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Artistas circenses, independentes e de rua versus a pandemia

Com o isolamento social, alguns setores artísticos têm sido mais impactados que outros. Como os artistas circenses, independentes e de rua estão enfrentando o momento atual?

Publicado em 24/07/2020

Atualizado às 17:01 de 03/12/2021

Por Andréia Briene

O cenário cultural já vinha enfrentando uma série de dificuldades muito antes do isolamento social, iniciado em meados de março deste ano. Com a declarada pandemia, as atividades artísticas e os eventos culturais que necessitam do encontro físico, da presença de pessoas, foram chamados a pensar novas formas de continuar com suas atrações. Voltando o nosso olhar para o setor do circo, podemos perceber que o prejuízo gerado vai além da questão financeira.

Maria Carolina Vasconcelos e Oliveira (imagem: Michel Igielka)

Para entender um pouco deste cenário, conversei com as integrantes da Rede Brasileira de Circo, formada por representantes de colegiados, sindicatos, associações e cooperativas de circo e de artistas, com o Movimento Circo Diverso (MCD), coletivo criado em 2016 por grupos circenses e artistas individuais, e com artistas circenses, independentes e de rua.

As articulações dos grupos e os movimentos do setor

As ações realizadas tanto pela Rede Brasileira quanto pelo MCD neste período de pandemia têm se dado muito na comunicação e na divulgação das atividades do setor. Segundo Viviane Rabelo Muñoz, filha de artistas circense e gestora do Centro Cultural Arena Circus, a Rede vem se articulando através de grupos de WhatsApp, lives nas redes sociais e em fóruns de discussão, realizando mapeamentos, pesquisas e reuniões com autoridades nas três esferas do governo. Com essa mobilização, a Rede conseguiu apoio com prefeitos para acolher os circos com estrutura mínima e suprimentos de necessidades básicas para famílias itinerantes, apoio na divulgação de campanhas de solidariedade, parceria com empresas e fundos para distribuição de cartões de vale-alimentação. 

Nessa mesma direção, segundo as integrantes do MCD, Maria Carolina Oliveira, pesquisadora  em artes e cultura e professora há mais de 15 anos, e Fernanda B. Vilela, uma das idealizadoras do Circo Futuro (plataforma de apoio à criação artística no campo do circo), o movimento tem se articulado a outras ações culturais e artísticas, acompanhando as discussões dos comitês gestores de emergência cultural nos níveis municipal e estadual, visando informar a operacionalização da Lei Aldir Blanc, entre outras interlocuções. Como movimento, a presença mais forte, atualmente, tem sido no Comitê Estadual e na campanha Força, Artistas, com a tentativa de incluir nos debates os realizadores circenses que estão fora do contexto do circo itinerante – artistas que costumam se apresentar nas ruas, em teatros ou centros culturais, por exemplo – e as companhias e grupos relacionados ao que vem sendo nomeado como circo contemporâneo.

Marcelo Mamute (imagem: Rafael Rodini)

Sobrevivência dos artistas

Pensando no impacto financeiro no setor cultural de modo mais amplo, algumas pesquisas estão sendo realizadas, como as do Observatório de Economia Criativa da Bahia (Obec/BA) e a de Percepção dos Impactos da Covid-19 nos Setores Cultural e Criativo do Brasil , ainda que ambas não façam um recorte específico setorial.

A respeito do impacto dos cancelamentos das atividades artísticas no circo, Muñoz afirma que os 90 circos do estado de São Paulo estão há mais de cem dias sem abrir suas lonas. Considerando que cada circo arrecada 20 mil reais a cada 7 dias, em 14 semanas o prejuízo calculado chega a 25,2 milhões de reais. Essa é a realidade enfrentada por circos em várias regiões do Brasil. 

Para Cláudio Gomes, o palhaço Pimentinha, dono do Circo dos Anões, a trupe não se apresenta há quatro meses e tem sobrevivido com o apoio de doação de alimentos dos moradores da cidade Cabo de Santo Agostinho, em Pernambuco, onde estão instalados. Em situação muito parecida estão os artistas independentes e de rua, como nos conta Marcelo Mamute, psicólogo pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), malabarista e criador da campanha Força, Artistas. Em parceria com o MCD, via Secretaria de Estado de Cultura de São Paulo e Fundo Social, a mobilização conseguiu destinar 250 cestas básicas e 50 cartões de vale-alimentação no valor de 100 reais por três meses, para fortalecer pessoas que vivem do chapéu e com filhos pequenos. 

