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Arte que vem do mato

“Um conselho: carregue sempre um pedacinho de pau para, pelo menos, amaciar o mato e percorrer os caminhos”, escreve a colunista Naine Terena

Publicado em 10/10/2021

Atualizado às 17:38 de 08/10/2021

Morar no “interior” do Brasil é aquela sensação de ficar sentado à beira da estrada vendo ônibus e carros – e até avião – passar e não entrar neles. Você fica sonhando como é um dia ir primeiro de ônibus, meio apertadinho; depois de carro, já mais confortável; e posteriormente de avião, “avuando”’ por onde você consegue ver tudo que ficou lá embaixo. A gente até acha que todo mundo que está no eixo Sul-Sudeste está numa situação confortável e passa ônibus, carro e avião para levar todo mundo a algum lugar.

Estar à beira da estrada vendo passar as correntes de vento, abaixo do sol escaldante, também permite perceber que o tempo pode até transcorrer muito vagarosamente, mas não para. O lugar onde havia muito mato – colonhão mesmo ou árvores ancestrais – pode se alterar de maneira drástica, a depender dos desejos de quem manda na coisa toda. Um dia você tem; no outro, não. Mas também pode mudar a paisagem a partir de olhares que veem muito além do mato. O que tem dentro do mato. O que faz o mato ser mato.

De onde eu saí, tudo é mato. É mato até no nome. Tem um morro, que é “Toroari”, mas ninguém nunca nem viu nem percebeu o que é Toroari [se você vier a Cuiabá (MT), peça a alguém que lhe mostre o Morro de Santo Antônio]. Do mato de que eu saí, a gente abre “picada” para ver se chega ao outro lado onde está a estrada e olha todas as vias possíveis de transitar. Aqui é terra de gente que vive no mato. Gente quase invisível em muitos segmentos da dita sociedade civilizada. Para não dizer dizimada, apagada.

Imagem de um balde cheio de materiais usados dentro, como pincéis. Com tinta branca está escrito O homem é miserável e a morte é certa.
(imagem: Gervane de Paula)

Quando eu achei a picada que papai e mamãe tinham começado a abrir, fui limpando o caminho, de chinelo de dedo, sentindo entrar na “palma” do pé o carrapicho da civilização. Às vezes dói, às vezes faz cócegas. Estava bem contente porque havia começado a andar de avião e ver o tal contemporâneo por aí. A pandemia acabou com minha graça e voltei para o mato. Amém! Mas, antes do avião, andei a pé e às vezes de carro, e via que abrir a picada não era fácil para ninguém. Ainda bem que um dia conheci um pessoal, Magna Domingos, Carol Marcório e Gervane de Paula. De comunista a gente que mora nas quebradas onde o “homem é miserável e a morte é certa, mas arte aqui eu mato”. Se é para pensar em dignidade, vamos “gervaniar”… Um dia ele pintou um skate para filho de madame… E daí?

Uma dificuldade que muitas pessoas têm é de pensar que tudo que está no mato emana vida e energia.

Acham que só a sua casinha habitada por entes humanos (mesmo estando no meio da morraria), com seus aprendizados de alvenaria, tem valor. Essas pessoas parecem nunca ter saído no mato para ver o mundo por outra perspectiva. Trancam as portas quando o sapo começa a fazer aquele barulho todo (notem, há sapo em vários lugares e, em outros muitos, até se engole o sapo). Não percebem as relações com a diminuição ou o aumento dos insetos e bichos peçonhentos. Mayra Albuquerque, uma menina que veio de uma cidade chamada Diamantino (MT), filha da Nega e do Marcão, cismou em desenhar para a gente que é preciso falar de corpos, ainda que muitos desses corpos causem em alguém a repugnância que causam os insetos e bichos peçonhentos.

