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Esculturas | Arte de não saber e ética do heterogêneo: os palíndromos de Tunga

Por meio do que chama "cola poética", o artista aproxima elementos díspares para criar sentidos novos e abrir a possibilidade de aprender com a obra de arte

Publicado em 11/02/2021

Atualizado às 17:16 de 16/08/2022

Esculturas destaca produções de artistas presentes na coleção de obras de arte do Itaú Cultural. A cada edição da série, uma conversa sobre trabalhos com temáticas e estilos variados, buscando ampliar horizontes. Siga aqui pelo site ou no nosso perfil no Instagram.

Fios de cobre estendidos entre recipientes recobertos de imãs e de ferro, encostados nos quais há duas agulhas negras.

Tunga
Palíndromo Incesto, 1989-1992
ferro, ímã, limalha de ferro e cobre
300 x 200 cm
Acervo Banco Itaú
Imagem: João Luiz Musa/Itaú Cultural

por Duanne Ribeiro

Se você não entendeu esse Palíndromo Incesto, parte de uma série do artista visual Tunga, você começou bem. Não entender é um bom primeiro passo. Cultive um pouco a incompreensão: que são esses fios de cobre curvilíneos, estendidos entre recipientes recobertos de imãs e de ferro e duas agulhas negras? O impulso de classificar, de remeter o que vemos ao que já sabemos bate na parede – e, veja só, essa é uma posição em que o próprio artista esteve. "Muitas vezes o não saber, o não se identificar, está na gênese do trabalho e é o motor do trabalho para mim mesmo", afirmou ele. É uma situação irredutível a explicações, e é um ideal para o criador:

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A gente pode fazer leituras, exegeses, hermenêuticas, pode compreender as origens, buscar relações, tecer relações – só que tem um momento em que aquilo se impõe como um não-saber, se impõe como um enigma, como um mistério. E esse é o momento que me interessa. Eu acho que o meu trabalhar, o meu fazer, é em direção a essa surpresa.

Este texto logo será culpado disso que Tunga fala: vamos cobrir a obra com alguma interpretação e com uma série de informações. O que ele enfatiza é que existiu um instante anterior – marcado por enigma, mistério, surpresa – em que estivemos menos armados de discursos e mais largados à perplexidade. Diz o artista, ele próprio experimenta isso mesmo após ter terminado o trabalho:

Eu conheço o trabalho, eu construo muito rigorosamente as peças, as instalações, as performances, cada detalhe, cada elemento, vou procurar as relações (...). No momento em que está pronto, eu acho que eu sei tudo sobre aquilo e eu percebo que de fato eu não sei, que esse é o momento do não-saber – e esse é o momento em que a coisa começa a me ensinar.

Tudo se passa como se a partir da confusão ou da mudez o trabalho artístico pudesse educar – sobre o que, não sabemos com antecedência. O escritor Marcel Proust fala da obra de arte como "promessa de felicidade" – aqui, parece que ela consiste em uma promessa de pedagogia. Sendo assim, sobre o que Palíndromo Incesto pode nos instruir? Um meio de ter uma resposta é seguir o procedimento a que Tunga aludiu algumas vezes nos trechos citados: identificar relações...

Um primeiro conjunto de relações está no nome da obra. Um "palíndromo" é uma frase que pode ser lida da esquerda para a direita e da direita para a esquerda igualmente, como essas criadas pelo humorista Millôr Fernandes: "a mala nada na lama", "a grama é amarga". O termo descreve a disposição da obra, que de um lado ao outro e de volta exibe os mesmos ícones. Já "incesto", que designa a cópula entre parentes, do que pode falar nesse caso? Que conexão fora da norma achamos nele? Só aquela estabelecida entre esses metais, suas formas, texturas, símbolos.

Nesse sentido, o Inhotim indica em Palíndromo Incesto "uma alegoria contínua de uma relação consanguínea entre os objetos e significados". O artista visual Nuno Ramos, no ensaio "Night and Day", publicado em Verifique Se o Mesmo, lembra que o incesto, para o antropólogo Claude Lévi-Strauss, é uma "lei demasiado ampla para ser lei" que organiza sociedades humanas e põe "em movimento todas as modulações da troca". Afirma Nuno, "essa quase-natureza é tudo o que Tunga procura"; através disso o artista produz um campo "meio alquímico, meio magnético, meio bicho, meio pedra, meio homem, pronto para atrair o que passar perto dele, mas sem alterar-se".

Essa percepção pode ser aplicada para além da escultura de que tratamos: Tunga contou que a sua produção procede segundo uma cola poética, em que ele manipula o que chama de energia de conjunção – aproxima elementos vários e, por meio dessa união, gera algo novo. No caso de Palíndromo Incesto, os sentidos carregados pelos materiais em uso abrem vias de entendimento diversas. Os imãs, seu campo magnético, diz o site do autor, sugerem que "o que se vê e o que é invisível têm igual importância". Os recipientes (que, somos informados, são grandes dedais) e as agulhas lembram a arte da costura. Os fios de cobre podem figurar uma cabeleira e remetem a Xipófagas Capilares Entre Nós – em que meninas são ligadas pelos cabelos – e ao interesse do artista pelas tranças, as quais, nota ele, como a trindade cristã juntam o três em um.

São muitas as reverberações possíveis. E, Tunga indica, descobri-las, seguir o seu movimento, fazer com que conversem com a nossa vida é ainda outra coisa que a arte pode nos ensinar. "A energia de conjunção é, por excelência, a energia do amor", diz ele, "tratar de viver essa energia de conjunção, tratar de generalizar aquilo que pode ser a substância dos poemas (...) é desejável para que se transformem as relações humanas". Sublinhando que não somos homogêneos, que somos "únicos e diversos", que nos entendemos pelas nossas diferenças, o artista formula: "Se existe alguma razão pra gente fazer a poesia, é criar possibilidades de relações diversas, de se surpreender com a conjunção daquilo que é heterogêneo". De encontrar o outro como a arte.

Antonio José de Barros Carvalho e Mello Mourão, o Tunga (1952-2016), foi escultor, desenhista e performer. Inicia sua carreira nos anos 1970, com desenhos e esculturas; no fim dessa década passa a produzir peças tridimensionais e instalações. Seu trabalho é marcado pelo diálogo com várias áreas do saber – psicanálise, filosofia, química, literatura, biologia – e pelas temáticas da sexualidade e do erotismo; utiliza nelas de lâmpadas a borracha, de fios elétricos a moscas. Leia um perfil do artista na revista piauí e veja o vídeo poético sobre sua obra feito pelo Inhotim. Acesse outras informações na Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira.

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