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Eliane Brum: “Reportagem é reflexão em movimento”

Jornalista, documentarista e ficcionista, Eliane Brum montou a curadoria do Série Repórter de 2015, encontro sobre “a narrativa do...

Publicado em 08/09/2015

Atualizado às 21:05 de 02/08/2018

Por Duanne Ribeiro

Jornalista, documentarista e ficcionista, Eliane Brum montou a curadoria do Série Repórter de 2015, encontro sobre “a narrativa do jornalismo por excelência”, isto é, a reportagem. O evento ocorreu no início de setembro e agrupou profissionais jovens e veteranos na prática do jornalismo: José Hamilton Ribeiro, Lúcio Flávio Pinto, Clóvis Rossi, Laura Capriglione e Bruno Torturra, entre outros. Eliane falou conosco sobre os convidados, as condições da produção jornalística hoje e a importância desse gênero de discussão. “É fundamental para qualquer sociedade que se conte a história cotidiana das várias comunidades. O repórter documenta a memória e tem a ambição de construir memória. A reportagem é uma reflexão em movimento sobre essa história em movimento.” 

 

Como foi feita a curadoria, qual recorte procurou trazer?

O principal eixo do Série Repórter é uma documentação de memória dos grandes repórteres, criando a cada edição um banco de memórias que fique disponível na internet e que possa virar debates, aprendizado, discussão nas faculdades de jornalismo e para não jornalistas, já que a imprensa interessa a toda a sociedade, não só a quem é jornalista, obviamente. Trata-se da memória dos grandes repórteres, das pessoas que contaram a história deste país e que continuam contando, cujo trabalho se confunde com a própria história. É o caso do Audálio Dantas, escolhido como homenageado da primeira edição, e agora do José Hamilton Ribeiro, que tem 80 anos de idade e 60 de reportagem e continua na ativa. Só de reportagem são 60 anos – mais ou menos três vezes o tempo de vida da maioria dos estudantes de jornalismo.

O trabalho do jornalista é um trabalho de documentador; nós documentamos a história do cotidiano, o que a gente faz é documento. E a gente precisa também se preocupar em documentar a experiência dos grandes repórteres ao contar essa história. Durante muito tempo, quando os mais jovens, os focas, entravam nas redações, encontravam lá velhos e experientes repórteres, que transmitiam seu conhecimento. Tinha um processo de ensinamento nas redações – os mais velhos ensinando os mais jovens. Hoje, com a crise do modelo de negócios, com a crise da grande imprensa, essa geração que ensinava foi eliminada das redações, o que torna ainda mais importante documentar essa experiência.

Por que retomar, especificamente, as experiências de Lúcio Flávio Pinto e José Hamilton Ribeiro? O que elas podem dizer aos repórteres de hoje?

Elas podem contar o que é reportagem. A gente está em um momento em que é preciso pensar como continuar fazendo reportagem. Porque a crise existe, o modelo de negócios está em crise, mas a reportagem continua a mesma. A reportagem é a narrativa do jornalismo por excelência. A reportagem é uma narrativa diferente de qualquer outra, que conta a sua época histórica. É uma coisa difícil, cara, complicada, que exige que cada repórter faça um profundo movimento de se desabitar de si para ir em direção ao mundo que é do outro. O principal instrumento da reportagem é a escuta; o repórter precisa checar cinco vezes cada informação que vai publicar, para ter credibilidade e o respeito do leitor. Cada um deles pode falar de como fez isso.

O Zé Hamilton passou pela Realidade, que é a publicação mais mítica da história da imprensa brasileira, passou por grandes redações e há 30 anos está no Globo Rural. O Lúcio Flávio é um grande repórter, o maior da Amazônia, um dos mais importantes do país. Ele trabalhou na grande imprensa, em São Paulo, coordenou uma rede de correspondentes na Amazônia – hoje essa é uma figura que desapareceu: com a crise, os correspondentes foram demitidos, os escritórios foram fechados e hoje não se pode dizer que se cobre o Brasil; o que a gente tem são enviados esporádicos. O Lúcio Flávio, quando percebeu que não podia mais fazer isso, fez algo muito ousado, que foi criar o Jornal Pessoal, um jornal feito por um repórter só e que tem contado essas histórias amazônicas por 28 anos. A gente fala tanto de jornalismo independente... O Lúcio Flávio é um precursor disso, ele conta a Amazônia de dentro, confronta todos os mitos, os preconceitos, os clichês. E, pelas suas virtudes, tem sofrido uma série de agressões, seja na Justiça, seja por violência física.

