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Estopô Balaio | Série ‘Coletivos’

Localizado na Zona Leste de São Paulo, o grupo criado em 2011 desenvolve processos de formação com os moradores da região e uma reflexão...

Publicado em 16/08/2016

Atualizado às 10:29 de 03/08/2018

É com a pergunta “Como você vê a cidade a partir do lugar em que vive?” que o coletivo Estopô Balaio, formado em sua maioria por artistas migrantes, propõe uma ação de registro e mapeamento afetivo da cidade.

Localizado no bairro Jardim Romano, na Zona Leste de São Paulo, o grupo, criado em 2011, desenvolve – a partir de oficinas e programação de teatro, sarau, poesia e cinema – processos de formação com os moradores da região e uma reflexão sobre o urbano a partir da arte e da cultura. Memória, identidade e pertencimento são elementos presentes na concepção e nos processos criativos do coletivo, que conta um pouco sobre como o grupo se formou, como funciona sua gestão e quais são as ações que desenvolve.

Como o coletivo Estopô Balaio se formou? A partir de quais demandas?

O coletivo se formou em 2011, a partir do contato do diretor João Júnior com o Jardim Romano – bairro no extremo leste paulistano – quando ele havia sido convocado, no ano anterior, para desenvolver um trabalho com as crianças do local em um equipamento público. Em 2010, o Jardim Romano sofreu com uma enchente devastadora, que deixou parte da área submersa por quatro meses. A partir do encontro com as crianças e de seus relatos sobre as enchentes, o diretor foi mergulhando na memória social do bairro, que é pautada na experiência com esse problema, visto que o local foi se construindo em uma área de várzea e pantanosa. Outra característica da constituição urbana do bairro e humana na região se dá pela forte presença nordestina.

Assim, o coletivo foi se formando num processo de encontro e afeto, porque depois da chegada do diretor outros artistas migrantes mergulharam nas águas memoriais do Jardim Romano, que estavam inseridas em dois contextos: as enchentes e a migração. Como os artistas que chegaram ao bairro também são migrantes nordestinos, o coletivo foi se formando através do Jardim Romano, da travessia de trem até lá e da relação com os moradores em suas casas e nas ruas – numa reunião entre artistas de diversas linguagens, artistas moradores e atores-moradores que se formaram a partir dos projetos desenvolvidos pelo Estopô Balaio e pelos próprios moradores, que construíram com o coletivo uma convivência pautada num cotidiano em que a arte é o dispositivo relacional de intervenção no bairro e na nossa vida. Por meio desse espelhamento, o coletivo foi se inventando e se formando.

Quais atributos são essenciais para classificar um grupo de artistas como coletivo?

Essa, na verdade, é uma pergunta constante para nós. Sem dúvida descobrimos aos poucos que, para um grupo de artistas se denominar coletivo, são indispensáveis a autonomia, o expressivismo e a emancipação. Só assim conseguimos compartilhar demandas, mergulhar nas individualidades e dar espaço às novas propostas. Não há uma busca por unificação. Os integrantes do coletivo são muito distintos em todos os aspectos, e essa diferença é respeitada, inclusive como potencializadora para o processo criativo. Esse processo é fluido e segue se aperfeiçoando a cada momento nos meios e nos modos de produção do coletivo.

Como vocês organizam os processos criativos do grupo? E a gestão, a produção etc.?

Os processos de criação do grupo emergem da relação com a memória social do bairro e de seus integrantes – como um processo de escrita de si na busca por relacionar aquilo que motiva os integrantes a estar juntos em um coletivo. Nesse sentido, buscamos sempre o comum e a intersecção dos desejos numa relação com o espaço público. Os projetos do Estopô Balaio contemplam a cidade e as questões de direito à cidade como um suporte de linguagem e investigação. Nos meios e nos modos de produção do coletivo, cada artista precisa ser, além de sua função artística, autogestor e produtor.

