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Caminhos para a maturidade das políticas públicas culturais no Brasil | Jacqueline Baumgratz

O Observatório Itaú Cultural conversou com Jacqueline Baumgratz, que coordena o Projeto Boa Vista Capital da Primeira Infância, em Boa Vista (RR). Na entrevista, ela fala dos desafios que enfrenta neste momento e de outros marcos em sua vida profissional

Publicado em 13/06/2018

Atualizado às 11:00 de 05/10/2018

Jacqueline Baumgratz é pedagoga, psicopedagoga, arte-educadora e psicanalista. Especializada em gestão de políticas culturais (Universidade de Girona/Espanha e Observatório Itaú Cultural/Brasil), ganhou o Prêmio Tuxáua/MinC – Articulação de Projetos Culturais. 

Autora dos livros Cultura Popular do Vale do Paraíba Paulista, Rodas e Brincadeiras Cantadas, Brinca Brasil e Viva a Diversidade!, foi diretora de cultura e patrimônio (2013-2016) na Fundação Cultural Cassiano Ricardo (FCCR), em São José dos Campos (SP), e é professora do curso de gestão e elaboração de projetos pela Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo e do curso técnico de teatro do Senac/SJC/SP. Hoje também trabalha como coordenadora-geral do Projeto Boa Vista Capital da Primeira Infância – Urban95 –, parceria entre a Fundação Bernard van Leer, na Holanda, a Companhia Cultural Bola de Meia, no Brasil, e a prefeitura de Boa Vista.

Como funciona a Companhia Cultural Bola de Meia? Quais são os principais projetos e atividades desenvolvidos?

A Companhia Cultural Bola de Meia é uma organização civil de direito privado sem fins lucrativos, qualificada pelo Ministério da Justiça como organização da sociedade civil de interesse público (Oscip) e fundada em 1989, no Vale do Paraíba. Em nosso site há informações como missão, parcerias e prêmios.

Você participa da Fundação Cultural Cassiano Ricardo (FCCR) na área de patrimônio, certo? Pensando na cidade de São José dos Campos, quais são os desafios para a implantação de políticas culturais para esse setor?

Atuei na diretoria de cultura e patrimônio da fundação no período de 2013 a 2016. Foi desafiador em diversos aspectos. O que ajudou muito foi fazer parte de uma equipe que vinha de um movimento cultural, alguns com atuação local, regional e nacional. Fez total diferença o fato de ter como presidente institucional o sociólogo Alcemir Palma, bastante envolvido com a questão do Sistema Nacional de Cultura (SNC), e ter como gerente de ação descentralizada o artista e educador Emanuel Araújo, que trazia em sua bagagem e formação artística a experiência como diretor cultural em São Sebastião [SP], entre outros colegas igualmente envolvidos nas questões da cultura e da arte.

Posso dizer que nem por isso foi fácil. Pelo contrário, tivemos todos de lidar com nossas limitações na gestão pública, com a burocracia, com a deficiência comunicacional e o acesso e domínio das novas tecnologias, entre outros problemas. Porém, o que é muito curioso é que, apesar de tantos desafios, a questão financeira não aparecia como a principal dificuldade de gestão. Isso não significa que a FCCR tivesse recursos sobrando, mas, se comparada à realidade nacional, tinha um bom aporte. O problema geralmente está no investimento, na distribuição, na manutenção dos equipamentos culturais de uma cidade com mais de 600 mil habitantes e tantas desigualdades sociais e territoriais.

No caso de manutenção de prédios públicos, pensando na salvaguarda do patrimônio histórico e cultural, de natureza material e imaterial, demos alguns passos importantes. Resolvemos utilizar muitas ideias implementadas pelo Programa Cultura Viva por meio de editais, como o Prêmio Mestre Cultura Viva e o Prêmio Pontos de Cultura, além de concursos, reformas, restauros possíveis e necessários. Incentivamos audiências, realizamos conferências para fortalecimento do Sistema Nacional de Cultura e seu Conselho, Plano e Fundo (CPF). Tudo isso demandava coragem e exposição permanente dos gestores ante a opinião pública – o que nem sempre é muito tranquilo.