Cada um desses jornalistas tem a sua singularidade, e os dois são grandes repórteres, que têm um profundo respeito pela reportagem, um respeito que se mostra na própria vida, na própria trajetória. A gente está em um momento extremamente peculiar da imprensa. É preciso pensar sobre a reportagem: o jornalismo só vai continuar tendo importância se encontrar uma maneira de valorizá-la.

Outra mesa reuniu os jornalistas Bruno Paes Manso, Laura Capriglione, Bruno Torturra, Kátia Brasil e Rene Silva – há tanto representantes do jornalismo tradicional quanto os que despontam em novos modelos. O que muda e o que permanece na reportagem ao longo do tempo?

Para pensar este momento movediço em que a gente vive, com um número cada vez maior de demissões – são centenas de demitidos nos últimos anos nas grandes redações –, a gente convidou cinco repórteres, cada um com uma trajetória diferente, muito respeitáveis e reconhecidos, para contar como eles estão se inventando e, ao se inventar, reinventando o modelo a fim de continuar fazendo reportagem. E por que é importante continuar fazendo reportagem? Porque é fundamental para qualquer sociedade que se conte a história cotidiana das várias comunidades, dos vários Brasis. O repórter documenta a memória e também tem a ambição de construir memória. A reportagem é uma reflexão em movimento sobre essa história em movimento.

Eles têm trajetórias diferentes, vêm de momentos históricos diferentes, estão em processos de vida diferentes – mas todos são repórteres. E a reportagem, pelo menos eu acredito, continua a mesma. A reportagem é a forma de fazer, o rigor, a necessidade da escuta e da checagem, toda essa coisa extremamente complexa que é contar um acontecimento ou um desacontecimento com todas as nuances e as contradições, iluminando os cantos escuros, tornando visível aquilo que é invisível – a reportagem continua sendo feita da mesma maneira. O que muda, o que a gente está hoje no embate, é o modelo de negócios, como financiar. Mas aí é modelo de negócios. A reportagem é essa narrativa espetacular pela qual todos nós somos apaixonados e que é fundamental e insubstituível.

Hoje, com a internet, há uma ampliação das narrativas e dos narradores, o que é enorme e muito bacana, muito importante e tem o seu lugar, mas nenhuma dessas narrativas substitui a reportagem. Ela é outra coisa, exige outro tipo de mergulho, outro tipo de precisão, e não pode ser confundida.

No jornalismo da Ponte, da Mídia Ninja e nas suas colunas no El País, é possível ver alguns posicionamentos políticos claros, ou pelo menos a visão de que o jornalismo é um instrumento político de cobrança, de esclarecimento. Como você vê essa relação entre jornalismo e política?

Eu quero só separar uma coisa: as minhas colunas são colunas de opinião, elas não são reportagens. Eu escrevo uma coluna de opinião como uma repórter, o que significa que eu não tiro as coisas da minha cabeça, eu investigo, eu pesquiso, eu gasto muito tempo, muitos dias, para escrever uma coluna. Às vezes eu uso o espaço da minha coluna para publicar as minhas reportagens, mas isso fica claro. Eu separo bem o que é uma coluna de opinião – na qual dou a minha opinião a partir de uma investigação bem profunda – do que é uma reportagem – que é outro momento, em que eu preciso me desabitar, porque a escuta é a escuta do outro, seja ele um serial killer, um pedófilo, o que for. Você tem de escutá-lo não só nesse aspecto do que ele é, mas também em todas as nuances do que ele é – essa é a diferença.

O jornalismo, ao contar a sua época, sempre está fazendo também uma denúncia dela, ele está implicado na história. A total isenção, a total imparcialidade, ela não existe. Aquele jornalista que paira acima da sociedade é o mais perigoso, porque ele não toma as precauções necessárias. Nós somos seres históricos, com os dois pés enfiados, inscritos na cultura, e por isso a gente precisa se precaver para chegar o mais perto não de uma verdade – porque uma verdade única não existe –, mas o mais próximo das verdades todas. Por isso, o principal instrumento do repórter é a escuta, essa escuta que se faz com todos os sentidos e que te obriga a te despir de todos os teus preconceitos, das tuas visões de mundo, dos teus julgamentos, para escutar o outro na integridade do que ele é: isso é reportagem.

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