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Brisa Flow e sua resistência não domesticada

Na sua primeira coluna com entrevistados, Nayra Lays conversa com a cantora e rapper Brisa Flow

Publicado em 18/02/2019

Atualizado às 12:01 de 08/09/2022

Por Nayra Lays

Seja bem-vinda(o) à Travessia #1. A trilha sonora sugerida para a nossa primeira viagem é o álbum New Energy, do Four Tet, um dos artistas citados como referência da nossa convidada. Convido você a ouvir enquanto lê. :) 

“Tô fazendo comidinhas. Te espero”

Foi assim que Brisa de la Cordillera Collío, conhecida artisticamente como Brisa Flow, me recebeu para conversarmos sobre a vida. Quando fiz o convite para passarmos uma tarde juntas, trocando ideias e referências sobre o que desse na telha, eu sabia que, entre muitas coisas, gostaria de conversar com ela sobre liberdade. Desde o nome leve que ao mesmo tempo carrega força ancestral até os versos que parecem ser escritos sob inspiração de uma intuição viva, o que sempre me chamou atenção na musicalidade da cantora, compositora e MC é a sensação de estar em um rio cristalino, onde todo tipo de emoção é vista durante um mergulho e experimentada com a naturalidade de quem sabe que é e pode se permitir demonstrar plural.

A cantora e rapper Brisa Flow lançou o disco Selvagem como o Vento no final de 2018 (imagem: Bruna Monique)

Filha de imigrantes chilenos, Brisa veio para o Brasil ainda na barriga e viveu com a família em Minas Gerais até 2013, quando se mudou para São Paulo (SP). Durante a infância na cidade mineira de Sabará, viu-se isolada pelo medo que a mãe tinha de que ela e o irmão sofressem xenofobia no novo país. Em casa, ouvia músicas e histórias dos povos nativos chilenos, e fala desses momentos como fortes influências para o reconhecimento de sua identidade ameríndia. Quando saía dali, porém, sentia na pele vermelha a pressão do embranquecimento no Brasil. Na adolescência, tentou alisar ainda mais o cabelo, usava algodão no nariz para deixá-lo pra cima, maquiagens em tons mais claros, e exagerava nos filtros das redes sociais que usava. O punk e o rap foram as sementes que germinaram nela o desejo de ser quem realmente era, o que causou estranhamento e o afastamento das amigas do colégio onde era bolsista.

“Eu sinto que o rap me abraçou muito. A cultura negra no Brasil me abraçou muito”

Na cozinha, enquanto corta os legumes e as folhas para almoçarmos, Brisa me conta sobre as mudanças de hábitos que adquiriu em 2018, como estratégia para se manter viva: descobrir o dia da feira para comer bem durante a semana, por exemplo. O cuidado com o corpo, os passeios a lugares aonde nunca tinha ido, a vontade de experimentar novas linguagens artísticas, a seleção do que vê nas redes sociais e as férias com o filho, Davi, no meio do mato, sem pensar em trabalho. Qualidade de vida tem sido um importante ato político após uma fase intensa de uma agenda noturna, em parte por causa da rotina de shows.

Passados "Dias e Noites de Amor e Guerra", com vontade de viver um próximo passo, a artista se propôs a gestação de algo novo. Esse filho, que só veio a ter corpo, energia e nome com o passar dos meses, se desenvolveu solto, em seu próprio tempo. Selvagem como o Vento, lançado em dezembro de 2018, é um abraço necessário pós-eleições. Brisa Flow teve o cuidado de se dar espaço para criar o que surgisse, sem se preocupar demais com o “rap game”. Alimentou-se das aulas de antropologia na licenciatura em música, dos estudos sobre Klauss Viana, da dança e do medo diante do cenário político construído durante o ano, e se movimentou.

No estúdio montado em um apartamento, o disco foi tecido, pouco a pouco, gravado, sentido, gravado outra vez, entre comidinhas e incensos acesos nos espaços de silêncio da cidade. Quando foi avisada que, mercadologicamente, não seria uma boa ideia lançar um disco no final do ano, respeitou novamente o fluxo e explicou que esse era um trabalho sobre 2018 – logo, não faria sentido lançá-lo em 2019. Selvagem como o Vento nasce dois anos após Newen, seu primeiro disco, uma idealização de qual mulher ela queria ser naquele momento. Já o novo trabalho reforça a necessidade do cuidado em todos os aspectos, resultado dos anos se lapidando e se entendendo.

Brisa Flow gravou seu mais recente disco em um estúdio montado em um apartamento (imagem: Jonas Amancio)

“O único momento em que não sinto dor é quando estou cantando”

Com um sotaque calmo, Brisa fala com naturalidade dos processos da vida e da música, inclusive sobre ansiedades na hora de compor, como aconteceu na cypher* "Rima Dela #1", de que participou em 2017 ao lado de outras cantoras e MCs. O verso foi escrito 45 minutos antes de ser gravado, na mesa de um bar próximo ao estúdio, e conta com uma frase que fala muito do que é a artista: "pros parceiro, uma brisa, pros vacilão, furacão".

Brisa sente, vive e compõe sobre feminismo, bissexualidade, identidade, maternidade, luta, leveza e o que mais quiser, sem culpa, com características próprias, como uma força da natureza que transforma tudo o que toca e canta. Nos processos de desenvolvimento do seu trabalho, faz questão de acompanhar tudo de perto, opinar (mesmo sentindo que alguns produtores não gostam) e colocar a mão na massa sempre que necessário. Com orgulho, fala da lição que aprendeu com os pais artesãos: se você não tem, faça por conta própria.

E ela faz.

Ao final do nosso encontro, Brisa Flow me mostra um dos sons que não entraram em Selvagem como o Vento. Com sample de “Iemanjá”, de Serena Assumpção, a artista também se revela água, canceriana, que lava suas cicatrizes para conseguir seguir selvagem, leve e livre. Viva. Nós nos despedimos com um abraço de “até breve”. Afinal, sabemos que o que tornou este encontro possível também será o motivo de um reencontro: a música.

Obrigada, Brisa. E não se esqueçam de beber água.

Ouça Selvagem como o Vento.

Para #mergulharnacidade, Brisa Flow indica a exposição de Rosana Paulino na Pinacoteca.

 

*No rap, a cypher é uma reunião de MCs para elaborar rimas inéditas com o acompanhamento de um DJ.

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