Buscamos uma relação mais circular, horizontal de escuta com os atores sociais locais e regionais, triplicamos os recursos para formação, por meio de oficinas, para que as pessoas pudessem ter acesso gratuito a diferentes linguagens artísticas. Incentivamos a melhoria e o planejamento junto às casas, promovendo mais autonomia e participação nas decisões.

Um grande desafio da gestão era como decidir quando o cobertor era pequeno para todos, quais ações deveriam ser prioridade. Sabemos que os programas e os projetos com maior apelo mercadológico teriam mais chance de sobreviver, e os com menor apelo deveriam ser mais fomentados, incentivados. Mas essa lógica nem sempre fecha a conta, pois no Brasil ainda é muito difícil fazer com que a iniciativa privada – as empresas – assuma com dignidade, respeito e continuidade toda uma orquestra sinfônica ou o restauro de um importante patrimônio histórico e cultural ou até um patrimônio natural, como seria o caso de um rio. E sabemos que dificilmente o próprio governo conseguirá dar conta sozinho de algo tão grandioso sem desnutrir ou prejudicar outras linguagens artísticas de igual importância, e de menor visibilidade.

É cruel ter de escolher para onde vai mais ou menos recurso, já que todos, constitucionalmente, têm os mesmos direitos ao acesso e à expressão artística e cultural. Pensando assim, a institucionalidade da cultura exerce essencialmente função mediadora no processo de construção democrática de um país. Porém, como lembra Teixeira Coelho, o princípio da democracia é “tratar diferente os desiguais”. Ou seja, é necessário fazer escolhas e, para isso, é imprescindível um Estado “inteligente”, que pensa, planeja, age, argumenta e paga o preço de suas decisões.

O grande problema é que de quatro em quatro anos ocorrem rupturas pelo processo eleitoral – e muito do que se é construído pode ser ameaçado. Apenas o que se consolida como política pública de Estado sobrevive juntamente com a tensão criada por meio de participação social nos processos decisórios.

A arte aproxima, sensibiliza, traduz, permite o poema quando as palavras se cansam de andar “na linha”. A criação faz parte dos artistas, dos que produzem cultura. Escolher o que ver, ouvir, sentir e apreciar é papel de cada pessoa. Possibilitar condições de acesso, produção, difusão, preservação, livre circulação, regular as economias da cultura, evitar monopólios, exclusões, ações predatórias, democratizar o acesso aos bens e serviços culturais – tudo isso é papel do Estado.

Em entrevista ao Observatório, o professor Marco Antônio de Almeida falou sobre o desafio do uso das tecnologias de informação e comunicação (TICs) pelos Pontos de Cultura e sobre a capacitação dos agentes culturais para o uso das ferramentas que foram demandadas (softwares livres, uso de computadores etc). Você tem uma relação muito próxima com os Pontos de Cultura na cidade de São José dos Campos. Pode comentar se esses pontos tiveram tais dificuldades e o que fizeram para superar? Atualmente, como estão as atividades?

Sim, tive a singular oportunidade de participar com a organização social e cultural da qual faço parte e sou uma das fundadoras. Também ousamos institucionalmente, trabalhamos muito, pesquisamos, construímos compartilhamento e propusemos ao Ministério da Cultura (MinC) o lançamento do edital Prêmio Pontinhos de Cultura para as instituições que atuam especificamente com a cultura da criança. Isso me proporcionou um olhar diferenciado para o Programa Cultura Viva. Acredito que realmente esse programa tenha cumprido seu papel de “desesconder o Brasil”, e de baixo para cima, como tanto vem defendendo o incansável historiador Célio Turino nestes últimos 15 anos.

