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Encontros com a nova literatura brasileira contemporânea: Julie Dorrico

A produção literária de Julie Dorrico é a criação de um mundo próprio por meio de escritos poéticos que elaboram um “despertar do coma colonial”

Publicado em 12/08/2021

Atualizado às 15:30 de 14/02/2022

A série Encontros com a nova literatura brasileira contemporânea apresenta o trabalho de escritores da cena literária recente, com uma seleção atenta à produção de todas as regiões do país. Neste ciclo, a curadoria e a apresentação são da pesquisadora Fabiana Carneiro da Silva.

Quantos territórios coexistem neste espaço imaginado e imaginário chamado Brasil? Onde faz morada o seu pertencimento? A produção literária de Julie Dorrico, que veio a público com o lançamento do premiado livro Eu sou Macuxi e outras histórias (Caos e Letras, 2019), se afirma como estratégia de criação de um mundo próprio por meio de escritos poéticos que elaboram um “despertar do coma colonial”, isto é, o seu recente autorreconhecimento como mulher indígena integrante do povo Macuxi. A dança entre lembrança e esquecimento, constituinte da memória, adquire nuances singulares em face da experiência dos 521 anos de genocídio, violências e apagamentos perpetrados contra as populações originárias dessa terra. Nesse sentido, a assunção étnica de Dorrico e o seu esforço pela transfiguração artística da sua ancestralidade ganham forma por meio do “macuxês” ou “inglexi”, língua de contato criada pela tessitura literária que molda a trajetória das mulheres da linhagem materna da autora: o macuxi, de sua avó, assim como ela de Roraima, e o inglês de sua mãe, nascida na Guiana. Com delicadeza, os seus textos fluem e ritmam a oralidade; inscrevem e agudizam, muitas vezes pela perspectiva infantil, a tensão entre a cosmopercepção viva do povo Macuxi e o desencantado mirar-morte do mundo ocidental. Na recepção dessa escrita, como um chamado, reverberou em mim o devir-encontro com aquela minha bisavó, de quem não vi retrato, não ouvi relato e muito menos documentação. Aquela bisavó indígena – seria Xukuru-Kariri? –, que cotidianamente, contra a queda do céu, me sopra pistas a fim de compor o mapa, ainda roto, do meu caminho de casa.

Julie é fotografada até pouco abaixo do ombro. Tem a pele clara e os cabelos longos e negros caem sobre os ombros. Usa batom vermelho forte e três linhas de bolinhas da mesma cor nas bochechas. As linhas são separadas por riscos preto e ao longo das bolinhas do meio passa um padrão geométrico, diagonal para cima, diagonal para baixo, também em preto. Além disso, a poeta tem um arranjo de penas na cabeça.
Retrato da poeta Julie Dorrico (imagem: Acervo pessoal)

As bananeiras do meu quintal

Quando menina-menina

Gostava de brincar de esconde-esconde,

rouba-bandeira,

bets,

e subir nas árvores.

De todas essas brincadeiras, era o esconde-esconde que alardeava desde cedo minha mãe,

que corria pra me encontrar entre as bananeiras do nosso quintal.

 

 

Gritava, se exasperava, desesperava mais um pouco:

– cuidado com a cobra!

E centenas delas passeavam livremente por nós.

 

 

Entre as bananeiras, entre o coqueiral, entre os ingazeiros

eu cresci,

por isso mesmo me tornei uma planta que, com o tempo, floresce e morre,

como a vida

que se transforma diariamente em coisa melhor-pior-melhor-pior...

 

 

Eram árvores até o infinito,

eram plantas que cresciam umas das outras,

era eu criança correndo pelo mato,

como agora corro no chão de minha memória.

 

 

Um dia meu irmão caiu e quebrou o pé,

embaixo do tronco cortado havia uma sucuri,

ela não pegou ele porque o achou minguado demais para um caldo.

– Sorte nossa!