Descobrimos ao longo dessa trajetória que era preciso nos capacitarmos em diferentes frentes, visto que o Jardim Romano está localizado no extremo leste, na divisa com as cidades de Itaquaquecetuba e Guarulhos. A distância e o tempo de acesso ao bairro fizeram sucumbir muitas parcerias artísticas, além da prestação de serviços de que necessitávamos para o desenvolvimento das ações. Essa percepção fez com que nos direcionássemos para as nossas necessidades de forma mais autônoma e buscando as linhas de fuga necessárias para a execução de nossos projetos, nos capacitando tecnicamente em diversas áreas – como produção-executiva, cenotecnia, marcenaria e edição de vídeo.

Para além dessas questões, existem algumas particularidades no coletivo, visto que ele agrega moradores que se iniciaram artisticamente com o grupo e se profissionalizaram, mas tiveram de enfrentar a pressão familiar e sistêmica que empurra jovens de um bairro periférico para o terceiro setor ou para a prestação de serviços informais nos comércios do bairro, como fonte de renda para complementar o orçamento familiar. Desde o início tivemos esse campo de batalha na gestão para pensar a continuidade das ações, pois, para que o morador pudesse estar envolvido nos processos artísticos, precisava-se de um auxílio financeiro, a fim de que as necessidades primárias não frustrassem o desejo e a potência que cada um sentia em desenvolver-se como artista.

Trabalhamos em um contexto de vulnerabilidade, em que a urgência opera mais forte que a espera, em que pouco se decide no longo prazo, uma vez que a vida é urgente e as necessidades são consideradas no curto prazo. Então, sempre precisamos ser urgentes com a nossa gestão. Sempre trabalhamos para livrar o presente da urgência, para poder pensar no futuro. Pensar na gestão e na autogestão é garantir a continuidade do coletivo, porque é necessário pensar em curto, médio e longo prazo. Muitos atores do grupo são também os responsáveis pela produção, por exemplo. Após esses cinco anos de resistência do coletivo no bairro, estamos conseguindo traçar um planejamento de nossas ações em curto, médio e longo prazo.

De que modo o coletivo se sustenta? Existe algum meio alternativo de financiamento? Vocês já foram contemplados com algum edital? Como vocês avaliam os modelos de financiamento artístico hoje: acham que eles atendem às necessidades dos artistas?

O coletivo se sustenta, primordialmente, com editais públicos. Já fomos contemplados no Programa Vai, no Programa de Ação Cultural, da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, e na Lei de Fomento ao Teatro da cidade de São Paulo. No entanto, sabemos que os editais têm curta duração e que não há garantia de que se ganhe o próximo, por isso buscamos circular os espetáculos através de apoios locais, de parcerias com instituições culturais etc. O cancro no financiamento à cultura são, sem dúvida, as leis de incentivo. A verba destinada a elas é imensamente superior ao apoio direto dos editais. É preciso reduzir a ingerência das empresas e aumentar as verbas municipais, estaduais e federais.

Com frequência, fazemos críticas a alguns editais na própria escrita do projeto, porque compreendemos que o diálogo precisa se iniciar na própria escrita artística. Por exemplo, recentemente ganhamos um edital de circulação de teatro de rua que previa a itinerância de um espetáculo por cinco cidades no estado de São Paulo. Queríamos inscrever o espetáculo A Cidade dos Rios Invisíveis, mas ele acontece num espaço específico de encenação, não havendo a possibilidade de circular em outros locais sem que houvesse a total destruição da obra.

Pois bem, decidimos inscrever o projeto nesse edital mesmo assim. Escrevemos que é necessário compreender as características das produções que trabalham com site specific e propusemos, ao invés da circulação do espetáculo, a circulação de pessoas – portanto, criaríamos estratégias para trazer o público de outras cidades para assistir. Temos consciência de que não é o edital que pauta as nossas criações; caso contrário, elas já nasceriam mortas. Passamos meses discutindo os projetos em coletivo e buscamos sempre uma escrita dialógica, capaz de provocar essas pequenas alterações nas estruturas vigentes.

