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Em novo romance, Sheyla Smanioto dá sequência à sua pesquisa sobre a relação da literatura com o corpo

Ainda sem título definido, a obra será escrita com o apoio do Rumos Itaú Cultural

Publicado em 06/08/2019

Atualizado às 15:54 de 21/08/2019

por Letícia de Castro

“Compreender como a palavra entra no corpo, passeia entre os órgãos, transforma nossa respiração, nossas sinapses, impacta nossos músculos.” Assim a escritora Sheyla Smanioto define sua relação com a literatura e seu projeto de vida. Autora de Desesterro (Record, 2015), vencedor do Prêmio Sesc de Literatura, Sheyla ganhou o apoio do Rumos Itaú Cultural para escrever o seu terceiro romance, ainda sem título definido, que vai integrar a tetralogia iniciada com seu premiado romance de estreia.

Nascida em 1990, em Diadema (SP), Sheyla é mestre em teoria literária pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e autora também do livro de poesia Dentro e Folha (Dulcineia Catadora, 2012) e da peça de teatro No Ponto Cego, além de ter participado da publicação Golpe: Antologia Manifesto (Nosotros Editorial, 2016). Em 2013, dirigiu o curta-metragem Osso da Fala, que também tem o apoio do Itaú Cultural. Confira a entrevista sobre seu novo trabalho.

Em que fase da criação você está?
Estou na fase de pesquisa poética. Busquei referências, inspirações, vontades, paixões. Agora, estou tentando dar um jeito de fazer com que coisas tão diversas convivam no mesmo livro – já que a proposta é aproximar o existencial e o social, o espiritual e o político.

O segundo livro dessa tetralogia, Meu Corpo Ainda Quente, já está finalizado?
Já está finalizado, mas ainda não foi publicado. Esta é a sinopse: "Como viver em um corpo emprestado? É o que se pergunta Jô, uma adolescente que tenta entender sua relação com o próprio corpo enquanto cresce em Vermelha, uma fictícia cidade de desova da ditadura militar inspirada na Diadema dos anos 80. Dividida entre o fascínio pelo próprio desejo e a vontade de desovar seu corpo conforme ele é violentado de diversas maneiras, Jô vai aprendendo a desaparecer, a ficar em silêncio, até que se vê forçada a fugir para um canto do corpo que tantas vezes negou. Lá dentro é uma cidade morta, assombrada, pós-apocalíptica, onde Jô terá que negociar com a loucura e com a morte se quiser voltar à vida".

Em algumas entrevistas você fala sobre a relação da literatura e da escrita com o corpo. Como é essa relação para você? Poderia descrever o seu processo criativo?
Sim, este é meu projeto de vida: compreender como a palavra entra no corpo, passeia entre os órgãos, transforma nossa respiração, nossas sinapses, impacta nossos músculos. Compreender para escrever, a partir daí, livros para ser lidos com o corpo inteiro, livros que se conectem com o corpo-mente-alma, não somente para ser entendidos, mas para ser respirados. Percebo o quanto isso é político nos cursos e nas mentorias que dou. Toda a ideia de que a escrita é apenas mental deixa criadores doentes. A gente briga com o corpo como se ele fosse um empecilho, e não um bicho selvagem e criativo (um bicho faminto por significado, como sempre digo).

Eu compartilho essas buscas através do meu perfil no Instagram e de um canal sobre escrita criativa no YouTube por motivos existenciais – e políticos. Compartilho porque cada passo dessa pesquisa transforma minha maneira de ver a vida, me faz querer viver mais e me conecta com o meu corpo, com meus ancestrais, com essa terra chamada Brasil. Compartilho porque acredito – e percebo todos os dias – que, enquanto não nos tornarmos responsáveis por contar nossas histórias, outras pessoas as contarão em nosso lugar. Foi assim que toda uma tradição literária de homens europeus me "ensinou" a como ser mulher no Brasil. Isso para generalizar. Estão o tempo inteiro tentando tomar nossas histórias e, a partir delas, atribuir significados para nossas vidas e para nossos corpos. Precisamos escrever urgentemente. O Brasil precisa ser um país de escritores – principalmente de escritoras. Enquanto não escrevermos todas essas histórias, nosso país e nossos corpos continuarão a ser assombrados por seu passado.

