou narrativas. Não é para demonstrar algo na forma representada, é para abstrair. Não estou falando de abstração em termos formais (há quem possa ter pensado que não existe tal coisa como fotografia abstrata, uma vez que cada coisa na realidade é representativa da forma que tem). O que eu busco é sua abstração em termos de significado, é a abstração em termos de compreensão.

E, porque a imagem fotográfica é tão semelhante a como capturamos imagens dentro dos olhos, é mais difícil não a compreender. Assim, quando consigo mostrar uma “representação da realidade” que se recusa a entregar um significado definido e nítido, talvez eu me aproxime do cerne de minha problemática: a impossibilidade de compreender a própria realidade.

Imagem com escritos em inglês
(imagem: Sofia Borges)

O pântano foi um ponto culminante dos sete primeiros anos dessa pesquisa. Ele não contém nada além de um material metamórfico, esta lama filosófica: formas que se fundem em outras formas, imagens que se recusam a significar. Impossível diferir, falar e fluir. Sendo sempre intencionalmente pesada, cada imagem tentava ser problemática o suficiente para apagar sempre a anterior, apagar a compreensão obtida, página a página, pelo leitor. Sob essa “estratégia de branco” havia a tentativa de colapsar o caminho da memória-construção-movendo-se-para-frente a fim de se tornar narrativa. Eu queria fazer um livro de alienígenas, mas cada um vindo de uma galáxia diferente.

Como em minhas exposições, o livro se esforçava para ficar longe da estrutura narrativa e da temática. Foi um desafio especial reunir tantos e tão diferentes tipos de imagem. Além das relações metamórficas que organizam o fluxo de imagens através do livro, a única coisa que dá ritmo é um texto mínimo que parece quebrado ao longo das páginas. Um poema que aponta para um espaço em branco. Um espaço suspenso entre a legibilidade e a abstração. A linguagem falhada e ausente, tentando arduamente, sem ser realmente capaz de fazê-lo.

Na capa está escrito: “As Imagens Não Existem”. Essa afirmação provocadora tem a ver com o conceito grego de aporia, um quebra-cabeças filosófico, uma afirmação que tenta juntar contradições equivalentes.

Está relacionada, para mim, ao fato de que a imagem – quero dizer, o primeiro grau de imagem, o próprio ato de ver dentro do olho – é a linguagem. O que vemos é apenas o que entendemos do que vemos.

Fotografia de parede com diferentes imagens de pedras, pessoas, esculturas e peças indistinguíveis
(imagem: Sofia Borges)

O livro se chama O pântano por causa de uma metáfora de as imagens serem a lama que cobre tudo o que existe. Gosto da ideia de um mundo que entra coberto por uma mesma lama escura e espessa derretida. Essa lama seria nossa compreensão (imagética) sobrepondo-se às coisas, de alguma forma escondendo-as de uma experiência transcendente. Assim, nessa metáfora, o pântano é a fonte lamacenta de tudo o que existe, um grande lago espesso; as imagens, essa matéria espessa e transparente que envolve os objetos que eu observo. E o que vejo é só a espessa lama derretida cobrindo esses objetos, impedindo-me de percebê-los realmente.   

Voltando à questão da abstração: estou interessada em imagens que são completamente legíveis em termos de forma (você pode reconhecer o que é), mas ao mesmo tempo são corrompidas em termos de “o que isso significa”. Acredito ser essa a condição da própria existência. E essa linguagem surge apenas da capacidade de perceber o significado em termos de diferença, não de unidade.  

Fotografia com elementos cinza que parecem uma pintura
(imagem: Sofia Borges)

A coluna Revelação convida curadores, pesquisadores e outras pessoas interessadas nos debates que a produção de imagens pode suscitar para escrever sobre fotografia. 

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