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Com Bertold Brecht, “Desertores” exibe a flor e a náusea do mundo atual

Dirigida por Márcio Marciano, a peça do Coletivo Alfenim põe em cena textos pouco conhecidos do dramaturgo alemão e pensa o teatro como projeto poético-político-pedagógico

Publicado em 28/08/2019

Atualizado às 11:19 de 02/06/2021

por Duanne Ribeiro

Em Desertores, do coletivo Alfenim, o teatro é um meio de intervir socialmente e de educar para a transformação – sem deixar de lado o artesanato estético. Selecionado pelo Rumos 2017-2018, o projeto visa a um diagnóstico do Brasil contemporâneo a partir de uma obra menos acessada do dramaturgo alemão Bertold Brecht (1898-1956), o Complexo Fatzer ou Material Fatzer – um agregado de frações de dramaturgia e reflexões do autor que, define o diretor Márcio Marciano, “tanto formal quanto tematicamente, dialoga profundamente com o momento de transe social e político que o Brasil atravessa hoje”. O grupo está em fase final de construção da peça.

Escrito por seis anos, Material Fatzer foi dividido por Brecht em duas categorias: documento e comentário. O primeiro, explica Márcio, traz “fragmentos e esboços de cena”. O segundo, “as reflexões e observações críticas do ‘autor de peças’ sobre o processo de escrita e sua função no contexto de um projeto poético-político-pedagógico para o teatro”. Em suma, registra o diretor, “aponta para a simultaneidade entre a composição ficcional e a reflexão crítica de sua eficácia, o que antecipa procedimentos da dramaturgia contemporânea”.

Desertores, do coletivo Alfenim, foi um projeto selecionado Rumos 2017-2018 (imagem: Tarciana Gomes)

“O desejo vem de longe”, conta Márcio sobre seu contato com a obra, “não exatamente de montar Fatzer, mas de estudar o material, sobretudo por Brecht referir-se a ele como do ‘mais alto padrão técnico’. Queria entender na prática o que ele quis dizer, verificando na sala com os atores o alcance da cena, não apenas pelo que efetivamente ela diz, mas por como se constrói o discurso, que é de alta voltagem e densidade poéticas”. Desde 2016, aproxima-se do trabalho. No início de 2019, após mais uma imersão, decidiram “encarar uma montagem”.

Encarar é verbo adequado, pois, como Márcio sublinha, “Fatzer impõe enormes desafios, seja da ordem da dramaturgia, seja da ordem da atuação”. E foi trabalhando com o texto que isso se mostrou claramente: “O corpo a corpo com a matéria bruta nos levou a perceber a enormidade do tema”. Levou-os também a um aprendizado do “método dialético da construção das cenas, uma dialética negativa no mais alto grau” [a dialética, no sentido que recebe desde os trabalhos de Hegel (1770-1831), filósofo alemão, consiste em um modo de pensar a realidade que segue suas transformações no tempo, admitindo as contradições como mecanismo de mudança. Já o termo dialética negativa se refere à reelaboração do conceito hegeliano por Theodor Adorno (1903-1969)]. Esse método, diz o entrevistado, “nos ensinou a duvidar das soluções imediatas”.

De acordo com o projeto brechtiano, Alfenim constrói um trabalho cujos objetivos são tanto estéticos quanto políticos e pedagógicos. “Acredito que um espetáculo atinge seu objetivo”, fala Márcio, “quando oferece ao público, de forma lúdica e prazerosa, elementos para a construção de um pensamento crítico acerca de sua condição”. Esse direcionamento marca a trajetória do coletivo, que “procura refletir sobre os aspectos contraditórios de nossa formação social. Nesse sentido, Fatzer nos ajuda a desvelar os mecanismos da ordem capitalista e os mascaramentos atuais da luta de classes”. Porém, ressalta ele, tudo isso “não deve ser buscado em detrimento do caráter artístico. A pedagogia no teatro somente se realiza enquanto fruição estética”.

Estético e pedagógico, portanto, e, como notamos, político – essas atividades, defende Márcio, “podem contribuir para uma intervenção ou ajudar na educação com vistas a transformações sociais”. Nesse sentido, comenta o diretor, “interessa-nos refletir sobre nossa impotência como indivíduos incapazes de dar uma resposta coletiva aos disparates da atualidade – isso porque a resposta implica uma ação violenta e o medo nos imobiliza”. O conteúdo de Desertores “pode nos alimentar e dar sentido a uma resistência que se torna mais e mais atual e necessária”.

Compor um espetáculo com essa perspectiva, continua ele, demanda “dispor-se a construir não apenas um, mas muitos pontos de vista sobre a realidade, de modo a revelar suas contradições e forças em disputa”. Essa diversidade de visões marcou todo o processo criativo de Desertores, que partiu de oficinas e debates com outros criadores. Nesta semana, isso prossegue: o coletivo realiza nos dias 30 de agosto e 1 e 2 de setembro ensaios abertos para os quais foram convidados provocadores de debate. “O que vamos apresentar já possui o acabamento de uma montagem, contudo, ainda precisamos dessa nova fase de diálogo para uma avaliação mais precisa do que é necessário corrigir, alterar, reescrever. Não descartamos a hipótese de voltar à sala de ensaios e rever o projeto como um todo. O olhar distanciado do público pode no auxiliar nisso.”

Ao mesmo tempo que itinera com outras peças suas – em setembro, seis cidades do interior da Paraíba recebem Helenas; em outubro, Rio de Janeiro e Vitória assistem a Memórias de um Cão –, o Alfenim, projeta Márcio, quer manter Desertores em cartaz na sede do grupo, a Casa Amarela. Em 2020, “pretendemos circular pelo país – mas ainda não temos fonte de financiamento”. O diretor afirma que montar a peça é um “foco de resistência” em “tempos de fezes” – citando o poema “A Flor e a Náusea”, de Carlos Drummond de Andrade, que verseja:

Olhos sujos no relógio da torre:
não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.

O trecho parece mesmo dar o tom do contexto em que busca intervir Desertores, do texto que o inspira e do processo de criação que o gerou – com efeito, a montagem aponta, como o poema, o nascimento de uma flor que fure “o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio”. Esse, todavia, não é um processo acabado: “Ainda temos muitas dúvidas sobre a montagem, mas Alfenim sai muito mais maduro dessa experiência de radicalidade estética e política”.

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