 

 

Um dia meu irmão foi tomar banho e foi recepcionado por uma cobra,

chamando ele pra brincar no banheiro!

Ele não quis não,

deixou o banho de lado e foi correndo jogar bola.

– Sorte a dele!

 

 

Minha mãe não punha forro em casa

porque dizia que a gente ficava mais perto do céu blú.

Eu não gostava não!

Quando criança eu só queria correr na floresta do meu quintal,

comer banana, ingá, manga, lima, coco e goiaba.

Não gostava daquilo de céu não, lá longe...

O meu céu já era o colo de minha mãe,

a companhia de meus irmãos

e as gente-árvores que ouviam todas as minhas histórias de menina.

 

 

No chão da minha memória

corre a menina com as árvores

As gentes são tudo aquilo que conversa com o seu coração.

 

O homem do ouro

Quando a draga queen aportava no barracão, íamos buscar papai.

Ele sempre nos encontrava sorridente com uma pepita de ouro.

Aquele ouro que me deixava feliz porque mamãe e papai sorriam mostrando os dentes.

 

Durante nove anos,

eu tive o afeto de meu pai.

Mas ele enlouqueceu,

como todo homem do ouro

que não escapa da maldição

de matar os outros envenenados aos pouquinhos.

 

 

Enquanto meu pai ficava cada vez mais rico

Mais o rio-gente morria, bem devagarinho, sufocado pelo mercúrio.

E quanto mais morria,

Mais gentes-árvore, gentes-peixe, gentes-barranco, gentes-gente morriam com ele.

Até que um dia foi meu pai que morreu

primeiro, de tristeza;

depois, da vida mesmo.

 

 

Agora eu sei: a felicidade de meu pai não era boa.

Hoje eu sinto que toda felicidade que não é boa, depois mata.

Foi assim com o meu pai.

São as mesmas as histórias que eu escuto dos homens de ouro:

Se tornam outros, ocos, pouco.

 

 

Outros, oco, pouco.

Outros, muito ocos, pouco, e depois morrem.

Queria que não fosse verdade, mas é.

 

Eu sou macuxi, filha de Makunaima

 

Eu sou filha de Makunaima, que

criou minha avó:

 

primeiro de cera (mas ela derreteu!)

 

e depois de barro: resistindo ao sol e

passando a existir para sempre.

 

 

Um dia ela bebeu caxiri

e resolveu brincar

porque só assim podia

criar minha mãe

e ela criou!

Mas decidiu que a língua de minha mãe seria o inglês,

assim, minha mãe não se aborreceria e sua vida seria mais fácil.

A língua de minha mãe é diferente da de minha avó,

minha avó fala a língua de Makunaima.

 

 

Um dia minha mãe decidiu me criar mulher.

E criou, lá na década de 1990, bem certinho.

Decidiu, porém, que minha língua não seria nem o macuxi, como de minha ancestral,

nem o inglês dos britânicos,

mas o português.

Eu não quis não.

Então resolvi criar a minha própria.

Como não posso fugir do verbo que me formou,

juntei mais duas línguas para contar uma história:

O inglexi e o macuxês

porque é certo que meu mundo – o mundo – precisa ser criado todos os dias.

E é transformando minhas palavras que apresento minha voz nas páginas adiante.

 

Julie Dorrico pertence ao povo Macuxi. É doutora em teoria da literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS). É uma das administradoras do perfil @leiamulheresindigenas do Instagram. Coordena o Grupo de Estudo em Memória e Teoria Indígena (Gemti) e é colunista da plataforma Ecoa, do UOL.

Neta de Amada e de Quiteria, filha de Lourdes e mãe de Imani, Fabiana Carneiro da Silva tece um caminho que alinhava docência, pesquisa e ações artísticas no campo dos saberes contra-hegemônicos, sobretudo a partir do eixo constituído por literatura, corpo e experiência comunitária. Doutora em teoria literária e literatura comparada pela Universidade de São Paulo (USP), atua como professora adjunta do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

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