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Políticas culturais e desenvolvimento local na Espanha

Arturo Rodriguez Morato é doutor em sociologia e bacharel em economia pela Universidade Autônoma de Barcelona (UAB), onde é professor...

Publicado em 25/08/2014

Atualizado às 20:58 de 02/08/2018

Arturo Rodriguez Morato é doutor em sociologia e bacharel em economia pela Universidade Autônoma de Barcelona (UAB), onde é professor titular de sociologia. Atualmente, também atua como diretor do Centro de Estudos sobre Cultura, Política e Sociedade da UAB, órgão que desenvolve estudos sobre profissões e mercados artísticos, cultura e território, política cultural e mudanças sociais. Durante o V Seminário Internacional de Políticas Culturais, que ocorreu nos dias 7, 8 e 9 de maio de 2014, no Rio de Janeiro, Morato nos concedeu esta entrevista. O seminário foi realizado pela Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB), em parceria com o Observatório Itaú Cultural.

Na entrevista, Arturo Morato comenta as pesquisas que coordenou sobre o modelo de desenvolvimento autônomo das políticas culturais na Espanha (Estudo Piloto da Política Cultural na Espanha, 2006-2007 e O Sistema da Política Cultural na Espanha, 2009-2011). Com um olhar comparativo, discute os megaprojetos de desenvolvimento de cidades europeias por meio da cultura e analisa as possibilidades e os riscos de importar modelos internacionais. Por fim, analisa os efeitos da globalização e o impacto dos avanços tecnológicos no cenário cultural.

Observatório Itaú Cultural: Para o senhor, a cultura é vista como estratégia para o desenvolvimento urbano e regional. A Espanha teve um processo de acelerada proliferação de museus, orquestras e todo gênero de instituições artísticas. Como as políticas públicas culturais da Espanha estão estruturadas para permitir que esse desenvolvimento aconteça em nível nacional e local? Fale um pouco sobre o estudo que coordenou sobre o modelo de desenvolvimento autônomo das políticas culturais na Espanha.

Arturo Morato: Podemos pensar essa eclosão de novas instituições e novos museus produzida na Espanha nos últimos anos com base em diversas chaves. Destaco uma muito importante de caráter normativo: as bases que se fixaram para o desenvolvimento das políticas culturais na Espanha foram muito abertas.

A ação cultural pública se desenvolveu entre diversas administrações em concorrência completa umas com as outras. Diferentes níveis do governo com capacidade normativa de propor a quem pudesse e o quanto quisessem no âmbito da política cultural. Vale destacar que isso é produzido, na realidade, para buscar um arranjo normativo que possa capacitar um desenvolvimento. Temos então um desejo de modernização e de emulação de outros países europeus. Havia uma consciência muito grande, não só no terreno cultural, de atrasos e de desafios por alcançar e questões por equipararem-se. Faltavam muitos elementos que podiam ser vistos em outras capitais europeias e em outras cidades, havia essa pretensão, assim como também um completo panorama dizendo que teria de haver uma quantidade de elementos e recursos culturais, de criadores e criações, movimentos que estavam aí, poderiam ser buscados e que iriam valorizar. Existe, portanto, uma dinâmica de emulação de iniciativas e de projetos exitosos.

Na Espanha, o governo central contribuiu para isso e, como consequência, exposições de Picasso e de grandes artistas espanhóis nunca puderam ser feitas. Isso mobilizou o desejo de outros muitos atores institucionais para replicar outras escalas e outras maneiras. Então, nossos estudos, junto com alguns outros intentos prévios, respondem à vontade de cobrir um vazio que havia, e segue havendo, de conhecimento verdadeiramente grande sobre quais serão as chaves dessa evolução a respeito das políticas culturais na Espanha.

Havia estudos muito parciais, devido à sua orientação disciplinar, com questões econômicas e orçamentárias, que atendiam melhor uma comunidade autônoma, e nos parecia existir um grande interesse em pensar em um conhecimento mais descritivo dessa realidade. Uma realidade muito fragmentada e muito pouco conhecida em seu conjunto e que seria um atrativo, existia um interesse de ir mais além.

Os estudos sobre política cultural têm tido dificuldades científicas para se desenvolver, para encontrar maneiras de tirar conclusões, de generalizar, de ter evidências que nos orientem sobre possibilidades, perigos etc. Por isso, poucos estudos comparativos têm sido produzidos. Imaginávamos que os estudos comparativos abordariam a questão de uma forma que facilitasse e possibilitasse um avanço nessa direção.