O MinC foi decisivo ao afirmar a agenda da cultura digital, conectando-se com os coletivos jovens, apoiando as redes que produzem e pensam cultura na internet, digitalizando a produção cultural e as artes para torná-las mais acessíveis, como a Cinemateca Brasileira, a Brasiliana USP, o Cais do Sertão no Recife, a Bienal de São Paulo. O MinC apoiou, criou ou ajudou a renovar, e isso não pode ser descartado por causa dos inúmeros retrocessos vividos no atual governo Temer, após o impeachment da presidente Dilma Rousseff (2011-2016).

Como bem diz um velho ditado popular: “Não se deve jogar a água com o bebê dentro”. O Programa Cultura Viva não estava interessado em ser o melhor programa de políticas públicas já existente, mas sem dúvida, para o Brasil, até o momento ele foi. Mesmo com todas as suas deficiências, fez a massagem do Do-In antropológico que tanto Gilberto Gil ilustrava, massageou instituições culturais, grupos artísticos existentes em todo o Brasil, fazendo pulsar a potência, extrapolando a situação de carência. Tanto que serviu de referência e estudo para muitos países não somente da América Latina.

Foi diagnosticado pelo próprio MinC que um edital atrelado a um kit multimídia não deveria prosseguir pelas questões óbvias geográficas, territoriais e culturais desta nação Brasil. No entanto, havia uma concordância conceitual de toda a equipe e seus gestores, principalmente Gilberto Gil, Juca Ferreira e Célio Turino, de que o acesso às novas tecnologias digitais era imprescindível para a elevação do processo civilizatório brasileiro, e nisso havia concordância e alinhamento com as principais lideranças artísticas e culturais. Portanto, os novos editais para Pontos e Pontões de Cultura procuraram corrigir essa questão passando a simplesmente exigir que parte dos recursos fosse destinada a equipar cada grupo ou instituição cultural selecionada.

Os editais que antes eram lançados pelo governo federal foram aos poucos sendo descentralizados para os estados e os municípios. São José dos Campos chegou a ter 13 Pontos de Cultura premiados em 2016, formando assim timidamente uma rede que aos poucos vai aprendendo a dialogar entre si, com as casas de cultura, com as gestões pública e privada. Ou seja, é um processo.

O importante para mim é que muitas lideranças culturais saíram do lugar da crítica pela crítica, ou da lamentação, para a construção conjunta. Inclusive, com as novas tecnologias, outras formas de criação foram surgindo, híbridas, tecnológicas, tradicionais. Elas vão desenhando outra maneira de ver e respeitar a diversidade cultural do Brasil em constante diálogo com o mundo.

Daí fazem sentido as expressões de Darcy Ribeiro a respeito de que o melhor do Brasil é o brasileiro; passamos a entender melhor a questão antropológica desse brasileiro e a “ninguendade” porque não somos nem índios nem portugueses nem espanhóis. E o que nos tornamos, afinal? Seres plurais? Somos multifacetados? Oswaldianamente antropofágicos. Sim, e muito mais!

Creio que podemos beber na fonte do Medialab-Prado, em Madri, na Espanha, para criar, sim, muitos “laboratórios cidadãos” de produção, investigação e difusão de projetos culturais, a fim de explorar as formas de experimentação e aprendizagem colaborativa que já surgiram e surgirão ainda mais com as redes digitais. Penso que não há mais volta, existe uma necessidade eminentemente humana de contato com as pessoas e suas experiências, projetos, programas de forma livre, colaborativa e autogestionada.

Os parques-bibliotecas de Medellín, na Colômbia, são ótimos exemplos. O uso das TICs facilita trocas e promove o diálogo entre os diversos atores e saberes envolvidos, desempenhando, sem dúvida, um papel importante na recuperação do tecido urbano e no fortalecimento do capital social. Os sistemas de georreferenciamento urbano serão cada vez mais efetivos para o equilíbrio e a diminuição da desigualdade social, identificando os territórios de maior vulnerabilidade e, portanto, auxiliando nas decisões de investimentos prioritários.