Obra de Mayra Albuquerque, que mostra uma figura com corpo humano e cabeça de inseto. Ela está com um celular na mão, como se tirasse uma foto sua.
(imagem: Mayra Albuquerque)

Falando em pessoas de bem, na terra onde o mato é negócio, lembrei e tive a impressão de que Ruth Albernaz sentou à beira da estrada e conseguiu entrar em um ônibus. Mas, antes disso, bichos peçonhentos o tempo todo passavam na perseguição aos ambientalistas. Eu acho que até vi quando ela saiu do mato, lá em Chapada dos Guimarães (MT). Uma bióloga artista – artista bióloga –, meio “raizeira”, de família que guardava o segredo das raízes. Da roça de toco para plantar comida, das plantas medicinais, dos curandeiros da sua família. Não é que Ruth menina saiu correndo no asfalto tentando empinar uma pipa?

Imagem de Ruth Albernaz, que mostra uma mulher agachada em frente a uma espécie de altar. Há uma luz branca forte no centro da imagem.
(imagem: Ruth Albernaz)

Eu fico boba é de ver algumas aberturas. Aqueles menines do Coletivo Ijã Mytyli de Cinema Manoki e Myky, com Pinjawuli: o veneno me alcançou, nome este que dispensa qualquer comentário sobre a relação “veneno versus mato”, trazendo suas contranarrativas artísticas, assim como o coletivo Ascuri de audiovisual indígena (indicado ao Prêmio Pipa 2021), que não se formou tecnicamente pelas mãos dos não indígenas, e vira e mexe os vejo à beira da estrada em Mato Grosso do Sul, com a estética terena/guarani de fazer vídeo e arte. Conheci recentemente, pelas fotografias, a Raiane Vitória, quilombola, filha, neta, bisneta e tataraneta de quilombola, da Comunidade Quilombola Ribeirão da Mutuca, situada no município de Nossa Senhora do Livramento (MT). Militante, fotógrafa quilombola e estudante de medicina.

Aqui no mato a gente vê os animais dando as caras, antes proporcionando orgasmos turísticos, mas, agora que “tá tudo ‘coisado’, tá confuso, tem medo envolvido, tem jacaré morrendo aqui, ali, acolá, tem gente respirando fumaça, tá faltando ar. Mas diga aí, já virou jacaré?”, cantou a bola Yby, jovem artista da terra do agro. Olha, olha... “Vai virar jacaré”, se é inovador ou novo, não sei. Que tempinho, hein? A branquitude se revira toda. O tempo pode até passar devagar, mas passa... No mato existem também aqueles que a gente não vê. A gente, não. Gente que não é daquele mato, que nem sequer amaciou o colonhão para olhar com outros olhos o que guardam ali no pátio do chão batido todos os segredos do mundo. Assim fala Libério Uiagomeareu, que apresenta um conjunto de oito parikos numa instalação artística criada recentemente.

Aposto um pote de doce de caju que é a primeira vez que isso acontece. Ele conta que aquilo ali é resistência de um povo que vive um momento histórico: a retomada do funeral bororo, que foi proibido por muito tempo na sua aldeia. Foram proibidos de falar sua língua e viver a cultura boe. O pariko é resistência e mais uma abertura de trilha nesse mato: “Apesar de nosso povo ter sido expulso de Cuiabá, região boe, a gente persiste. O Boe persiste em Cuiabá, na história de Cuiabá, e deve ser visibilizada essa resistência. O pariko, além do contexto de sua exposição como arte, é um objeto ritual importante para os Bororo, mas aqui, agora, ele é símbolo de resistência pela arte”, contou-me ele, sem detalhar a grandeza desse objeto ritual, que não consigo registrar aqui neste texto. Talvez em outra oportunidade.

Deus me livre perder o caminho da picada que me leva e traz. Um conselho: carregue sempre um pedacinho de pau para, pelo menos, amaciar o mato e percorrer os caminhos. Gente do mato é assim, vai e volta. Assim seja. Assim é.

Imagem de uma pessoa de costas, com uma sacola nas costas escrito Arte aqui eu mato.
Arte aqui eu mato (imagem: Gervane de Paula)
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