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Cecília Meireles e uma certa presença no mundo

Em comemoração aos 120 anos da poeta, Anélia Pietrani, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), fala sobre a obra de Cecília

Publicado em 07/11/2021

Atualizado às 17:33 de 14/02/2022

por Heloísa Iaconis

“Certa ausência de mundo”: assim responde Cecília Meireles quando perguntada sobre o seu maior defeito. A afirmação, feita em uma entrevista a Haroldo Maranhão em 1949, intriga Anélia Pietrani, docente da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O pronome indefinido “certa”, segundo a professora, suscita uma reflexão: de que forma a poesia da autora dialoga com o mundo? Pois é essa indagação que guia estas linhas. Para celebrar os 120 anos de nascimento de Cecília, completados no dia 7 de novembro de 2021, Anélia destaca caminhos por meio dos quais se pode compreender como a artista sente e reelabora o seu entorno. Trata-se da presença dela, que se faz por matérias em leque – da ludicidade à violência, do pacifismo à trajetória na educação, da melancolia à reverência a culturas diversas. Construtora de afetos por meio das letras, essa presença também traz ausência e indefinições, a complexidade toda de ser vida reinventada.

Assinatura de Cecília Meireles | foto: Editora Global

O alerta de Ana C.

Antes de pesquisar a obra de Cecília Meireles, Anélia dedicou-se ao estudo da produção de Ana Cristina Cesar. Lendo o ensaio Literatura e mulher: essa palavra de luxo, de 1979, análise de Ana C. de livros de Cecília e Henriqueta Lisboa, a professora encontrou questionamentos quanto à recepção dos versos examinados. “Acho que Ana Cristina acerta ao se opor à maneira como os trabalhos de Cecília estavam sendo recebidos pela crítica: a partir da noção de que eles se colocam separados da história”, salienta.

Muitos críticos costumavam dividir os títulos da poeta: de um lado, as estrofes épicas e os textos sobre o Rio de Janeiro – esses, sim, exemplos de uma ligação com o domínio externo, de terra, de poeira e de política –; do outro, o restante, o belo desamarrado de contexto. Será mesmo que essa classificação se sustenta? Anélia defende a revisão do lugar atribuído a Cecília: “Ela realmente se preocupa com a forma, a sonoridade, a musicalidade, sem dúvidas. Mas isso não elimina a sua atenção para o social”. Seja contando fatos poeticamente em Romanceiro da Inconfidência (1953) ou ponderando o feminino em “Prisão”, a escritora conjuga o apuro estético e o fundo existencial à apreensão do universo em volta. E o alerta de Ana C., preciso nesse sentido, segue valendo.

Cecília Meireles | foto: Editora Global

Pedagogia da palavra poética

Em “Lamento do soldado por seu cavalo morto”, localizam-se duas características vitais do olhar-escrita de Cecília: o cuidado com as existências pequenas, metaforicamente pequenas, e a delicadeza de vidro (muitas vezes, afiado) com que aborda brutalidades – o sangue, a guerra, a morte. A artista não deixa escapar o sutil da rosa, tampouco perde o choro de uma dezena de mães. O miúdo e o áspero são, conforme explica Anélia, captados pelos valores humanistas de uma poeta também professora. “Esse pensamento pacifista de Cecília (revelado em criações líricas e épicas, em crônicas) está relacionado, a meu ver, ao seu papel de educadora”, avalia a estudiosa. Tem-se, nesse sentido, uma pedagogia da palavra poética, em que não se dissocia o compromisso artístico do empenho da profissional da educação. Cecília autora e Cecília docente andam de mãos dadas.

De mãos dadas em ações práticas: em salas de aula primárias ou de universidades; na inquietação quanto à qualidade de materiais didáticos (desse desassossego, surge Criança, meu amor, de 1923); em colunas no Diário de notícias; na assinatura do Manifesto dos pioneiros da educação nova (datado de 1932); na realização do sonho denominado Biblioteca Infantil do Pavilhão Mourisco (cujo funcionamento ocorreu de 1934 a 1937). E há ainda a impressão dessa dupla responsabilidade na atitude e na consciência inventivas de Cecília. Ao se voltar para a diversidade cultural do Brasil, ao viajar para o exterior e registrar suas impressões em jornais, ao fazer traduções de Tagore, Rilke ou Li Bai, agem juntas a escritora e a professora. Ao se concentrar em som, ritmo, canção, imagem, desenho ou dança, idem. Independentemente do público (gente menina e gente adulta) ou do suporte, em redondilhas ou em parágrafos, as duas essências estão em comunhão.

Assinatura de Cecília Meireles | foto: Editora Global

Sol e chuva, luva e anel

“Cecília Meireles foi importante na minha formação de leitora, como na de tantas pessoas. Ou isto ou aquilo, por exemplo, está nas escolas. Depois, ao dar aulas no curso normal do Instituto de Educação, em Niterói, trabalhei com elementos lúdicos de obras direcionadas, principalmente, para crianças”, recorda Anélia. Embora como pesquisadora tenha, em sua percepção, demorado a se ocupar de Cecília, ela cresceu com a poeta, contribuiu para que outras infâncias também desfrutassem dessa mesma companhia e carrega, em sua memória afetiva, os dilemas entre sol e chuva, luva e anel. Hoje, a esse tecido de ternura em que vivem lembranças e gostos, Anélia acrescenta Mar absoluto (1945) e “Balada das dez bailarinas do cassino”. O primeiro, o seu livro favorito da autora; o segundo, o seu poema preferido (publicado em Retrato natural, de 1949). Ambos “modificam a ideia de que a poesia de Cecília é só de contemplação”, pontua Anélia. É uma poesia que nos pega. Assim:


            “Dez bailarinas deslizam
            por um chão de espelho”


De carinho em carinho, carinho que cresce

Esses versos, com a licença da primeira pessoa, me pegaram. E vieram até mim com a voz de Anélia, em uma tarde de sábado, durante uma aula. Ultrapassaram o vídeo, a distância, o vai e vem da internet e pousaram em olhos, ouvidos e coração como asas de borboleta. Agora, pararam aqui, neste texto, à espera de novos voos. Você que os lê, leia-os inteiros, leia os demais versos que não couberam nesta página. Ande por um chão de espelho. Imagine as dez bailarinas deslizando. Ao escrever esta celebração de Cecília Meireles, observo o exemplar de Ou isto ou aquilo que comprei para Teresa – bebê ainda na barriga de Nara, minha amiga que adora Cecília. Desse modo, de carinho em carinho, cordão de Anélia a Teresa, certa presença da artista perdura. No mundo e no meu mundo. “Certa” não por ser indeterminada, mas por ser uma entre inúmeras.

Qual a presença de Cecília para você?

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