Meus estudos são centrados principalmente na cinesiologia aplicada (técnica de abordagem da memória a partir da fisiologia do corpo e da sua relação com os meridianos – aqueles utilizados pela acupuntura), nos sistemas simbólicos arquetípicos (tarô, astrologia, mitologia) e na ioga tibetana do sono (respirações, meditações e técnicas de sono desperto). Eu trabalho o corpo através de automassagem, meditação, estímulos sensoriais – e então escrevo. Meu processo criativo começa com o autocuidado, com ouvir meu corpo, com abrir uma via de comunicação com o subconsciente através do corpo. Eu me preparo e ouço, escrevo o que ouço e depois reescrevo.

Como é a sua rotina de trabalho?
Acordo às 6 horas e escrevo das 9 às 13 horas. Entre 6 e 9 horas, cuido de mim. Faço ioga, medito, leio, converso com meu parceiro. Isso por cima. Ouço meu corpo, que muda conforme as luas e as estações do ano. À tarde, geralmente, é quando vou para o mundo. Respondo a mensagens, crio conteúdo, realizo atendimentos e cursos.

Você participou da publicação Golpe: Antologia Manifesto, e o material descritivo do projeto cita essa questão. De que forma a política está presente no seu novo trabalho?
Estou sempre tentando entender o que é ser mulher no Brasil hoje, o que é pertencer a uma classe social que ascendeu, mas não com toda a sua família. A culpa de ter e a raiva da desigualdade. O que é migrar de classe, mas levar da pobreza os medos e as ansiedades – eles nem fazem mais sentido, mas estão ali, ao lado da força dos meus ancestrais. Estou sempre tentando entender o que é ter sangue de escravizadores e de escravizados. O que é ter um pai e uma irmã que sofrem racismo e não poder entender completamente. O que é conviver com minhas partes machistas e racistas, com o sangue dessa terra, com os fantasmas. O que é pisar um chão raivoso, viver em uma cidade que trabalha mais do que vive, em um país em que o trabalho repete estruturas escravocratas profundas, em que a relação com a mulher repete o nascimento desse mundo a partir de estupros. O que é viver em um país que sempre esteve em guerra e que tem em seus lugares-comuns a frase "Pelo menos aqui não tem guerra". Um país em constante crise existencial.

Estou sempre me perguntando sobre as possibilidades de, nessas circunstâncias, estar viva, ser feliz, amar essa terra, meu corpo, a Mata Atlântica, o jeito como a gente devora a língua portuguesa, as festas, as histórias de assombro, o jeito de abraçar segurando a vida do outro, as ervas sagradas, as medicinas da floresta, os espíritos que aqui vivem, a força mulher desta Terra, as pessoas, a força criativa do nosso povo, as histórias. Cada uma delas.

Em uma entrevista ao Suplemento Pernambuco, você diz que o seu processo de criação envolve bastante leitura. O que você tem lido durante a preparação do novo romance?
Tenho lido sobre a história da medicina ginecológica no Brasil e no mundo, um movimento de tomar das curandeiras o domínio sobre o corpo feminino. Recomendo Visões do Feminino: a Medicina da Mulher nos Séculos XIX e XX, de Ana Paula Martins (Fiocruz, 2004), e Calibã e a Bruxa, de Silvia Federici (Elefante, 2017) – tenho um vídeo sobre isso no canal –, para entender a relação entre a dessacralização do corpo e o surgimento do capitalismo. A Imaginação na Cura, de Jeanne Achterberg (Summus, 1996). Acompanho a literatura e a poesia brasileira contemporânea, especialmente a escrita por mulheres, pois vejo a escrita como um trabalho coletivo. Para este livro as referências ainda vêm se construindo; posso citar Hilda Hilst, Charlotte Perkins, Amuleto, de Roberto Bolaño (Companhia das Letras, 2008), e Pedro Páramo, de Juan Rulfo (Best Bolso, 2009). Leio Toni Morrison todos os dias. Os contos da Margaret Atwood. Os sonhos e as cartas da Remédios Varo. Séries e teatro me influenciam para caramba também. O Conto da Aia é uma lição de entretenimento existencial e político. Westworld. Chernobyl.

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