Nesse sentido, nosso estudo partiu de algo que nos parecia claro: as comunidades autônomas que compunham o nível estruturante fundamental da política cultural desenvolvido até então na Espanha. Tomando essa base de estudos, selecionamos uma mostra significativa de comunidades que representassem fundamentalmente a diversidade institucional e cultural originária espanhola. Feito isso, desenvolvemos um estudo que tratava de forma sistemática de identificar todo o processo de institucionalização dessa política organicamente nas instituições, administrações que haviam se conformado com seu formato, seus conteúdos programáticos no sentido básico e essencial, seu desenvolvimento orçamentário. Parecia-nos importante pensar essa questão em um sentido sistêmico. Notamos de partida que a política pública e a cultural, em específico, remetem a uma complexidade de ações que respondem às intervenções às muitas administrações de diversos níveis. Então, queremos entender essas interações de diversas administrações e essa dimensão.

Estudamos e tratamos em nossas análises comparativas de deduzir e identificar algumas causas prováveis de desenvolvimento que estávamos contemplando.

Observatório Itaú Cultural: A Espanha possui casos exemplares de desenvolvimento sociocultural, como Bilbao, com o Guggenheim, e Barcelona, que se tornaram verdadeiros paradigmas internacionais. No Brasil, o governo federal criou a Secretaria de Economia Criativa como missão de conduzir a formulação, a implementação e o monitoramento de políticas públicas para o desenvolvimento local e regional, priorizando o apoio e o fomento aos profissionais e aos micro e pequenos empreendimentos criativos brasileiros. O objetivo é contribuir para que a cultura se torne um eixo estratégico nas políticas públicas de desenvolvimento do Estado brasileiro. Na sua opinião, o que o Brasil tem a aprender com os exemplos espanhóis de desenvolvimento local pela cultura?

Arturo Morato: Penso que existe uma quantidade de desenvolvimentos interessantes a se observar, mas minha primeira apreciação a esse respeito é que é tão interessante aprender pelos êxitos como pelos fracassos e pelos erros. Mas estudam-se muito pouco os fracassos em política cultural.

Na Espanha, temos o exemplo do Fórum Universal das Culturas, realizado em Barcelona no ano de 2004. Esse projeto vinha de uma tradição exitosa de outros macroeventos que se produziram na cidade, organizados por conjuntos de organizações públicas com uma boa implicação de cidadania, em que se produzem sinergias positivas e que deixaram, sem dúvida, um exemplo positivo a esse respeito. Portanto, diria que o fórum não foi um fracasso definitivo. Ele foi realizado de modo que não deixou déficits significativos, se conciliou para conseguir, por meio dele, trazer melhorias para a cidade. A cidade se urbanizou na parte que ainda estava pendente das transformações olímpicas, zona que agora é chamada de fórum. A partir disso, abrimos novos espaços, essa zona velha, obsoleta e problemática se transformou, programaram e colocaram em pé alguns equipamentos de que a cidade necessitava, grande centro de convenção etc.

Por se tratar de um projeto que tinha uma grande ambição de transformação urbana e por ter muitos participantes envolvidos, resultou que a liderança desse projeto deixou de estar nas mãos dos atores culturais, no conhecimento da causa cultural ou do tecido cultural e de suas chaves.

Por outro lado, era um projeto que tinha a pretensão de estabelecer de forma centrada e objetiva um diálogo cultural, amplo e geral com a população, com uma população mobilizada nos mais diversos assuntos, com as coisas públicas, teria uma dimensão político-cultural muito clara que era conflitiva.

Tínhamos aqui um desafio, porque esse era um projeto que não podia se executar sem produzir debates acalorados, e era verdadeiramente difícil pôr frente a frente todos os atores envolvidos. No entanto, a promoção desse projeto caiu em mãos de diferentes administrações. De um lado, o Partido Popular à frente do governo central, com uma orientação nacionalista e conservadora. E, de outro, na municipalidade, tínhamos o Partido Socialista à frente da prefeitura. Esse cenário dificultava planificar e acordar um modo de executar esse programa de debates.