Creio que a água suja a ser jogada seria a correção por parte do MinC de editais não conveniados para “premiação” com participação aberta a instituições ou coletivos culturais, em que a simplicidade na prestação de contas diria respeito à obra final proposta, inovadora, criativa e, assim, mais eficiente do ponto de vista do acesso sem transpassadores. Os órgãos públicos deveriam ficar com as ações e os programas mais permanentes e de formação, dando acesso gratuito a informações e bancos de dados.

Penso que os eventos, aqueles com facilidade de aporte com o mercado cultural, com exceção dos que são de natureza oficial de cada cidade ou território, deveriam buscar recursos na iniciativa privada, como já ocorre em muitos países por meio de patrocínio e até de incentivo ou isenção fiscal.

Penso que sempre é tempo de aperfeiçoamento. Não é porque não deu certo quando havia mais recursos para a cultura no Brasil que não dará certo agora, quando nosso país vive um momento de mais maturidade em relação às novas tecnologias e à educação livre, lembrando o livro Com o Cérebro na Mão, de Teixeira Coelho. Temos muito mais acesso à informação em 2018 do que tínhamos em 2004. Creio que naquele momento o Programa Cultura Viva tenha cumprido seu papel. Hoje, temos outro Corpo-Brasil.

Você está coordenando um projeto para a primeira infância na cidade de Boa Vista em parceria com uma instituição holandesa. Pode comentar mais essa iniciativa?

Trata-se do Projeto Urban95, com a Fundação Bernard van Leer. Aqui estão presentes o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e organizações parceiras, como Bola de Meia, Fraternidade sem Fronteiras e Casa del Niños.

A situação é bastante complexa, pois o estado de Roraima e, principalmente, Boa Vista não conheciam tamanha desigualdade social. A entrada de cerca de 40 mil venezuelanos trouxe a realidade agressiva da fome, com consequências inevitáveis de violência, prostituição, tráfico de pessoas e tráfico de drogas, bem como preconceito, xenofobia, sentimentos e situações semelhantes aos de estado de guerra, que precisam ser trabalhados emergencialmente. Sem contar que, além dos refugiados venezuelanos, há os haitianos e a questão dos indígenas de diferentes etnias.

Com toda a sua experiência e a sua atuação na área cultural, quais são, na sua visão, os maiores desafios ao pensar no universo da gestão cultural?

Creio que os maiores desafios se situam na própria “gestão” e envolvem diversos fatores, entre eles a falta de escuta e diálogo efetivo dos governos com os principais atores sociais que fazem arte e cultura, a falta de autonomia dos gestores públicos de cultura, a falta de alinhamento de conceitos, pensamentos entre os gestores públicos, ações não planejadas e não contínuas, a falta de gestão participativa, horizontal e circular, a descontinuidade dos planejamentos estratégicos, pouca ou quase nenhuma integração e comprometimento entre os setores parceiros, a deficiente comunicação e formação, a falta de investimentos justos e necessários e o desconhecimento da utilização das novas tecnologias para a aproximação entre os atores sociais e a ampliação de possibilidades de novas criações e conceitos sobre arte e cultura em geral.

Cada vez mais me interesso pelo modelo alemão de gestão cultural. Penso que os gestores públicos no Brasil deveriam se preocupar muito mais em não atrapalhar os processos de criação, dos mais tradicionais aos mais contemporâneos, e pensar em como fomentar, incentivar parcerias privadas, distribuir recursos de maneira eficiente, desburocratizada, para que mais artistas e fazedores de cultura possam expressar-se livremente. Os artistas são extremamente necessários à elevação dos processos civilizatórios, historicamente, em toda parte do mundo.

Cada vez mais as pessoas lutam por liberdade, negam rótulos, buscam não “a identidade”, mas, sim, “as identidades” que as constituem como indivíduos.

 

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