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Elke Maravilha: coerência em favor da arte de viver

O jornalista Chico Felitti, o diretor Rubens Curi, a atriz Zezé Motta e o fotógrafo Edson Kumasaka relembram histórias com Elke

Publicado em 24/06/2020

Atualizado às 18:59 de 26/06/2020

por Heloísa Iaconis

Dia 4 de junho de 1972, domingo, às 20 horas: o programa Buzina do Chacrinha começa; no elenco há uma nova integrante – Elke. E ali, participando dessa feira de puro Brasil, a estreante ganhou de um colunista o nome que a acompanharia sempre: Elke Maravilha. Antes, bem antes, a artista já havia sido, por exemplo, professora de francês, secretária trilíngue e Miss Glamour Girl de 1962. Mas foi com Abelardo Barbosa, o seu "painho", que ela se sentiu, enfim, pertencente a um emprego: a alegria autêntica de Elke ressoou no colorido posto no palco. Assim, semana após semana, ela fez morada na cultura brasileira, representando uma esperança de país coerente, longe de amarras, sabedor de sua potência criativa original. Tornou-se o rosto, a estética (mais é mais), o espírito de uma nação possível – e, desse modo, passou a ser conhecida por todos.

Elke Maravilha | foto: Daryan Dornelles

Quer dizer: muitos conheceram apenas a imagem que eles mesmos fabricaram de Elke, alegoria atada ao estigma de “exótica”. Ela, por sua vez, desejava interlocutores disponíveis para as entrelinhas, que se despissem de prejulgamentos e clichês. Era um convite ao exercício da liberdade, dela e do próximo. Nesse sentido, os que se dispuseram a retirar os véus dos olhos encontraram uma mestra do viver, cuja obra maior foi a própria existência. Contadora de histórias, generosa, dona de um enorme senso de responsabilidade, bem-humorada, culta sem ser pedante: essas são algumas das facetas de Elke guardadas naqueles que por ela se deixaram encantar. Quatro deles, desses que enxergaram além do mito, conversaram com o Itaú Cultural como forma de homenagear essa mulher maravilha, que teria completado 75 anos em fevereiro de 2020 se não tivesse, em 2016, ido brincar de outra coisa. O jornalista Chico Felitti, o diretor Rubens Curi, a atriz Zezé Motta e o fotógrafo Edson Kumasaka reacendem memórias e o afeto suscitado por Elke, afeto capaz de desmanchar barreiras e azedumes e lembrar toda uma gente de que são viáveis outros jeitos de estar no mundo.

A força da coerência

Está em um cartório em Bragança Paulista (SP) a certidão que revela: Elke Georgievna Grunnupp nasceu em uma cidade chamada Leutkirch e não em Leningrado, como costumava relatar. Isso significa, portanto, que ela era, de nascença, alemã, não russa. A descoberta é de Chico Felitti e foi divulgada no audiolivro Mulher Maravilha, biografia lançada neste ano pela plataforma Storytel. O interesse que levou o jornalista a esse e demais achados, porém, não surgiu em razão da obra recente: trata-se de uma curiosidade antiga, entusiasmo que remonta à época em que ele estava prestes a se formar na faculdade.

Era então 2007 quando o ainda estudante teve a ideia de esmiuçar, para o seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), a trajetória da artista. Com um colega que havia realizado uma campanha publicitária com Elke, conseguiu o número do telefone dela e ligou. Ligação atendida, marcaram o primeiro de uma série de encontros em São Paulo, os quais não se encaixaram, exatamente, no formato de uma entrevista. “Elke falava sobre o que queria e deixava que fosse gravado. Não importava o que eu perguntasse, arrumava um jeito de dar uma volta e responder com uma história. Ela era, aliás, a melhor contadora de causos que conheci”, ressalta Chico. No fim, o projeto universitário mudou de tema, mas permaneceu, no jovem repórter, o impacto gerado por tamanho controle narrativo.