Mamute afirma que os artistas independentes e de rua estão desesperados e sem perspectivas. “A gente se formou para trabalhar com o público ao vivo. Então para nós a pandemia está sendo devastadora; muitos artistas estão buscando outras ocupações: fazendo pão, artesanato etc. Pessoas e grupos que eramsão referências para mim, que sempre estavam trabalhando com o Sesc, em festivais na Europa, chegam até mim pedindo cestas básicas. Isso só mostra o grau da vulnerabilidade da nossa classe, a gente não tem renda básica. Viver do chapéu é difícil, as pessoas que tinham uma reserva financeira já não têm mais.”

Os entrevistados elencaram outros problemas enfrentados pelos artistas: a falta de espaços adequados e com estruturas para equipamentos de técnicas aéreas; o acesso à internet; a falta de conhecimentos e de ferramentas para desenvolver atividades nos meios digitais; e a questão da produtividade, especialmente para as mulheres, que, trabalhando de casa, não têm atendimento escolar ou alguma rede de apoio para o cuidado de crianças e idosos. Tais problemas vão além da questão financeira. 

Para Oliveira e Vilela, além de não estarem recebendo pela venda de espetáculos ou cenas, os artistas tiveram de interromper quase todas as atividades de criação e pesquisa cênica, pois não podem se encontrar para os ensaios, e de paralisar totalmente seus trabalhos. As duas concluem: “A pandemia agrava fortemente as desigualdades de classe, raça e gênero que já operavam no mundo da cultura, e o discurso que orienta os artistas a 'se reinventar neste momento soa bastante cruel, pois tende a excluir ainda mais aqueles que já são vulneráveis. Por isso acreditamos que a pauta da lei de emergência cultural é fundamental neste momento, assim como outras ações pontuais para garantir a subsistência dos profissionais da cultura neste período de interrupção do trabalho. Na verdade, enxergamos que isso deveria ser um direito básico desses trabalhadores mesmo em condições normais. Na França, por exemplo, há mecanismos que garantem a remuneração de profissionais da cultura em períodos de intermitência”.  

E o futuro?

Pensando nos desafios e nas ações no futuro pós-pandemia, o cenário incerto já apresenta novos formatos e expectativas. Para Muñoz, “o circo sempre se reinventa ao longo de décadas de história. Neste momento, tem realizado espetáculos ao vivo nas redes sociais, buscando parcerias de pessoas físicas e jurídicas, e se movendo para abrir suas lonas com espetáculos drive-in. Em um segundo momento, irá adaptar seus assentos com distanciamento de 1,5 metro. A grande mudança será nos bastidores do circo. Acreditamos que as estruturas irão diminuir e as famílias circenses itinerantes serão reduzidas das grandes lonas. O circo pouco se moverá. As escolas de circo criarão videoaulas e aulas on-line. As companhias e os artistas independentes recriarão seus espetáculos em espaços inusitados em ações virtuais ou sem aglomeração, como espetáculo em condomínio”.

Claudio Gomes, palhaço Pimentinha (imagem: acervo pessoal)

O mesmo espera Gomes, que pretende continuar com os espetáculos como sempre fez, mesmo com a possibilidade de plateia reduzida. “Nosso alimento e nosso esforço dependem das pessoas e das bilheterias, mas também trabalhamos no picadeiro para ver as crianças, adolescentes e adultos com sorriso no rosto. Isso é gratificante para nós.” 

Mamute iniciou uma rede de acolhimento psicológico para artistas circenses independentes e de rua e pretende, no futuro, seguir com as atividades artísticas e formativas (aulas e palestras) e com os atendimentos.

Já para as integrantes do MCD ainda está muito difícil prever qual será o novo “normal” e quando ele será estabelecido: talvez se manifeste em uma onda de trabalhos solo ou de projetos em formato on-line – lembrando que essas possibilidades estão longe de ser acessíveis a todos os realizadores/artistas; talvez novos formatos e mídias venham para ficar, como os circos em vídeos e mesmo os de lona em formato drive-in. 

“O que sabemos, com certeza, é que o circo continuará existindo, assim como as artes cênicas no geral. Afinal, essas artes já sobreviveram aos desastres mais terríveis. E sobreviveram aos contextos políticos mais terríveis também. Ou seja: resistiremos. E este contexto nos trará novos temas, novas estéticas e poéticas, já que parece impossível fazer arte de maneira alheia a tudo o que está acontecendo no momento atual.”

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