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A gaiola está com a porta aberta, passarinho...

“A gente não vê que a porta está aberta e não sabe que pode voar. Ou a gente não voa. A gente não reconhece as asas e não voa” – Jurema Werneck

Publicado em 17/11/2021

Atualizado às 15:45 de 15/07/2022

Por Naine Terena

Quando Jurema Werneck – mulher negra, conselheira do Fundo Brasil, diretora-executiva da Anistia Internacional no Brasil e realizadora de muitas ações que acho que não cabem na coluna – disse em bom tom, em meio a uma entrevista, que “somos pássaros presos em gaiola de porta aberta”, parece que a sirene tocou repentinamente convidando-me a olhar com muita atenção para a gaiola.

Pedi autorização para que pudesse utilizar trechos da sua entrevista neste texto, porque ela me suscitou a pensar na nossa apatia diante do espetáculo. Jurema me alertou que nossa geração, diferentemente da dela, tem a possibilidade de reunir documentos, de documentar. No entanto, só isso não basta. Ela me fez pensar que vivemos na sociedade da manipulação, inclusive com diversas teorias que nos dizem isso há algum tempo.

Acontece que, na nossa esperteza de ocupar espaços, podemos deixar passar despercebido o olhar atento à estrutura. Sim. Disse-me ela: antes da conjuntura vem a estrutura. E é fácil ver que essa estrutura nos quer no lugar do nada, do nunca, do invisível, do subalterno para sempre.

Lembrei dos espelhos. E de todos os presentes que nos oferecem desde sempre. Eles estão contaminados do veneno da manipulação. Ou de sua tentativa. A branquitude não quer perder seu poder e seus privilégios; eles se reprogramam para continuar a manutenção e a aplicação desses mesmos privilégios a outros membros da branquitude normativa. O genocídio não é somente realizado de maneira física. Fiquem atentos. Ele tem muitas tecnologias. Mata o corpo, mata a mente, mata as cosmologias. Mata-se pelas redes sociais – esse lugar onde se monta o tribunal da vida e da morte.

Elementos simbólicos são reproduzidos de tempos em tempos para nos lembrar qual é o “nosso lugar”. Ou o lugar que querem que nós nos coloquemos – a gaiola. A gaiola às vezes é dourada, blindada, com um lugarzinho gostoso de se acomodar a ponto de deixar a porta aberta, mas não perceber que se pode voar.

A escravidão tem diversos símbolos. A dominação se apresenta a partir da criação de mundos dentro da gaiola. Isso me fez lembrar do segundo livro da minha filha. Nele, o bruxo do sofrimento aprisiona Angelina numa gaiola. Ali ela fica tentando se livrar daquela situação. A luta é com a estrutura e, posteriormente, com a conjuntura em que Angelina se encontra. Um esforço de reavivar memórias para que o bruxo da solidão não a convença de que tudo está ali e não há saída.

A questão da estrutura nos faz verificar que temos muitas coisas que não “são feitas para nós” (assim refletiu Jurema), inclusive o universo das produções culturais e o circuito em que elas estão inseridas. Algumas delas vêm de mãos artísticas oriundas de um sistema que propõe a nossa não existência como sujeitos pensantes. Algumas imagens nos ferem, trazem o peso da nossa história, que todo dia se atualiza em muitos de nós (que o digam as telenovelas e toda a indústria de massa).

Quando algumas feridas são abertas, é preciso mergulhar no seu cuidado. Mas dói. Costumo dizer isto quando inicio minhas aulas e oficinas: “Há alguns temas que doem. E vocês vão sentir dor, podem até chorar. Mas estão prontos para pensar em privilégios?”, digo já alertando para que saiam logo e não apaguem as luzes, porque fica sempre alguém na sala. Alguém disposto a mergulhar nas feridas e olhar a gaiola com muito mais atenção.

Jurema reforçou isto: dói, mas não pode “passar em branco”. É preciso mergulhar, engajar, encontrar soluções, pois nós exigimos reparação a tudo e a todos que nos negligenciam ou negligenciaram. Basta ver que a porta da gaiola está aberta, passarinhos.

Nesta semana três passarinhos que seguem voando arrancaram umas palavras interessantes da minha boca, que silencia às vezes para não falar coisa feia:

“Mais Tupinambá, menos categorias” (conversa com Olinda Muniz Tupinambá em 12 de novembro de 2021);

“A gente ‘aloita’ com um cânone por dia” (conversa com Poliana Queiroz em 12 de novembro de 2021);

“Seguymos, seguyremos, conseguyremos” (conversa com Juão Nyn em 12 de novembro de 2021).

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