Capa do audiolivro Mulher Maravilha (2020) | foto: Storytel

Tempo vai, tempo corre, Chico escreveu, na ocasião do falecimento de Elke, um obituário publicado na Folha de S.Paulo. Nesse texto, retoma o fato de ela ter sido mais perspicaz do que aqueles que a tentaram biografar: fora o domínio dos episódios que a compunham, existia também uma recusa em atrelar o seu percurso a uma biografia. Alexandre, o Grande ou Simone de Beauvoir, opinava, são os que devem protagonizar páginas e páginas. Ela não. Ou: ela sim, na perspectiva de Chico. Por discordar de Elke nesse aspecto, ele retornou, em 2019, às gravações de doze anos atrás e as encarou como ponto de partida para ressuscitar uma vontade interrompida. Logo, põe-se a viajar, encher um tanto de pessoas de perguntas, cruzar informações, reconstituir os passos da família Grunnupp: da Europa, chegaram na hospedaria da Ilha das Flores (a cerca de 6km da costa fluminense) em janeiro de 1949; em abril, acomodaram-se na chácara Cubango, terra perto de Itabira, em Minas Gerais. Depois, Acesita, Governador Valadares, Jaguaraçu e Belo Horizonte. Até que, na década de 1960, mudaram-se para Bragança Paulista, onde está o documento que comprova a origem de Elke – um dos nós desatados pelo jornalista.

“Outro exemplo: ela repetia que não sabia quem era Chacrinha antes de trabalhar na televisão. A família dela e Boni (diretor da TV Globo naquele período), entretanto, negam isso: mencionaram que Elke buscou essa oportunidade. A minha teoria é que ela construiu pequenas adaptações para deixar os acontecimentos mais atraentes”, afirma Chico. Dado que a sua arte era a vida, corrigiu o roteiro, dourou um pouco a pílula.

Atibaia, Porto Alegre, Rio de Janeiro, sem contar os endereços no exterior: cada fase de Elke Maravilha recebeu a atenção de Chico Felitti. No processo de feitura da biografia, evidenciou-se a força da coerência de Elke: “O que me impressionou foi que ela era coerente em tudo, alguém de retidão e disciplina. Coerente, inclusive, em sua generosidade: tratava com carinho qualquer um que a procurava, inclusive um aluno como eu”, frisa Chico. E, com essa roupagem (literalmente), cativante e doce, a “avó de Lady Gaga e Pabllo Vittar”, nas palavras do biógrafo, tocava em assuntos difíceis, de política a aborto, e convocava, como quem não quer nada, uma sociedade a se repensar.

Livre de autoridades

“Acho que o importante é isto: Elke era absolutamente livre de toda autoridade. Não lhe interessava o cargo que a pessoa ocupava (ator, filósofo, padre, o que fosse) e, sim, se algo do que foi dito reverberava nela. Colocava-se contra qualquer opressão e não tolerava mau-caratismo”: é desse modo que Rubens Curi caracteriza a amiga e, para ilustrar isso, recorda de uma vez em que ela visitou um presídio (prática regular dela). Certo dia, um dos detentos com quem mantinha contato estava na solitária, punição por ter desobedecido uma regra. Ela, de pronto, pediu para falar com ele: “Ô, meu irmão, dá uma maneirada. Veja: agora, você está preso aí”, aconselhou. Ao que o homem retrucou: “É uma questão de perspectiva, Elke: daqui de dentro, você que me parece presa”. “Ela se referia a essa passagem como fundamental. A partir dessa lição, começou a dizer, publicamente, que nós só temos a liberdade de escolher a prisão em que queremos ficar”, relembra Rubens. Fez-se, pois, inesquecível essa habilidade de captar sabedoria de onde menos se espera.

Rubens Curi e Elke Maravilha | foto: Acácio Nascimento

E são muitas as memórias de Elke que habitam em Rubens. A afinidade entre eles se estabeleceu logo de início, no final de 1986, em Curitiba. Escalado para atuar com ela em uma peça mambembe, ele sentiu uma identificação instantânea quando a avistou saindo do avião, na data em que combinaram de se conhecerem. Desde então, cultivaram uma amizade longa e íntima: moraram e badalaram juntos, compartilharam percepções, sofrimentos, o gosto pelo jazz, a busca por saúde. Rubens ajudou Elke a fugir de um marido psicopata e também a apresentou para Sasha, artista plástico que foi o último dos oito casamentos dela. No ofício de diretor, conduziu-a em dois espetáculos: Elke do Sagrado ao Profano, de 2003 a 2010, e Elke Canta e Conta, de 2015 até uma septicemia ter a levado embora. Durante a curta temporada do segundo show, ela chegou a subir no palco à custa de remédios, escamoteando as dores na úlcera para não decepcionar a sua plateia – prova derradeira de seu senso de responsabilidade, mais uma qualidade da amiga que Rubens sublinha com admiração.