A chave do sucesso para os megaeventos consiste no momento em que se fundem cidadania e adesão cidadã, isso traz legitimidade. Diferentes setores denunciaram e fizeram campanhas contra o fórum, diziam que se tratava de uma operação especulativa. Creio que eram um pouco exagerados com esse discurso de denúncia, mas, em todo caso, a chave é que não puderam, não souberam e não quiseram contestar. Nada foi contestado. Podemos dizer que houve um fracasso simbólico do fórum. O fórum fica na memória da cidadania barcelonesa como um fracasso e, assim como os Jogos Olímpicos, são casos pouco estudados sob essa ótica que acabo de resumir. Mas podemos aprender muito com base nisso, inclusive em alguns desafios e projetos que existem agora no Brasil.

Existem na Espanha exemplos negativos e positivos de megaeventos que arrastam e transformam as cidades onde são implantados. O Guggenheim é um caso exitoso. A Cidade das Artes em Valência e a Cidade da Cultura na Galícia se encontram em um poço sem fundo orçamentário, e nada produzem. A Cidade da Cultura tem se arrastado e é um peso morto que as administrações não podem abandonar, porque seria como jogar ao lixo centenas de milhões de euros investidos. Devido aos custos e às funções que poderiam exercer em determinados contextos, deixamos de aprender, porque não se pode sair do planejado. São ensinamentos de que deveríamos nos lembrar e que são frutos desse aprendizado. Frutos do que sobrou de positivo do passado, dos atrativos então políticos que se pode ter, do brilhantismo que se tem em determinado projeto com essas características, pois não fazemos análises das bases dos projetos. Isso produz de modo inevitável o fracasso em longo, curto ou médio prazo.

De todo modo, a economia criativa tem êxito como um dos vetores, mas existem outros âmbitos que devem ser levados em conta. Não é possível apontar tantos modelos de sucesso baseados exclusivamente na economia criativa. Além dela, temos outras questões para que seja possível alcançar o sucesso produtivo de criadores e de indústrias culturais, em projeção internacional. Ocupar um espaço nos mercados culturais internacionais é outro desafio que requer certas atuações muito finas de governança cultural em nível local e distrital.

É possível dizer que tem havido inovações institucionais abundantes na Espanha e na política cultural de uma maneira geral. Nem todas as políticas são bem concebidas ou exitosas. Outro exemplo com o qual podemos aprender é o Conselho de Artes da Catalunha. O conselho surgiu depois de um longo debate, fruto de um processo de reclamações e solicitações por parte do setor cultural, que buscava maior autonomia na decisão sobre gastos culturais, que sentia falta disso pelo tradicional clientelismo da política cultural na Espanha e um pouco nos países latinos. No entanto, sua implantação não funcionou muito bem e teve de passar por um replanejamento bastante radical. Na realidade, os responsáveis pela cultura não estavam felizes com esse desenvolvimento, já que quase todo o poder político, recursos e capacidade de controle foram tirados de suas mãos, não estiveram de acordo com essa inovação.

Isso me leva à conclusão de que os projetos culturais podem ter virtudes e é possível aprender com exemplos de outros lugares, mas temos de ser muito cuidadosos. A experiência internacional nos ensina que é possível pensar e importar modelos exitosos; no entanto, para implantá-los é fundamental que haja um encaixe. É preciso pensar muito bem como essas realizações se aclimatam e se encaixam, como refletem, o que fazem e que efeitos produzem no “ecossistema cultural” de determinado lugar. Temos de pensar seriamente em curto e médio prazo, analisando, inclusive, se os elementos imateriais e as tradições políticas e sociais de determinado lugar são apropriados para aclimatação positiva de certas realizações.

Nesse caso, por exemplo, diria que o Conselho de Artes, vindo do mundo anglo-saxão, não se encaixava facilmente na cultura política e social do setor cultural e da administração espanhola, e este foi um dos motivos de seu fracasso. Portanto, penso que podemos aprender, sim, com as experiências espanholas, desde que não pretendamos puramente transpor imagens de algum projeto bem-sucedido. Temos de analisar muito bem os contextos locais e quais chaves fundamentaram o êxito ou o fracasso desse projeto em seu local de origem.