No projeto Ao Redor, vocês exploram a relação dos moradores de diferentes regiões da cidade, procurando entender o modo como cada indivíduo se relaciona com seu entorno para compor o que chamaram de “mapeamento afetivo da cidade”. Vocês podem falar um pouco sobre o que é esse mapeamento e sobre quais são as impressões dos membros do grupo até o momento?
O coletivo trabalha em três vertentes: a criação, a memória e a narrativa. Compreendemos que só a partir de alguns aspectos podemos conquistar uma consciência criativa e uma emancipação urbana, e para isso são fundamentais a autoestima e o expressivismo. Dar ouvido a quem tem tanto a falar é arrebatador. Sempre buscamos construir esses encontros pautados no afeto e na criação. À medida que se narra a própria vida, existe uma consciência na escolha dos trajetos importantes, existe um distanciamento fundamental para não se vitimar, existe um corpo que narra. Ficamos atentos a tudo.

Num primeiro momento, durante a realização dos três espetáculos do coletivo – todos sobre as enchentes no bairro Jardim Romano –, nos dividimos entre atores-moradores (aqueles que moram no bairro e são os detentores da memória sobre as enchentes) e atores-estrangeiros (aqueles que não moram ali e que migraram para São Paulo). Com o projeto Ao Redor, todos nos tornamos artistas-estrangeiros, e isso foi uma experiência fundamental para nós. O mapeamento afetivo da cidade é uma experiência profunda de alteridade. A ideia do Ao Redor é derivar por bairros da cidade e encontrar seus moradores, e nos lançamos ao encontro do outro com a seguinte pergunta: como ele vê a cidade a partir do lugar em que vive?

Com base nisso registramos o encontro em vídeo, áudio e fotografia. O material recolhido serve para a montagem de uma instalação no equipamento cultural que recebe o projeto localizado naquele bairro. Intervenções e performances são criadas a partir dessa experiência com os moradores, no intuito de aproximá-los de seus próprios relatos memoriais – agora transformados em instalações e dispositivos relacionais –, fazendo com que o espaço público seja um lugar de fruição desses afetos.

O projeto já percorreu mais de dez bairros, a maioria deles na Zona Leste, mas estivemos em todas as regiões de São Paulo e percebemos que o desejo de cidade e de acesso a ela é uma carência nesses lugares.

De que maneira o espaço urbano impacta no trabalho de vocês? Qual é a importância do contexto em que os integrantes estão inseridos para a concretização desse trabalho?
O espaço urbano é, ao mesmo tempo, influência para a dramaturgia e suporte pictórico para a criação. O último espetáculo do coletivo – A Cidade dos Rios Invisíveis –, por exemplo, acontece em um trajeto de três horas que se inicia na estação do Brás e vai até o Jardim Romano pela linha 12 da CPTM, numa espécie de audiotour que guia a viagem dos espectadores-passageiros e segue pelas ruas do bairro, onde caminhamos e findamos na margem do rio que constantemente alaga o local. Nessa travessia pelo bairro, os demais moradores, como num ato de comunhão, vão à rua para compartilhar, olhar e torcer pela cena que se desenrola na fachada de suas casas. São todos atores nesse processo de fabular a própria vida. Todos pactuam com o ato teatral.

Trabalhamos em um contexto de vulnerabilidade, tanto pela presença do tráfico quanto pela dificuldade de acesso a outras partes da cidade. Muitos jovens e adultos ficam ilhados no bairro devido ao alto custo de mobilidade. Fazer o espetáculo nas ruas e nas casas do bairro é incentivar essa estrutura – alijada de acesso aos bens culturais – a conviver com poesia, música, dança e teatro. Por isso, todas as nossas ações habitam a rua: saraus, cabaré, exibições de cinema em espaço público, intervenções de grafite, performances e ensaios. O bairro é um laboratório de alteridade a céu aberto, no qual uma política do cotidiano foi fazendo da arte desenvolvida pelo Estopô Balaio um bem comum, algo do dia a dia, assim como o pipoqueiro, a pinga do bar, a música da jukebox, o churrasquinho na frente da estação. A escolha por uma arte que atravessa a vida e que dela faz parte interessa ao coletivo, permitindo que todos partilhemos dos processos que são gerados. No Jardim Romano, talvez estejamos tentando dar vazão à nossa utopia de cidade.

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