Acessibilidade
Agenda

Fonte

A+A-
Alto ContrasteInverter CoresRedefinir
Agenda

Ativo2104 | A palavra que resta

Winnie Bueno, colunista do site do Itaú Cultural, fala sobre o novo romance do escritor cearense Stenio Gardel

Publicado em 02/05/2021

Atualizado às 15:11 de 03/05/2021

Por Winnie Bueno

Por Winnie Bueno

A literatura brasileira contemporânea tem avançado em apresentar narrativas, personagens, cenários e memórias que mobilizam um olhar sobre o Brasil que é mais justo com a pluralidade do tecido social brasileiro. A Palavra Que Resta, romance de estreia do escritor cearense Stenio Gardel compõe esse importante momento. A partir dos passos de Raimundo, um idoso que busca se alfabetizar para conhecer o conteúdo de uma carta deixada por um amor interrompido pela violência da homofobia. A história de Raimundo nos possibilita pensar sobre um tema que muitas vezes é ocultado dos debates que circundam o ativismo LGBTQIA+: o envelhecer. Os afetos e as possibilidades de construção de redes de apoio entre pessoas LGBT da terceira idade, muitas vezes são ocultados. É como se essas pessoas não tivessem direito a velhice, a partilhar suas histórias, a curar suas dores.

 Ao mesmo tempo, a história de Raimundo nos causa incômodos. Incômodos que são mobilizados em mim por fazer parte dessa comunidade e por estar um pouco cansada de ver lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais retratados exclusivamente a partir de suas dores. A narrativa de Stenio concentra-se de forma muito profunda em relatar as violências sofridas por Raimundo, seus traumas, tudo aquilo que lhe foi restringido e tomado pela homofobia, uma realidade que conhecemos mas que ao insistirmos nelas acabamos fixando os LGBTs em um subjetividade de sofrimento e dor. E não somos só isso, nós também temos momentos de alegria, vitórias, complexidades para além da exclusão. Os poucos momentos em que não estamos convivendo com a dor de Raimundo não são suficientes para tirar a narrativa de Stenio desse lugar que tem por pano de fundo principal demonstrar a dor da exclusão.

A fotografia em preto e branco retrata dois homens se beijando.
"Os afetos e as possibilidades de construção de redes de apoio entre pessoas LGBT da terceira idade, muitas vezes são ocultados" (imagem: divulgação)

 A exclusão dói. A exclusão vivenciada por décadas por um homem gay idoso machuca imensamente. Mas apesar da dor grupos subordinados como estes representados por Raimundo, que são LGBT, pobres, analfabetos, essas pessoas são capazes de viver para além da dor e do trauma. No conduzir da história percebemos que a vida de Raimundo foi constituída pelos seus traumas, especialmente por esse trauma causado pela violência que é mobilizada a partir do amor entre dois homens. A carta que Raimundo carrega, carrega esse trauma e suas dores. Na busca por superar o trauma da carta nunca lida e do amor não vivenciado na sua plenitude, Raimundo se vê diante da possibilidade de realizar algo que lhe foi frustrado pela violência da pobreza: ser alfabetizado e conhecer as palavras que lhe faltaram, conhecer as ausências e preencher de respostas seus questionamentos sobre a dor.

Palavras são importantes e a forma com que Stenio usa as palavras para contar a história de Raimundo é para mim o ponto alto do texto. A escrita de Stenio concretiza que as palavras dependem do modo de uso das palavras e o modo que Stenio usa as palavras dá vida para os personagens e para a história que ele conta. A história de Raimundo vale a pena ser lida, sobretudo pela possibilidade de imaginar a partir da busca de Raimundo algo para além de suas dores.

É possível pensar a vida de pessoas LGBT velhas sem o protagonismo da dor? Esse é um convite não feito na obra de Stenio mas possível a partir da afeição que construímos com Raimundo. Pensar em Raimundos que possam encontrar felicidade e alívio a partir da superação de suas dores ocupando lugares forjados para si a partir de um sentido criado por si mesmo, não para projetar dor, mas para viver além da dor.

 

Compartilhe