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Escuta movida por indignação

Raiva. Sentimento destrutivo, mas que também pode erguer coisas belas. Foi o que demonstraram os ...

Publicado em 05/11/2018

Atualizado às 12:20 de 04/06/2019

Por Encontro com Espectadores – Beth Néspoli

Raiva. Sentimento destrutivo, mas que também pode erguer coisas belas. Foi o que demonstraram os atores Munir Pedrosa e Herbert Bianchi, criadores da dramaturgia de Hotel Mariana, aos participantes do 25o Encontro com o Espectador, conversa mediada pelo jornalista Valmir Santos sobre esse espetáculo, que aborda o rompimento da barragem de rejeitos de minério na região de mesmo nome em Minas Gerais.

A dupla falou sobre a raiva como sentimento que move a escolha do verbatim, técnica na qual atores e atrizes reproduzem simultaneamente relatos escutados no palco por meio de fones de ouvido. E foi mesmo ira o sentimento despertado desde as primeiras informações sobre o rompimento da barragem que, em novembro de 2015, devastou os distritos de Bento Ribeiro e Paracatu de Baixo e despejou milhares de litros de líquido tóxico na bacia hidrográfica do Rio Doce, afetando os estados de Minas Gerais e Espírito Santo.

A indignação com a tragédia levou Pedrosa a fazer as malas e partir para a cidade de Mariana mesmo sem conhecer uma única pessoa da região, e apenas três dias depois do ocorrido, já com o intuito de colher depoimentos para a futura montagem. Ao todo, foram 40 os entrevistados, em longas conversas, sem uso de técnica específica, apenas com um gravador, muita intuição, empatia e generosidade no tempo de escuta, esse último um aspecto fundamental para o adensamento da poética de Hotel Mariana.

Ao diretor do futuro espetáculo, Herbert Bianchi, parceiro na fundação da Cia. da Palavra, que nasceu em 2016 com essa montagem, Pedrosa entregou as gravações realizadas. Dez delas acabariam compondo a dramaturgia e, na conversa, ele contou como foi dolorido abrir mão de alguns depoimentos, decisão vinculada à necessidade de imprimir tensão ao roteiro. Bianchi já havia participado como ator – e também colaborado na elaboração da dramaturgia – da montagem de Ao Pé do Ouvido, criada pelo Núcleo Experimental de Teatro e dirigida por Zé Henrique de Paula, que também se valia do recurso do verbatim. “O Zé Henrique estudou essa técnica em Londres, onde é muito utilizada na cena documental”, comentou Bianchi.

Alma perdida

Em um movimento de proteção interna, depois de ter ouvido tantos relatos pungentes, Pedrosa voltou de Mariana com uma espécie de indiferença para com os áudios. “Eu mesmo nem tinha me dado conta de meu estado emocional”, contou. Foi Bianchi o responsável por dizer a Pedrosa, após seu retorno da região: “Você está sem alma”. Pedrosa comentou que só pôde voltar a ouvir os depoimentos algum tempo depois de ter “recuperado a alma”.

A expressão reverberou na plateia do Encontro com o Espectador e tocou a sensibilidade de Flávia Russo, espectadora com formação em engenharia química. “Eu sei o que é isso. Por causa de minha profissão, já fiz pesquisas de campo em tragédias e me senti como você”, compartilhou. Ela contou que precisa escrever um relato pessoal, ao fim de um dia de coleta de depoimentos, como forma de se conectar consigo mesma e “não perder a alma”. Pedrosa disse que chegou a começar um diário, mas logo o abandonou e, ao voltar exausto a seu hotel, sua única preocupação era fazer cópias das gravações, por temor de perder aquelas vozes únicas.

Juntos, Pedrosa e Bianchi transcreveram todos os áudios e passaram a unir depoimentos de forma a criar um desenho expressivo. Falaram então de como a opção se deu por eliminar repetições, mas também por manter a narrativa não linear, uma vez que os relatos não seguiam uma cronologia precisa. Ao mesmo tempo, a tessitura precisaria colocar em relevo a dimensão da tragédia.

Assim, todos os relatos iniciais estão conectados ao que eles chamam, internamente, de “a onda”, porque dão conta do momento em que o mar de lama surge no horizonte, sem aviso prévio, levando as pessoas a ter de deixar tudo para trás – incluindo por vezes outras pessoas – e a correr para salvar suas vidas. Depois vêm outras vivências, como a descrição de singelas ações cotidianas que transcorriam antes do rompimento, que dão conta da vida em seu rumo e, também, das aflições dos sobreviventes em estado de espera acomodados nos hotéis depois da ruptura.

Presentes ao encontro, alguns dos demais atores do espetáculo (são dez no total) participaram ativamente, falando sobre a lida com essa técnica – inaugural para a maioria deles –, que exige atuação simultânea à escuta, sem nenhum tempo para vacilação. Se as pausas e também as emoções estão explicitadas nas vozes, por outro lado elas precisam ser reproduzidas em sua dimensão existencial. Com variações, todos chamaram a atenção para a responsabilidade de ter de recriar seres existentes, não fictícios, em sua humanidade plena.

Como sempre ocorre nas edições do Encontro com o Espectador, ação do site Teatrojornal – Leituras de Cena apoiada pelo Itaú Cultural, a conversa com os criadores de Hotel Mariana foi gravada em áudio, será transcrita e, em breve, estará publicada, conforme vem acontecendo desde 2016. Curiosamente, Flávia Russo, a já citada espectadora, falou sobre um projeto de pesquisa arquitetônica ao qual vem se dedicando e cujo tema é como tornar expressiva a forma dos memoriais construídos sobre tragédias. Não é mesmo impossível dizer que Hotel Mariana é uma espécie de memorial vivo.

Novembro

Coincidentemente será esse o tema da próxima edição do Encontro com o Espectador, que ocorrerá no último domingo de novembro, dia 25. Villa é o espetáculo em foco. O texto do chileno Guillermo Calderón aborda a difícil decisão, debatida por três mulheres, sobre o que construir no lugar onde existiu um centro de tortura e extermínio durante a ditadura de Pinochet. Com direção de Diogo Moschkovich, em sua terceira incursão pela dramaturgia do chileno, a montagem, em cartaz no Sesc Pinheiros, em São Paulo, segue o mesmo despojamento do espetáculo original, dirigido pelo autor e apresentado no Brasil em 2015, na II Bienal Internacional de Teatro da Universidade de São Paulo (USP). Apenas uma mesa, três cadeiras e um telão para algumas raras projeções tomam o palco da encenação, alicerçada na palavra e na atuação do trio de intérpretes formado por Flávia Strongolli, Rita Pisano e Angela Ribeiro. Desde já, todos estão convidados para mais uma conversa envolvendo criadores, críticos e espectadores.

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