Observatório Itaú Cultural: Com a globalização, os centros artísticos perdem sua força, recursos tornam-se mais fluidos e há uma acessibilidade espacial mais generalizada. Com o avanço tecnológico e a relevância cada vez maior das redes sociais, há também uma maior descentralização das forças de distribuição cultural. O ecletismo artístico pós-moderno contribui para alterar as relações entre centro e periferia. Nesse contexto, que ainda sofreu com uma grave crise econômica europeia, quais arranjos produtivos e criativos surgiram na Espanha e na Europa nos últimos anos que podem servir de inspiração para os artistas e os gestores culturais brasileiros?

Arturo Morato: Efetivamente, a globalização é muito importante para os fluxos de acessibilidade cultural; as novas tecnologias de comunicação que transitam estão alterando as bases e o equilíbrio de influências culturais e os intercâmbios entre centros e periferias. Tudo isso representa novas oportunidades e potencialização para a produção e a criatividade cultural em diferentes lugares. Implica também desafios.

Um dos problemas ligados às novas tecnologias de comunicação é a pirataria. Com o acesso à internet generalizado e mais rápido, a pirataria tem crescido de maneira exponencial, e isso tem se refletido na Espanha também. Esse não é um tema fácil de abordar e temos de ser cautelosos. Mesmo que o livre acesso aos conteúdos culturais seja algo positivo, ainda assim temos de considerar mais detalhes a respeito da pirataria. Na Espanha, a proliferação da pirataria gerou um declínio das indústrias culturais locais diante dos mais poderosos. O audiovisual é um setor que tem sofrido um enfraquecimento categórico. O cenário editorial ainda não sentiu os efeitos profundos da pirataria, pois apresenta certa capacidade e é realmente o mais competitivo internacionalmente, mas já começa a sentir. E, se ocorrer o mesmo que ocorre com o audiovisual, o balanço seria desastroso.

Ao invés de esse fácil acesso produzir uma maior capacidade de projetar-se nos mercados internacionais, significaria uma retração, uma diminuição da capacidade de produção competitiva e valorizada nas redes. Ou seja, nem tudo é necessariamente positivo, mas temos de aproveitar melhor essas novas condições que respondem a alguns dos desafios do presente.

Na Espanha, a profunda crise econômica dos últimos anos impactou de forma desastrosa o mundo cultural. Diante disso, houve tentativas de reação, mas sempre de acordo com planos e tendências internacionais, e não casos particulares. Isso se proliferou significativamente e a planificação estratégica em âmbito cultural tem a importância de estabelecer mecanismos de implicação coletiva de todos os setores culturais para incidir positivamente neles. As políticas são mais sábias nesse sentido, pois as intervenções são menos simplistas e tratam de incorporar muita informação, e parecem ser cúmplices dos atores culturais, então incidem de forma mais estratégica, mais combinadas entre uma medida e outra. A criação de novos mecanismos de apoio às indústrias culturais, como na Catalunha e no País Basco, e outros planos específicos que se têm colocado em prática me parecem ser inovações positivas dos últimos anos e podem ter uma transição positiva a outros lugares e ao Brasil também.

Na Europa, devido à incapacidade de feitos e princípios e também a limitações normativas, praticamente todas as ações culturais são orientadas. A cooperação e a mobilidade cultural entre os países são exemplos claros. Isso seguramente é algo positivo e pode ser transladado para a América Latina e o Brasil. É muito enriquecedora a interação com outros atores culturais, seja na contribuição em projetos comuns, seja na experiência de viver e participar em outros entornos culturais e ver como funcionam, adaptar-se a eles e depois voltar e atuar em um contexto mais familiar.

Também é muito positivo atrair gente de fora, de outros países, com sistemas e fórmulas diversas e incorporar transitoriamente essas pessoas que trabalham e vêm de outras coordenadas culturais. Pensar no interesse e no que se pode oferecer com a incorporação de profissionais da cultura de outros lugares. Comparado a outros países, o cenário europeu é menos fluido.

Colocamos como exemplo o caso pragmático dos Estados Unidos, um dos países que mais têm acolhido imigrantes, em permanentes fluxos. Isso era menos comum para a tradição europeia, mas ultimamente os programas europeus favorecem múltiplos níveis: educacional, latino e cultural. Um exemplo é o Erasmus (um programa da União Europeia para intercâmbio de estudantes entre universidades) – programa de grande impacto e muito benéfico no mundo acadêmico, que permite uma mobilidade de estudantes e professores. Isso é, eu creio, um tipo de atuação muito benéfica e que podemos incorporar ou aprender com ela.

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