Total ausência de preconceitos

A necessidade de não possuir âncoras afastou Elke Maravilha do anseio de ter filhos. Mas, se, por um lado, ela não se reconheceu na maternidade, por outro, a função de madrinha se ajustava sob medida a ela. População carcerária, gays, prostitutas, portadores de hanseníase: vários foram os grupos que, postos à margem do organismo social, acharam acolhimento na artista. Essa postura fascinou de imediato Zezé Motta: “Ela simboliza, para mim, a total ausência de preconceitos. Na verdade, esse é o certo. Porém, vemos tanta barbaridade por aí que, ao nos encontrarmos com indivíduos iguais a Elke, acabamos nos espantando”, pondera.

As duas dividiram um quarto, em 1975, na Bahia, em virtude da gravação de A Força de Xangô, filme de Iberê Cavalcanti em que contracenavam com Grande Otelo e Dona Ivone Lara. Dessa experiência, Zezé conserva a gentileza e o contentamento da amiga. “O hotel onde nos hospedamos estava em obras. Por esse motivo, tomávamos café na padaria ou no bar. Elke se arrumava, passava aquele batom vermelho e, antes de irmos comer, atendia a todos que a esperavam na porta. Ela já era famosa e distribuía beijos e autógrafos diariamente, sempre de bom humor”, descreve.

Zezé Motta e Elke Maravilha | foto: arquivo pessoal

No ano seguinte, voltaram a se reunir em torno de um filme, agora no título que consagrou Zezé: Xica da Silva (1976), de Cacá Diegues. Após esse longa, contudo, não retornaram para o mesmo set – o que não indica que a amizade terminou ou que Elke abandonou as telonas. De seus papéis no cinema, destacam-se as atuações em A Noiva da Cidade (1978), de Alex Viany, e Pixote, a Lei do mais Fraco (1980), de Hector Babenco. Quanto ao laço com Zezé, perdurou estrada afora, uma apoiando a outra até em momentos dolorosos como o 7x1 brasileiro, jogo a que assistiram juntas. “A convivência com ela foi um privilégio: era tão culta, mas não fazia propaganda disso, não se gabava por falar oito idiomas”, relata Zezé. Eis um dos trunfos de Elke: usou a sua bagagem não para se vangloriar; colocou o seu conhecimento a serviço de uma comunicação popular e humana.

Alma aberta

“Eu tenho mais a lembrança do espírito dela do que dos fatos”, diz o fotógrafo Edson Kumasaka. Ele trabalhava como assistente de direção de Tizuka Yamasaki quando a diretora firmou contrato para realizar o filme Xuxa Requebra (1999), cujo elenco contava com Elke. Encarregado de cuidar dela, rápido notou que a tarefa nada era complicada, visto que, segundo ele, Elke era alto astral e querida pela equipe inteira. Reencontraram-se anos depois, em 2005, ocasião em que ele fotografou um debate do qual ela participava.

O vínculo maior, entretanto, ocorreu por intermédio de Rubens Curi: convidado para documentar, em vídeo, o espetáculo Elke do Sagrado ao Profano, Edson ouviu algumas das histórias da artista e, ali, deslumbrou-se com o ativismo dela, face que, para ele, deveria ser descoberta por mais gente. “Ela precisa ser conhecida em toda a sua intensidade”, enfatiza Edson. Energia que só aqueles de alma aberta e sorriso largo têm. Como Elke Maravilha.

Edson Kumasaka e Elke Maravilha nas filmagens de Xuxa Requebra (1999) | foto: arquivo pessoal
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